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Manuel Fernandes, a paixão em forma de golos: memórias do leão eterno

O goleador que cresceu na CUF, recusou o FC Porto e mais tarde o Benfica, em nome do amor ao Sporting, é o homem dos 7-1 (que nem foi o seu melhor dérbi, dizia), mas é muito mais. Nome maior do futebol português e, sobretudo, símbolo do clube a que deu o coração. Na vida dedicada ao futebol daquele que foi também o treinador que lançou José Mourinho cabem histórias sem fim

Nasceu em Sarilhos Pequenos e foi lá que cresceu, apaixonado pelo futebol e pelo Sporting. Fez-se goleador, revelou-se na CUF, tornou-se lenda em Alvalade, é um nome maior do futebol português. Ninguém tem mais jogos na I Divisão do que ele, o homem que marcou quatro golos ao Benfica naquele 7-1 para a eternidade, mas dizia que esse nem foi o seu melhor dérbi. Manuel Fernandes morreu nesta quinta-feira, aos 73 anos. Deixa uma vida dedicada ao futebol, sempre disponível para o clube do seu coração, feita de golos, histórias e devoção.

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Foi a mãe que lhe passou a paixão pelo futebol e pelo Sporting, foi ela que lhe anteviu um futuro como futebolista. «Incutiu-me sempre que eu iria ser um grande jogador de futebol. Ela sempre disse: ‘Tu vais jogar primeiro aqui, no Sarilhos, depois vais jogar para a CUF, que é o clube aqui perto da terra, e depois vais para o Sporting’», recordou Manuel Fernandes em 2012 numa entrevista à extinta revista Focus.

O miúdo que tentou a sorte no Sporting e… no Benfica

Tinha 10 anos quando perdeu a mãe, a vida da família complicou-se e Manuel Fernandes recorda os sacrifícios das irmãs para que ele pudesse continuar a estudar. O futebol só apareceu mais tarde, quando tinha 16 anos e a equipa da terra, o Sarilhense, criou uma equipa de juvenis. Foi de pouca dura, porque na época seguinte o clube não teve equipa de juniores. Nessa altura, tentou a sorte no Sporting e no Benfica. Não ficou, perdido num e noutro clube no meio de uma centena de miúdos, sem que os treinadores conseguissem ter olhos para todos.

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Acabou por voltar às origens, mas não correu mal. Subiu aos seniores do Sarilhense, a jogar com gente grande na III Divisão. Aos 18 anos chegou então à CUF, pela mão de um diretor do clube associado à empresa de produtos químicos que era uma das referências do futebol nacional nesse tempo.

O «serralheiro mecânico» que se fez grande na CUF

Como todos os jogadores da CUF, tinha também um emprego na fábrica, embora apenas no papel. «Só fui lá os primeiros dois meses ou três. Era serralheiro mecânico – o meu curso era de formação serralheira. O chefe não gostava muito de nós, jogadores, porque só trabalhávamos das 8 às 11 porque tínhamos de ir treinar à tarde», contou Manuel Fernandes. Ganhava 800 escudos como jogador e mil na fábrica, qualquer coisa como nove euros.

A estreia na CUF, premonitória, deu-se frente ao Benfica. Manuel Fernandes recordava assim essa derrota por 2-0 a 19 de outubro de 1969, quando saiu do banco para jogar o primeiro dos 486 encontros que somou na Liga portuguesa: «Entrei a 20 minutos do fim e parecia que tinha 100 quilos em cada perna. Não era fácil para um miúdo de Sarilhos de repente estar a jogar com o Eusébio, o Coluna, o Simões.»

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Jogou seis épocas na CUF, onde apurou a versatilidade frente à baliza e o instinto goleador que o definiram e onde marcou 43 golos em 138 jogos, entre eles a estreia nas competições europeias, quando em 1972/73 a CUF jogou duas rondas da então recém-criada Taça UEFA. Estava muita gente de olho nele, mas estava preso à lei de opção que vigorou até ao 25 de abril e condicionava os jogadores à vontade dos clubes. Em 1972 o Sporting tentou contratá-lo, mas a CUF recusou.

Da proposta do FC Porto ao sonho cumprido no Sporting

Foi depois da Revolução, que o apanhou a cumprir o serviço militar numa repartição do exército em Lisboa, que chegou finalmente a Alvalade. Antes, esteve perto do FC Porto. «Cheguei a acordo de verbas e até fiquei instalado no Hotel Nave, mas disse que antes de assinar tinha de falar com a minha família», contou ao Maisfutebol. Mas o Sporting era o seu objetivo desde sempre, um amor que ele nunca escondeu. Chegava a sair a correr dos jogos da CUF, ao intervalo, para saber o resultado dos jogos do Sporting.

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Tinha 24 anos quando cumpriu o sonho de se tornar jogador do Sporting. Estreou-se logo com um hat-trick, num jogo particular com o então Académico de Coimbra, mas nem tudo foram rosas nos primeiros tempos, sob o peso de substituir a lenda Yazalde, agora como avançado-centro, ele que na CUF jogava mais sobre a direita. Demorou a engatar, numa época em que o Sporting não foi além do quinto lugar, mas terminou com 18 golos marcados.

Conquistou o seu primeiro título em 1978, quando marcou o golo que confirmou a vitória dos leões na Taça de Portugal, na finalíssima com o FC Porto. Dois anos mais tarde, já a formar uma dupla memorável com Rui Jordão, festejou a vitória no campeonato nacional, troféu que fugia ao Sporting há seis anos. Em 1981/82 seguiu-se a dobradinha, campeonato e Taça de Portugal.

A nega ao Benfica, apesar da proposta milionária

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O Benfica chegou a tentar contratá-lo, mais do que uma vez. «Uma foi através do Gaspar Ramos e outra – a primeira – através do Romão Martins, que depois foi presidente da Federação. Nós tínhamos sido campeões e como ele não queria que ninguém soubesse, encontrou-me em Coina, num pinhal. Fui ter com ele e depois levou-me no carro dele. Quando me disse o dinheiro que o Benfica me dava, tremi todo mas não vacilei», contou Manuel Fernandes à Focus, a revelar que a proposta era de 30 mil contos (cerca de 150 mil euros), bem mais do que ganhava em Alvalade. «Não sei se ganhei aquilo nos anos todos em que joguei no Sporting», dizia. Mas o seu coração de leão falou mais alto. «Era uma proposta irrecusável, mas nunca aceitaria.»

Continuou em Alvalade, a construir o caminho para se tornar símbolo do clube. Venceu duas vezes o campeonato nacional, duas Taças de Portugal e uma Supertaça, ao longo de 12 anos de leão ao peito.

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O póquer no 7-1: «Nem foi o meu melhor Sporting-Benfica»

Foi o melhor marcador do campeonato nacional em 1985/86, com 30 golos. E foi o homem dos 7-1, o seu momento para a lenda. A 14 de dezembro de 1986, marcou quatro golos nessa vitória do Sporting sobre o eterno rival. Mas, no jeito honesto e aberto que o caracterizava, Manuel Fernandes nem se vangloriava por aí além desse dérbi.

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«Nem foi o melhor Sporting-Benfica que eu fiz», dizia. «O melhor foi quando fomos campeões, em 79/80. Por acaso, gostava de ter esse jogo e não tenho. Ganhámos 3-1 com dois golos do Jordão e um meu. Nesse é que eu estava mesmo endiabrado.» Mas, como ele também dizia, o 7-1 é um marco eterno. «Daqui a 50 anos, quando eu estiver lá em baixo, ainda se vai falar deste jogo e do Manuel Fernandes.»

Foram 433 jogos e 255 golos pelo Sporting, é o segundo melhor marcador de sempre do clube, atrás apenas de Peyroteo. O Eterno Capitão, como muitos o recordam, tem uma longa história em Alvalade, feita de muitos golos, de vitórias e desilusões, alimentada também por rivalidades mas igualmente marcada por momentos que definem a sua generosidade e o seu desportivismo. Como este cumprimento a Humberto Coelho, capitão do Benfica, pela conquista do título em 1983. Imagem doutros tempos.

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Também ficam mágoas. Como a pouca expressão que teve na seleção nacional, onde se estreou em 1975, ainda como jogador da CUF, e onde não foi opção para a fase final de nenhuma grande competição – ficou de fora do Euro 84 e depois do Mundial 86. Ao todo, somou 30 jogos pela seleção e marcou nove golos.

Foi uma mágoa também a forma como foi dispensado pelo Sporting no verão de 1987, quando Keith Burkinshaw sucedeu a Manuel José no banco. Determinado em provar que ainda tinha mais para dar, rumou ao V. Setúbal. Numa época marcada por lesões, ainda fez 30 jogos e apontou 20 golos com a camisola sadina.

O treinador que deu a mão ao miúdo José Mourinho

Depois, iniciou o percurso de treinador. Começou no Bonfim e foi lá que conheceu um miúdo de Setúbal que treinava então os juniores, trabalho que acumulava com o de professor de Educação Física. Manuel Fernandes gostou dele e, quando se mudou para o Estrela da Amadora chamou-o para a sua equipa técnica. Foi assim que começou a carreira de José Mourinho.

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Quando deixou o Estrela, Manuel Fernandes ficou sem clube e a meio da época assumiu a Ovarense e quis voltar a contar com Mourinho. Mourinho dessa vez não foi, mas a ligação manteve-se. Mais tarde, quando foi convidado para voltar ao Sporting como adjunto de Bobby Robson, Manuel Fernandes voltou a lembrar-se de Mourinho. Ele contava assim a história: «No princípio da época não tínhamos clube e em novembro eu fui para a Ovarense. Disse-lhe que ia comigo, mas ele estava a dar aulas em Alhos Vedros e não podia anular a matrícula. Eu disse-lhe para ir de 15 em 15 dias ver os meus adversários a Viseu e a Castelo Branco. Ele disse que não havia problema e foi por ele ter feito isso que, quando o Cintra me convidou para adjunto do Sporting, eu prometi ao Mourinho que o levava comigo para o Sporting.» O resto é história.

As subidas de divisão, o banco do Sporting e a última homenagem

Deixou o Sporting quando Bobby Robson saiu e o desafio seguinte foi o Campomaiorense. Um clube que lhe ficou «no coração», como contou ao Maisfutebol, e onde liderou a equipa na subida histórica à I Divisão em 1995. Voltaria a festejar subidas de divisão com o Santa Clara, Penafiel e U. Leiria, numa longa carreira de treinador que o levou também ao banco do Sporting em 2001. Estava no Santa Clara e respondeu presente quando o clube o procurou, depois da saída de Augusto Inácio. Ficou apenas meia época, marcada pela conquista da Supertaça ao FC Porto, saindo depois para dar lugar a Laszlo Bölöni.

A sua última experiência como treinador foi de novo no V. Setúbal, em 2010/11. Ao longo dos anos que se seguiram assumiu vários cargos na estrutura do Sporting, embaixador e símbolo do seu clube de sempre. Também foi alvo de várias homenagens, a última delas no final desta época. Já doente, recebeu no hospital a visita do presidente e do goleador Viktor Gyökeres, acompanhados da taça de campeão nacional.

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