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Os seus violadores foram condenados a prisão perpétua. Agora, eles estão livres e ela está escondida

Parados numa fila do lado de fora dos portões do centro de detenção preventiva de Godhra, em Gujarat, na Índia Ocidental, os 11 homens de meia-idade poderiam ser confundidos com visitantes dignitários, a receber doces e bênçãos de admiradores locais.

Na realidade, eles faziam parte de um bando hindu, de 2002, que tinha acabado de ser libertado, depois de cumprirem 14 anos de prisão perpétua por um dos crimes mais hediondos da recente história da Índia.

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Desde a sua libertação, em agosto, no Dia da Independência da Índia, os homens têm-se espalhado pelo país.

Mas há uma pessoa que nunca poderá escapar às repercussões do ataque de há 20 anos. Bilkis Bano tinha apenas 21 anos e estava grávida quando foi violada por um gangue que matou 14 dos seus familiares, incluindo a sua filha de 3 anos.

Bano estava demasiado perturbada para falar sobre a libertação dos homens, mas emitiu uma declaração através do seu advogado, dizendo que não tinha sido consultada sobre a decisão e que esta tinha “abalado” a sua fé na justiça. “A minha tristeza e a minha fé vacilante não é apenas para mim, mas para todas as mulheres que lutam por justiça nos tribunais”, disse a declaração.

A recomendação de libertar os homens foi feita por um painel consultivo nomeado pelo governo de Gujarat, liderado pelo Partido Bharatiya Janata (BJP), de Narendra Modi. Os críticos afirmam que a decisão foi manchada por política, misoginia e discriminação religiosa e expõem o que consideram ser a hipocrisia dos líderes do BJP, que afirmam apoiar a igualdade de género e os direitos das mulheres. Alguns legisladores e ativistas apresentaram uma petição ao Supremo Tribunal para que os homens voltassem a ser detidos.

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“O conceito do Artigo 15, onde não haverá discriminação na Constituição com base em sexo, religião ou género, acaba de ser deitado ao lixo”, afirmou uma das peticionárias, Mahua Moitra, legisladora do partido do All India Trinamool Congress (AITC).

Mulheres em Bombaim num protesto contra a libertação dos homens, a 23 de agosto de 2022. Indranil Mukherjee/AFP/Getty Images

Alguns legisladores afirmaram que a decisão teve conotações políticas exageradas, tendo sido feita apenas quatro meses antes de o BJP tentar assegurar a reeleição nas eleições estaduais de Gujarat.

Subhashini Ali, antiga deputada e vice-presidente da All India Democratic Women's Association (AIDWA), que apresentou uma petição separada no Supremo Tribunal, observou que se a intenção era polarizar os eleitores, tinha falhado. “Pela primeira vez, estou a constatar que nem os apoiantes do BJP apoiam o que fizeram”, afirmou.

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Gujarat e os governos centrais não responderam aos pedidos de comentários.

Motins mortais

A luta de Bano por justiça remonta a 2002, quando, em Gujarat, surgiram divisões seculares entre, maioritariamente, hindus e muçulmanos, que, de acordo com os números dos últimos censos, com mais de uma década, constituíam cerca de 10% da população do Estado e cerca de 14% a nível nacional.

Protestantes queimam veículos durante motins em Ahmedabad, na Índia, a 28 de fevereiro de 2002. Manish Swarup/AP

Na altura, multidões hindus atearam fogo a casas e lojas muçulmanas, em retaliação pela bomba incendiária de um comboio perto de Godhra, que matou dezenas de ativistas hindus e cuja culpa foi atribuída aos muçulmanos.

Os ativistas andavam a fazer campanha para construir um templo no local da mesquita Babri Masjid, em Ayodhya, uma cidade que muitos hindus acreditam ser o berço de Rama, a encarnação de Vishnu, uma das divindades mais poderosas do hinduísmo.

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Os muçulmanos ainda estavam de luto pela perda da antiga mesquita de 1992, destruída por nacionalistas hindus, alegadamente com martelos, varas e pás. Isto desencadeou alguma da mais violência sectária mais mortífera da Índia, desde a sua independência, em 1947.

Um inquérito revelou que Modi, então ministro chefe de Gujarat, não foi o culpado dos motins de 2002, que mataram mais de mil pessoas, incluindo a família de Bano. Bano diria mais tarde, ao tribunal, que os homens correram na sua direção com espadas, paus e foices. De acordo com os documentos do tribunal, um agarrou a sua jovem filha e esmagou-a contra o chão. Três homens violaram-na, enquanto os outros atacaram as suas irmãs, tias e as suas filhas. Ela perdeu a consciência e acordou horas depois, rodeada de corpos.

Uma família muçulmana indiana procura objetos de valor na sua casa queimada, enquanto um soldado do exército indiano fica de vigia, no centro da cidade de Ahmedabad, na Índia, a 3 de março de 2002. Manish Swarup/AP

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Em 2008, depois de um julgamento muito divulgado, os agressores foram condenados a prisão perpétua por violação e homicídio, e era aí que Bano esperava que eles ficassem. Mas em agosto deste ano, o governo estatal concedeu-lhes a absolvição, ao abrigo de uma disposição do Código de Processo Penal da Índia, que permite que os prisioneiros sejam libertados uma vez cumpridos 14 anos.

Moitra, do All India Trinamool Congress, ficou horrorizada com a ideia de que Bano, agora na casa dos 40 anos, teria de voltar a tribunal, pelo que ela e outros ativistas contestaram a libertação junto do Supremo Tribunal em seu nome.

“Todos pensaram que Bilkis seria a única a apresentar um pedido de revisão. (Mas) ela estava exausta”, descrevu Moitra. “Ela não conseguia acreditar que a justiça acabaria assim.”

“Por isso, penso que esse dever cabe a todos nós.”

Mahua Moitra, do All India Trinamool Congress, apresentou uma petição junto do Supremo Tribunal para reverter a decisão. Sonu Mehta/Hindustan Times/Getty Images

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Porque foram libertados?

O Supremo Tribunal desempenhou um papel na libertação dos prisioneiros e irá agora decidir se esta deve ser mantida ou invertida, segundo Sanjay Hegde, advogado sénior no tribunal.

Este disse que o tribunal tinha, anteriormente, instruído as autoridades para considerarem o pedido de clemência dos prisioneiros, ao abrigo de uma política de absolvição de 1992.

Esta política deu o direito a todos os prisioneiros de procurarem a absolvição após 14 anos de pena, independentemente do crime que tenham cometido. As regras foram reforçadas em 2014, de modo que alguns criminosos, incluindo violadores e assassinos, não fossem elegíveis para libertação antecipada.

O Primeiro Secretário Adicional de Gujarat, Raj Kumar, contou ao Press Trust of India (PTI) que os homens foram libertados segundo as regras que estavam em vigor na altura da sua condenação.

O presidente nacional da ala feminina do BJP, Vanathi Srinivasan, sublinhou que o governo de Gujarat seguiu a lei. “Eles não foram libertados por razões políticas”, acrescentou, de acordo com o PTI.

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A decisão de libertar os 11 homens incitou protestos em todo o país. Este foi em Calcutá, a 23 de agosto de 2022. Bikas Das/AP

Contudo, em comentários gravados em vídeo, CK Raulji, um legislador do governo do BJP e membro do painel que recomendou a libertação, sugeriu que a sua casta pode ter tido algo a ver com isso. “Eles são boas pessoas, os brâmanes. E os brâmanes são conhecidos por terem uma boa ‘sanskaar’ (moral). Alguém pode ter tido a má intenção de os encurralar e castigar”, disse, segundo o site de notícias independente Mojo Story.

Embora o sistema de castas ser já há muito proibido na Índia, o sistema tradicional de hierarquia social mantém os brâmanes hindus acima de outras castas, especialmente, acima dos muçulmanos.

Durante os últimos oito anos de Modi no poder, muitos muçulmanos dizem que a intolerância religiosa se tornou mais pronunciada e que os crimes contra muçulmanos são mais comuns.

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“O governo está a enviar uma mensagem muito clara: mostra-me o teu rosto e mostrar-te-ei como a lei se aplica a ti”, considerou Moitra. “Mostra-me a tua religião e mostrar-te-ei como a lei se aplica a ti. E, de certa forma, mostra-me o teu sexo e mostrar-te-ei como a lei se aplica a ti.”

Hegde disse à CNN que não havia nenhuma razão legal para o Supremo Tribunal não poder inverter a libertação dos homens e ordenar a sua rendição às autoridades.

“Se eles se recusarem a render-se, poderão ser tomadas as medidas apropriadas”, afirmou.

Uma vida nas sombras

Yakub Rasool, marido de Bano, concordou em encontrar-se com a CNN ao lado de uma autoestrada no distrito de Godhra, em Gujarat, para não revelar a localização da sua esposa, que está escondida. “A Bilkis está tão perturbada que não fala com ninguém”, revelou.

Rasool disse que o casal mudou de casa cerca de 20 vezes nas últimas duas décadas e que, agora, temia a retribuição dos homens, que viviam na mesma aldeia quando os tumultos começaram.

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“Depois do incidente, tivemos de abandonar a aldeia, mas ainda hoje vivem lá cerca de 150 famílias muçulmanas”, indicou. “Estão todas assustadas. Sentem que estes homens vão criar problemas, agora que estão livres.”

Por toda a Índia, foram realizados protestos de apoio a Bano, condenando a decisão como um ataque não só aos muçulmanos, como também aos direitos das mulheres, num país onde os dados do governo mostram que uma mulher é violada a cada 17 minutos. Alguns viram a libertação dos agressores como um ato deliberado de apelo aos votos dos apoiantes do BJP, antes das eleições estaduais de Gujarat.

“A mensagem que o governo de Gujarat está a enviar aos seus eleitores é: ‘apoiamos os homens que violaram mulheres muçulmanas nos tumultos de 2002, votem em nós’”, considerou a ativista Kavita Krishnan aos apoiantes, num comício em Deli, em agosto.

Os críticos dizem que a decisão reflete a discrepância entre as mensagens do governo sobre os direitos das mulheres e a realidade quotidiana da maioria delas. Os homens foram libertados no Dia da Independência, no mesmo dia em que Modi se dirigiu à nação, a partir de um pódio no histórico Forte Vermelho, em Deli, incitando os seus compatriotas a mostrar respeito pelas mulheres.

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“Deveria existir um sentimento de respeito por elas e, nisto, o governo, a administração, a polícia e o sistema judicial terão de cumprir o seu dever 100%. Temos de fazer esta resolução”, defendeu Modi.

Mas Rasool entende que não foi mostrado respeito à sua esposa, que lutou por justiça durante muitos anos.

O casal quer a decisão invertida, tal como aqueles que apresentaram petições ao Supremo Tribunal. “Acreditamos veementemente que o que aconteceu à Bilkis foi errado e que os condenados deveriam ser mandados de volta para a prisão”, pede.

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