A mais recente estimativa sobre o número de mortos provocado pela guerra do Tigré foi divulgada pelo mediador da União Africana para o conflito e ex-presidente da Nigéria, Olusegun Obasanjo, ao Financial Times, a 15 de janeiro. Obasanjo falou em cerca de 600 mil mortos, salientando que, a partir de 2 de novembro do ano passado, dia em que foi assinado o acordo de paz entre o governo etíope e a Frente Popular de Libertação do Tigré, terão sido evitadas cerca de mil mortes por dia.
São números impressionantes, tendo em conta as cifras registadas noutros conflitos – de acordo com estimativas das Nações Unidas, a guerra da Síria fez cerca de 350 mil mortos em dez anos e a guerra do Iémen fez 377 mil mortos em sete anos.
PUB
Ainda assim, e apesar de a região do Tigré ter sofrido bloqueios por longos períodos de tempo que tornaram particularmente difícil a realização de uma investigação independente, a mortandade brutal anunciada por Obasanjo é corroborada por especialistas que se debruçaram sobre o conflito. É o caso de Tim Vanden Bempt, académico na Universidade de Ghent, na Bélgica, e membro de um grupo de investigadores que denunciou as atrocidades cometidas no território. O especialista acredita que os números anunciados por Obasanjo não estarão muito longe da realidade: por um lado, tendo em conta os relatórios feitos no terreno, o número de civis mortos pode situar-se entre os 300 mil e os 400 mil e, por outro, há dados não oficiais que indicam que o número de mortos em batalha pode estar entre os 200 e os 300 mil mortos.
De resto, não foi por falta de alertas, tanto de peritos como de organizações internacionais, que se chegou a números tão devastadores. Logo quando começou o conflito, em novembro de 2020, as Nações Unidas mostraram preocupação com o cenário de grande instabilidade que se estava a desenhar num país com cerca de 120 milhões de habitantes e cerca de 80 grupos étnicos, que figura entre as nações mais pobres do mundo.
PUB
"A estabilidade da Etiópia é importante para toda a região Centro-Africana. Insto a que a escalada de tensões termine e seja possível chegar a uma resolução pacífica", afirmava o português António Guterres, secretário-geral da ONU, poucos dias depois da guerra brotar na nação africana.
A guerra começou em novembro de 2020 como o culminar de um ambiente de grandes tensões políticas e administrativas, que foi escalando desde que Abyi Ahmed chegou ao poder, em 2018. Abyi Ahmed ordenou uma ofensiva contra os separatistas da Frente Popular de Libertação do Tigré, enviando o exército federal para a região. Em resposta, o grupo de rebeldes atacou a base principal do exército em Mekelle. Começava assim o conflito armado, que se intensificou depois com a entrada das forças militares da Eritreia a apoiarem o governo federal.
PUB
Não foi preciso muito tempo para que a região do Tigré, que vivia num sistema praticamente no limite da autossuficiência, visse o setor da agricultura profundamente arrasado pelos combates. Apenas seis meses depois do início do conflito, o índice internacional que avalia a fome no mundo, conhecido como IPC, estimava que 5,5 milhões de pessoas no país já estivessem numa situação de emergência e 350 mil já se encontrassem mesmo numa situação de fome. As taxas de desnutrição atingiram 40% em crianças menores de 5 anos e o nível de insegurança alimentar chegou a 89% da população total, segundo dados do Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas (PAM). O geógrafo Jan Nyssen, da Universidade de Ghent, alertou para a situação dramática no país, afirmando que se estava a usar a fome como "arma de guerra".
Por outro lado, o território ficou praticamente isolado durante longos períodos de tempo, com comunicações cortadas e camiões retidos na fronteira, incluindo os veículos que levavam ajuda humanitária. Além da privação de alimentos, escasseavam também medicamentos essenciais. A taxa de mortalidade no país recuava aos níveis de 1950.
PUB
Entretanto, esta tragédia humanitária era ocultada pelo governo etíope, com várias medidas que limitavam a liberdade de imprensa. Abyi Ahmed impôs restrições no acesso da imprensa ao território e poucos foram os jornalistas que arriscaram infringir as proibições governamentais. Uma das guerras mais brutais da história recente desenrolava-se longe e intensificava-se de forma praticamente "invisível" para o resto do mundo.
Além do bloqueio que isolou a região, os bombardeamentos e massacres eram constantes e brutais, de acordo com os relatórios dos peritos independentes da Universidade de Ghent. Organizações como a Amnistia Internaiconal e a Human Rights Watch consideraram que foram usadas táticas de limpeza étnica e, embora não tenha havido consenso por parte dos investigadores, alguns académicos chegaram mesmo a falar em genocídio.
Cinco meses de tréguas deram alguma paz ao civis do Tigré, entre março e agosto do ano passado, mas o desespero voltou e em força. A catástrofe humanitária acabaria por se estender por dois anos, com milhões de mulheres e crianças afetadas.
Só em novembro do ano passado, na África do Sul, o acordo de paz foi conseguido e depois de vários dias de conversações entre as delegações de ambas as partes. Foi numa conferência de imprensa em Pretória que o mediador das negociações Olusegun Obasanjo aunciou o fim das hostilidades e apresentou o documento de oito páginas que selava o fim do conflito. O ex-presidente da Nigéria adiantava ainda que o governo de Abiy Ahmed e os rebeldes do Tigré tinham chegado também a acordo para um "desarmamento ordenado, suave e coordenado", juntamente com o "restabelecimento da lei e da ordem", o "restabelecimento dos serviços" e o "acesso sem entraves aos fornecimentos humanitários".
PUB