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Pescueza - esta terra é para velhos

Bastidores da reportagem sobre uma vila espanhola sem lares de idosos

A meio da manhã orvalhada, dou com dois velhos janotas sentados num banco do pátio do Centro de Dia de Pescueza. Meto conversa com o do panamá alvo. Dá ares de ser um homem bonachão. O outro parece ser de poucas falas.

—  Seja bem aparecido, cavalheiro!

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Ángel Martín Sánchez, por alcunha Tío Ángel, é poeta. Sorri-me. Tem 96 anos cumpridos. Diz-me de ímpeto que sabe de cor e salteado dezenas de poemas do seu conterrâneo José María Gabriel y Galán (1870 – 1905).

— O poema dele de que eu mais gosto é “El Embargo”. Quer ouvir? — indaga, com boa disposição.

O ancião mede-me de alto a baixo e, sem esperar pela resposta, põe-se a declamar o poema em castúo, um dialecto da Estremadura espanhola.

— Señol jues, pasi usté más alanti… (Senhor juiz, passe mais adiante)

Saboreio a recitação com deleite, que remédio. Dou comigo a pensar nos meus amigos poetas: o moçambicano Virgílio de Lemos (1929 – 2013) e o galego Alfonso Armada (Vigo, 1958).

— Tenho uma memória fantástica. Sei uma data de poesias. Não tenho é aqui a carteira comigo. Dava-lhe os títulos todos…

— É tudo de José María Gabriel y Galán?

— É quase tudo dele. É pois...

— Antonio Machado, Federico García Lorca, Rafael Alberti, Rosalía de Castro…

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— Não. Não...

Encontro com Tío Ángel, o poeta (à esquerda na foto), e Tío Isidoro, o irmão ex-Guardia Civil Foto: Rui Araújo

Por descargo de consciência, opto por cumprir o papel de jornalista. E inicio a singular entrevista. O meu parceiro, Rui Pereira, profere um lacónico “Estou a gravar”, os olhos postos no viewfinder da SXS. Ele sabe, bem entendido, que não podemos perder tempo.

— Nascido e criado em Pescueza. Éramos agricultores humildes. Lavradores. O amanho da terra. As árvores, a apanha das bolotas e essas coisas todas quando deixámos de ir à escola. Também gostávamos do gado. Tínhamos porcos para as matanças, para essas coisas, e ainda uma junta de vacas e isso.

Em Pescueza, “todos encarreiravam para a lavoura e a pastorícia” (diria Aquilino Ribeiro anos depois de publicar “El hombre que mató al diablo” na Novela Semanal, em Madrid).  

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Uns anos depois, Aquilino Ribeiro publica em Portugal "O homem que matou o Diabo" Foto: Captura de ecrã

Tío Ángel era um aldeão mais igual aos outros. O seu mundo era lavoura e o gado. E a leitura. A poesia, sobretudo. Ele devorava poesia.

A sua casa não era das mais ricas do lugar. Era apenas uma família remediada e honrada que não aspirava a mais nada do que a ser isso mesmo...

— Era feliz aqui?

— Pois era. E continuo a ser feliz na minha casita… — diz a sorrir.

— Um velho feliz… — exclamo ou pergunto, pouco importa.

— Sim...

A reposta, decididamente, não me convence. Experimento de novo.

 —  Um velho feliz…

Ele não se ofusca com a minha insistência.

— A verdade é que a solidão me mata! Morreu-me a mulher há quatro anos. Estávamos casados há 65...

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Escuto, calado. Não tenho outra saída. O ancião segura uma bengala, que mais parece um cajado.

— Casados, eh! E fomos muito felizes! Foi a única rapariga de quem gostei. Éramos os dois daqui. E já está... — conclui.

Palavras do jornalista Raul Brandão (1867 – 1930) a propósito de outro amor da mesma casta: “Um dia destes temos de nos separar, e é natural que seja eu, que sou mais velho, o primeiro a partir... Antes, porém, quero dizer-te que te devo o melhor da vida.”

Daniela Goméz Martín, a mulher de Tío Ángel, partiu primeiro. Faleceu em 2017.

 — O que é a morte para o senhor?

 — O que é a morte para mim? Eu não devia dizer isto, mas há aqui pessoas… Prefiro a morte. Sim. Porque aquilo não é viver. Viver assim não é viver. Terem de dar-te a comida, terem de lavar-te, terem de…

Ángel é homem de carácter. Respondo-lhe com um silêncio amargo. A velhice deforma-nos. Pior: a dependência. Tal como a solidão imposta ou, por outras palavras, a morte social.

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Isidoro, o seu irmão mais novo, nem sequer pestaneja. Há separações dolorosas. E há a morte, que dá plenamente sentido à vida e não devia deixar ninguém indiferente.

— Vidas assim, não lhes dou nenhum valor. Isso não é viver. Quando chegar a esse estado, não vou suicidar-me, mas...

— E qual é a maior alegria, hoje, para si?

Tento cumprir o papel de jornalista, mas é caso para dizer “Aqui-d’el rei”. A pergunta é incómoda. Ignoro qual será a reacção. Feitas as contas, o velho engoia-se como pode no banco, pensativo.

— A maior alegria para mim seria uma companheira, pelo menos, durante a noite…

— Em quartos separados… — pergunto ou insinuo com um sorriso sardónico nos lábios.

— Isso já não faz falta... — profere.

— Nunca se sabe… — returco em tom de provocação.

O idoso espraia o olhar pelo pátio vazio e desata a rir à gargalhada. De facto, é poeta mas não tem cara de pinga-amor.

— Mas o que é que queres dizer com isso?

Há sempre coisas dignas de serem saudadas, creio.

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— Ouve lá, vou dizer-te uma coisa…

— Diga lá.

— Eu digo. Para o que é que eu quero uma mulher? É para companhia. É para falar. No que diz respeito ao sexo, nada.

— E o amor?

— Homem, o amor é o melhor que há se é um amor verdadeiro. É o melhor. Um amor bom. Fui muito feliz com a mulher. Muito feliz porque fizemos uma boa combinação. Eu é que mandava lá em casa. Ela fazia o que queria em matéria de gado. Havia momentos em que me zangava, mas…

Ele arqueia os ombros e mete-se a rir. Deixo-o dar largas à alegria.

— Este português é danado para a brincadeira…  

Pescueza, uma vila espanhola sem lares de idosos Foto: Rui Araújo

Os poetas têm sempre razão. Topo a frase anónima pintada em letra amarela no banco roxo do meu querido artista. "O prazer é a flor que floresce, a recordação o perfume que perdura". Seja… Mas, nada é eterno e como escreveu Raul Brandão "o que aqui conserva um carácter eterno são as árvores, os montes e o trabalho no campo e nas eiras, que à força de ser transmitido — sempre os mesmos gestos — adquiriu uma beleza extraordinária, entranhada até ao âmago nos vivos e nos mortos."

É assim. Tío Ángel, o poeta de Pescueza, partiu umas semanas depois de eu o entrevistar. Partiu porque as pessoas só morrem mesmo quando já ninguém se recorda delas.

O jornalista escreve de acordo com a antiga ortografia

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