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As futuras guerras energéticas do mundo serão travadas no fundo do mar. E Putin está na frente

Quando os nova-iorquinos tomam o seu café da manhã, a sua rede eléctrica precisa de um empurrão. Dezenas de centrais eléctricas entram em funcionamento quando a procura de eletricidade aumenta à hora do pequeno-almoço - e continua a aumentar até a cidade terminar o jantar.

Uma grande parte dessa energia continua a ser gerada pelo por natural, que aquece o planeta, e embora o estado de Nova Iorque, nos Estados Unidos, esteja a tentar rapidamente tornar a sua rede mais ecológica, para abrandar as alterações climáticas, nem sempre há vento ou sol suficientes para contar com eles em tempo real. A tecnologia para armazenar energia renovável durante longos períodos também ainda não foi dominada.

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Um grupo de empresários está a procurar uma solução a 4 800 quilómetros de distância - não a oeste, para a solarenga Califórnia, com o seu potencial solar, mas a leste, para a cinzenta e chuvosa Grã-Bretanha.

O grupo quer construir o que seria a maior interconexão submarina de energia do mundo entre continentes, ligando a Europa e a América do Norte com três pares de cabos de alta tensão. Os cabos estender-se-iam por mais de 3 200 quilómetros ao longo de todo o fundo do Oceano Atlântico para ligar locais como o oeste do Reino Unido ao leste do Canadá e, potencialmente, Nova Iorque ao oeste de França.

A interconexão enviaria energia renovável tanto para leste como para oeste, tirando partido da viagem diurna do sol pelo céu.

"Quando o sol está no seu zénite, temos provavelmente mais energia na Europa do que aquela que podemos utilizar", explica Simon Ludlam, fundador e diretor executivo da Etchea Energy, e um dos três europeus que lideram o projeto. "Temos energia eólica e também temos demasiada energia solar. É uma boa altura para a enviar para um centro de procura, como a costa leste dos Estados Unidos".

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"Cinco ou seis horas mais tarde, é o zénite na Costa Leste e, obviamente, nós, na Europa, voltámos para jantar e temos o fluxo inverso", acrescenta.

A interconexão transatlântica ainda é uma proposta, mas as redes de cabos de energia verde estão a começar a espalhar-se pelos fundos marinhos do mundo. Estão a tornar-se rapidamente parte de uma solução climática global, transmitindo grandes quantidades de energia renovável a países que lutam sozinhos para fazer a transição ecológica. Mas também estão a forjar novas relações que estão a remodelar o mapa geopolítico e a deslocar algumas das guerras energéticas mundiais para as profundezas do oceano.

A necessidade de descarbonizar nunca foi tão urgente. Durante esta década, o mundo tem de se libertar dos combustíveis fósseis e reduzir para cerca de metade as suas emissões de carbono se quiser limitar as alterações climáticas a níveis em que os seres humanos e os ecossistemas se possam adaptar e sobreviver confortavelmente, de acordo com o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas.

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Os cabos submarinos poderão revelar-se uma ferramenta crucial para acelerar a adoção de energias renováveis. O mundo está a ficar para trás nos seus objectivos climáticos, com a maioria dos países ainda não alinhados com o Acordo de Paris para reduzir a poluição que aquece o planeta, como mostra a análise do Climate Action Tracker.

Já existem cabos de energia entre vários países da Europa, a maioria dos quais são vizinhos aliados. Nem todos transportam exclusivamente energia renovável - o que por vezes é determinado pela rede de energia de cada país - mas estão a ser construídos novos cabos para um futuro de energia verde.

O Reino Unido, onde o espaço terrestre para centrais eléctricas é limitado, já está ligado por via marítima à Bélgica, Noruega, Países Baixos e Dinamarca. O país assinou uma ligação solar e eólica com Marrocos para tirar partido das muitas horas de luz solar e dos fortes ventos alísios que atravessam o equador até ao país do Norte de África.

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Central de energia solar da Noor Energy nos arredores da cidade marroquina de Ouarzazate, na orla do deserto do Sara. Fadel Senna/AFP/Getty Images
Turbinas no parque eólico offshore de Burbo Bank, ao largo da costa noroeste de Inglaterra, perto de New Brighton. Paul Ellis/AFP/Getty Images

Propostas semelhantes estão a surgir em todo o mundo. Um projeto chamado Sun Cable pretende enviar energia solar da solarenga Austrália, onde há muito terreno, para Singapura, país do sudeste asiático que também tem muito sol mas muito pouco espaço para parques solares.

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A Índia e a Arábia Saudita planeiam ligar as respectivas redes eléctricas através do Mar Arábico, o que é parte de um plano mais vasto de corredor económico para ligar a Ásia, o Médio Oriente e a Europa. A iniciativa tem o apoio da administração norte-americana de Joe Biden pelo seu potencial para contrariar a Iniciativa "Uma Faixa, Uma Rota" da China, que consiste principalmente em projectos de energia e infraestruturas que ajudaram Pequim a reforçar a sua riqueza e influência global.

Os cabos Europa-EUA poderiam enviar à velocidade da luz 6 gigawatts de energia em ambas as direcções, diz Laurent Segalen, fundador da empresa de energias renováveis Megawatt-X, com sede em Londres, que também faz parte do trio que propõe a interconexão transatlântica. É o equivalente ao que podem produzir seis centrais nucleares de grande dimensão, transmitidas em tempo quase real.

Agressão russa no mar

A interconexão transatlântica está na sua fase inicial e necessitará da adesão de vários países e Estados, bem como de um investimento considerável. Na melhor das hipóteses, poderá ser construído em meados da década de 2030.

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O trio que está por detrás do megaprojeto está otimista quanto à possibilidade de encontrar apoiantes, não só para abrandar as alterações climáticas, mas também para contrariar a Rússia nas guerras energéticas globais e para lutar contra a China pelo domínio das tecnologias de energia limpa, que encontraram novas fronteiras no fundo do mar.

O trio não se esquiva às implicações geopolíticas do seu projeto. Em vez disso, estão a encarar a Rússia de frente, optando por chamar à sua interconecão The North Atlantic Transmission One-Link - ou NATO-L.

A esperança é que o projeto tenha resultados positivos em termos de segurança global: as interconexões obrigarão as nações a pensar cuidadosamente sobre quem devem ser os seus aliados num mundo geopolítico em rápida mudança, e a pensar duas vezes antes de se envolverem em disputas diplomáticas ou, pior ainda, em conflitos militares.

Isso já está a acontecer, de certa forma, com os combustíveis fósseis. O gasoduto Nordstream 2, que ligava a Rússia à Alemanha, foi abandonado em 2022, após a invasão da Ucrânia pela Rússia, e mais tarde sabotado no mar. As nações europeias também começaram a partilhar a sua energia entre si de forma mais ativa nesta altura, em parte através das suas redes de cabos submarinos existentes, para dependerem menos do gás russo.

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"Quando houve a invasão da Ucrânia, houve um hiato nos mercados da eletricidade e do gás, e as interconexões responderam logicamente", diz Ludlam, da Etchea Energy. "Viemos em auxílio dos nossos vizinhos e isso criou uma dependência que foi testada com raiva e venceu. E quando se tem uma destas dependências, é menos provável que se faça algo para a agravar".

A Europa também se voltou para as importações de gás liquefeito dos EUA para substituir a energia russa, aproximando os dois aliados de longa data após os quatro anos fraturantes da presidência de Trump.

Mas os cabos submarinos também não são invulneráveis. A Rússia tem vindo a utilizar o oceano para intensificar os seus ataques na zona cinzenta - actos de provocação e intimidação que não chegam a ser um verdadeiro conflito armado - visando a Europa e, em menor grau, os EUA.

No ano passado, um documentário conjunto dos organismos públicos de radiodifusão da Dinamarca, Finlândia, Noruega e Suécia revelou que a Rússia estava a levar a cabo alegadas operações de espionagem submarina em torno de cabos de energia, bem como de parques eólicos offshore e gasodutos, no Mar do Norte e no Mar Báltico.

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Foi então alegado que os navios russos, tanto militares como civis, estavam a tentar mapear infraestruturas submarinas críticas e que, provavelmente, teriam a capacidade de cortar a energia nos Estados europeus.

Na altura, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, desvalorizou o documentário e disse que a sua existência era um sinal de que os países europeus "preferem mais uma vez culpar sem fundamento a Rússia por tudo".

O efeito do aumento dos ataques russos na zona cinzenta parece ser sobretudo uma intimidação psicológica, afirma George Dyson, analista sénior de riscos de segurança da empresa de consultoria Control Risks - um aviso à Europa Ocidental de que a Rússia tem capacidade para fazer pior, se assim o entender.

Estes ataques tornaram-se particularmente comuns no Mar do Norte, diz Dyson.

"Houve ataques a depósitos de armas, bem como a navios que transportavam armas para a Ucrânia. "Mas não é muito estratégico. Parecem um pouco descoordenados".

Uma investigação conjunta de quatro emissoras públicas alegou que navios espiões russos estavam a recolher informações no mar. Morten Kruger/DR

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Parte de um cabo submarino de Internet entre Aqaba, na Jordânia, e Taba, no Egipto, no Mar Vermelho. As conexões de Internet também foram danificadas no mar. Frank Schneider/imageBROKER/Shutterstock

O Atlântico é tão profundo que a interconexão NATO-L estaria provavelmente bem protegido - poderia descer até quase 3 400 metros, mais baixo do que os submarinos alguma vez poderão espreitar. Mas os cabos submarinos são mais vulneráveis quando sobem para águas menos profundas para regressar a terra, como a NATO-L teria de fazer através de quilómetros de plataforma continental, onde podem ser sabotados ou danificados por âncoras ou arrastões de pesca.

Um corte nos cabos de telecomunicações no Mar Vermelho, em março, mostrou como estes danos podem ser perturbadores - estima-se que 25% do fluxo de dados foi cortado entre a Ásia e a Europa. O corte foi amplamente atribuído aos ataques dos rebeldes Houthi na zona, embora os Houthis tenham negado as acusações, e subsistem dúvidas quanto ao facto de ter sido intencional ou acidental.

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Apesar das preocupações com a segurança no mar, as infraestruturas críticas em terra não parecem muito mais seguras. As centrais eléctricas da Ucrânia, incluindo as que funcionam com energias renováveis hidroeléctricas e nucleares, foram muitas vezes alvo de ataques russos.

Mas o atrativo dos ataques no mar é o facto de ser onde os rivais europeus da Rússia estão a reforçar rapidamente as suas ligações e a sua capacidade de gerar e partilhar energia verde produzida internamente.

Durante décadas, a Rússia desempenhou um papel "sobredimensionado" na cena mundial devido aos seus abundantes recursos de carvão, petróleo e gás, declara Alberto Rizzi, um investigador do Conselho Europeu de Relações Externas que estuda a geopolítica da energia e das infraestruturas. Mas isso pode mudar à medida que os seus rivais económicos, a Europa e os Estados Unidos - e até mesmo os tradicionais países petrolíferos do Médio Oriente - investem em energias renováveis.

"Se olharmos para os países do Golfo, eles estão a investir fortemente em energias renováveis. Querem ser também um importante fornecedor de energia verde. Querem manter o papel que têm atualmente em termos de potência energética, mesmo durante a transição", afirma Rizzi. "Depois temos outros países, como a Rússia, por exemplo, que não está a investir em energias renováveis e, por isso, está a ser deixada de fora."

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Há uma simplicidade em ligar os aliados europeus, muitos dos quais fazem parte da União Europeia a 27. Ligar a América do Norte à Europa será politicamente mais complicado. Pode enviar um sinal à Rússia de laços fortes, mas os anos Trump também mostraram que a ligação EUA-UE, particularmente na questão da NATO e da defesa, não é inquebrável.

A eleição presidencial dos EUA em novembro poderá ter consequências para projectos energéticos como o NATO-L, apesar de o seu objetivo ser atravessar gerações e sobreviver às mudanças de governo.

"Um cabo submarino pode ser explorado por uma presidência transacional como a de Trump para forçar concessões da Europa noutras áreas", diz Rizzi. "E uma vez construído esse laço, é muito difícil desatá-lo."

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