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O que a Coreia do Norte aprendeu com a Ucrânia: agora é a altura perfeita para um avanço nuclear (análise)

Se a Coreia do Norte estava à procura de outra desculpa para seguir em frente com o seu programa de armas nucleares, acabou de encontrar uma na invasão da Ucrânia pela Rússia.

O facto de um dos poucos países que renunciou voluntariamente a um arsenal nuclear estar agora a ser atacado pelo mesmo país a quem entregou as suas ogivas não deixará de ser tido em conta em Pyongyang.

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Na verdade, segundo os analistas, as ações de Moscovo ofereceram à isolada nação asiática uma “tempestade perfeita” de condições para intensificar o seu programa.

A Coreia do Norte não só irá usar a situação da Ucrânia para reforçar a sua narrativa de que precisa de bombas nucleares para garantir a sua sobrevivência, como o líder Kim Jong-un poderá presumir que, com todos os olhos postos na guerra na Europa, as suas ações poderão passar mais incólumes do que nunca.

A comunidade internacional, dividida em relação à Ucrânia, terá provavelmente pouco apetite por sanções sobre aquele estado eremita; na verdade, mesmo a condenação unânime de um recente teste norte-coreano de um míssil balístico intercontinental revela-se difícil. Para além disso, o boicote ao petróleo e ao gás russo poderá inclusive abrir a porta a acordos de energia a preços reduzidos entre Pyongyang e Moscovo - aliados ideológicos cuja amizade remonta à guerra da Coreia na década de 1950.

Na pior das hipóteses, os especialistas questionam se este poderá ser o início de uma cadeia de eventos outrora impensável que poderá terminar com o regresso do conflito entre as Coreias, talvez até com a Coreia do Norte a invadir a Coreia do Sul - ainda que a maioria considere este cenário como altamente improvável.

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Segundo o professor Andrei Lankov, da Universidade de Kookmin, a lição que a Coreia do Norte aprendeu com a guerra da Rússia na Ucrânia é simples:

“Nunca ceder as armas nucleares.”

Descolagem do míssil balístico estratégico de médio alcance Hwasong-12 da Coreia do Norte em 2017.
Uma lição nuclear, da Ucrânia a Saddam e Khadafi

A invasão de Moscovo do seu país vizinho reforçou uma mensagem que tem estado na mente de Pyongyang há décadas, disse Lankov.

Quando a Ucrânia fazia parte da URSS, abrigava milhares de ogivas nucleares. Entregou-as voluntariamente à Rússia após o colapso da União Soviética em 1991, como parte de um acordo em 1994 com os EUA, Reino Unido e Rússia que garantiria a segurança da Ucrânia, um acordo conhecido como o Memorando de Budapeste.

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A Ucrânia é agora objeto de um ataque brutal por parte do mesmo país que assinou o acordo para proteger a sua soberania - um país que se tem referido repetidamente ao seu arsenal nuclear para dissuadir o Ocidente de uma intervenção.

Teria Moscovo invadido a Ucrânia se esta tivesse mantido as suas ogivas nucleares?

A maioria dos especialistas - e muito provavelmente também Pyongyang – acredita que não.

“Agora (os norte-coreanos) receberam mais uma confirmação (desta lição) depois do Iraque, depois da Líbia”, disse Lankov.

Pyongyang usa regularmente as experiências de Saddam Hussein e Muammar Khadafi, os antigos líderes do Iraque e da Líbia, para justificar o seu programa nuclear, tanto junto do seu povo como do mundo. Ambos os ditadores perderam o controlo do poder - acabando por perder também as vidas - depois de as suas ambições nucleares serem interrompidas.

A invasão russa irá reforçar essa narrativa, mas, ao fazê-lo, poderá também ter um “impacto muito negativo” na mente do próprio autocrata da Coreia do Norte, de acordo com Lee Sang-hyun, presidente e investigador sénior do Instituto Sejong.

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Este afirma que é provável que Kim responda de uma única forma: tornando-se “ainda mais obcecado com as suas armas nucleares e a capacidade dos seus mísseis”.

Mísseis em exibição durante uma parada militar na Praça Kim Il-sung em Pyongyang em abril.
Carta-branca de Pyongyang

Mesmo antes da invasão, a Coreia do Norte já tinha mostrado sinais de intensificação das suas ambições nucleares.

No último sábado, realizou o seu 14.º lançamento de mísseis do ano - uma subida face aos quatro testes em 2020 e oito em 2021. Pensa-se que um dos mísseis testados este ano foi um míssil balístico intercontinental (MBIC) presumivelmente capaz de atingir os EUA continentais. Esse foi o primeiro teste com um MBIC desde 2017 e foi amplamente considerado como um prenúncio de futuros testes.

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Kim deixou clara a sua intenção de avançar a toda a velocidade com o seu programa nuclear numa parada militar em 25 de abril último.

E imagens de satélites comerciais sugerem que Pyongyang está a tentar recuperar o acesso ao seu local de testes subterrâneos de Punggye-ri, de acordo com autoridades e grupos de reflexão sul-coreanos.

Autoridades norte-americanas disseram à CNN que a Coreia do Norte poderá estar pronta para retomar os testes nucleares no final deste mês.

Neste contexto, a invasão russa - e as sanções internacionais que se seguiram - criaram uma “tempestade perfeita” de condições para Pyongyang atuar, dizem os analistas.

“Existem algumas consequências interessantes, talvez não intencionais, para a resposta ocidental contra a Rússia em particular. Hoje temos uma Rússia completamente isolada da economia global e colocada sob uma tremenda pressão devido às sanções. Creio que tem muito poucos incentivos para impor sanções contra a Coreia do Norte”, disse Ankit Panda, um membro sénior do Programa de Política Nuclear do Fundo Carnegie para a Paz Internacional.

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Uma clara divisão entre os membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas - Rússia e China de um lado, Reino Unido, EUA e França do outro - significa que é impossível qualquer decisão unânime de punir a Coreia do Norte.

“É bastante óbvio que a China e a Rússia irão bloquear quaisquer sanções adicionais e, francamente, não é claro que sanções ainda podem ser impostas”, disse Lankov.

Mesmo um sétimo teste nuclear poderá não provocar a habitual resposta negativa de Pequim: “A China não vai ficar contente com os testes nucleares, mas vão tolerá-los”, disse Lankov.

Lucrar com um velho amigo

Na verdade, a Coreia do Norte até pode beneficiar financeiramente, perante o boicote de outros países ao petróleo e gás russos. Dadas as suas dificuldades financeiras, o país ficaria mais do que feliz em ficar com parte desses recursos, potencialmente a um preço mais baixo, podendo negociar com a Rússia sem as limitações decorrentes das sanções lideradas pelos EUA contra a Coreia do Norte.

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“Julgo que a Rússia vai fornecer mais apoio económico e apoio energético à Coreia do Norte”, disse Ramon Pacheco Pardo, professor catedrático KF-VUB Korea no Instituto de Estudos Europeus da Universidade de Vrije, em Bruxelas.

“O petróleo e o gás, certamente, mas também poderá incluir alimentos... fertilizantes, todo o tipo de apoio económico que a Coreia do Norte desejar.”

Pyongyang ficar do lado de Moscovo numa nova ordem mundial não seria uma surpresa.

As relações entre os dois países iniciaram-se com a Guerra da Coreia de 1950-1953, tendo partilhado uma ideologia comunista ao longo de décadas.

A antiga União Soviética era um grande protetor da Coreia do Norte, apoiando financeiramente o regime de Kim. Embora essa tarefa tenha agora sido transferida para a China, o regresso da Rússia a um governo autoritário com o presidente Vladimir Putin veio dar um novo ímpeto à relação.

“(Pyongyang) sentia-se algo revoltada com a Rússia democrática e liberal, ou semidemocrática e semiliberal que existia, e basicamente saudaram Vladimir Putin como um líder que estava a levar o país na direção certa”, disse Lankov.

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A efémera dança de Kim com os EUA - tendo realizado três reuniões com o ex-presidente Donald Trump que, em última análise, produziram poucos resultados - só serviu para recordar-lhe que as suas alianças mais naturais e lucrativas continuam a ser com a China e a Rússia.

Pyongyang, por sua vez, já deixou claro de quem é a culpa pela guerra na Ucrânia. “A causa principal da crise na Ucrânia reside integralmente na política hegemónica dos EUA e do Ocidente, que têm uma atitude despótica e arbitrária em relação a outros países”, disse o seu Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Poderá a Coreia do Norte invadir o Sul?

Desde a invasão da Rússia, a retórica da Coreia do Norte em relação à Coreia do Sul mudou.

No mês passado, a irmã de Kim, Kim Yo-jong, avisou que se a Coreia do Sul confrontasse militarmente a Coreia do Norte, o seu exército “enfrentaria um destino miserável, pouco menos que a total destruição e ruína.”

A linguagem ameaçadora de Pyongyang não é novidade - um oficial dos EUA uma vez descreveu ser insultado publicamente pela Coreia do Norte como um “motivo de orgulho”.

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Especialistas como Lankov têm vindo a questionar-se, desde o início da invasão da Ucrânia, se a Coreia do Norte poderia estar a considerar uma nova invasão da Coreia do Sul - mais de sete décadas após a invasão de 1950 que deuorigem à Guerra da Coreia.

Esta questão vem sendo rejeitada há anos. A maioria dos especialistas consideram as mudanças como insignificantes, mas o facto de o tema estar a ser discutido é assinalável.

“Os norte-coreanos provavelmente voltaram a sonhar com algo que (eles) costumavam levar a sério, mas de que praticamente se tinham esquecido nas últimas décadas. Isto é, a conquista da Coreia do Sul”, disse Lankov.

Por enquanto, a ideia parece fantasiosa. Mas o futuro é outra questão.

“Talvez, apenas talvez, o presidente americano de 2045 ou 2055 não arrisque San Francisco para salvar Seul”, disse Lankov. “(Nessa altura) os norte-coreanos poderão usar MBIC, talvez submarinos nucleares armados para (aterrorizar) os americanos, para chantagear os americanos a evitarem o conflito.”

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