A aldeia italiana com um milagre de ‘derreter o sangue' - e uma chuva de meteoros

CNN , Silvia Marchetti
16 out 2022, 16:00

Há vales verdes e férteis, velhos esconderijos dos salteadores, pomares de cerejeiras – e um frasco misterioso que alegam conter um sangue muito especial.

Amaseno, uma pequena aldeia localizada na província de Frosinone, entre Roma e Nápoles, alberga um segredo místico que, segundo os habitantes, questiona as leis da natureza.

Os aldeões veneram um frasco de vidro que dizem conter o sangue de um santo que está regularmente envolvido naquilo que consideram um “milagre”.

Nos últimos quatro séculos, todos os anos – ocasionalmente mais de uma vez – aquilo que se acredita ser o sangue e carne de São Lourenço liquidifica-se e transforma-se de um torrão denso, escuro e acastanhado num líquido claro e brilhante vermelho-rubi misturado com outros elementos.

"Quando o sangue fica líquido, vê-se um pedaço esbranquiçado da pele do santo a flutuar, alguns fragmentos negros de carvão no fundo do frasco e umas gotículas untuosas e amareladas da gordura corporal do santo que começam a derreter e se misturam com o sangue”, diz o devoto local, Fabio Marzi, um bombeiro que dedica o seu tempo livre a estudar a história da relíquia e o seu fenómeno.

"São Lourenço é muito fiável. Todos os verões, entre 8 e 10 de agosto, a liquefação acontece e, por volta de 12 de agosto, o sangue começa novamente a solidificar. É altura de festa para a aldeia. As famílias reúnem-se, rezam e celebram com refeições faustosas."

Os habitantes de Amaseno deleitam-se com queijo de búfala de primeira e iguarias de carne, incluindo hambúrgueres de búfalo exibidos numa feira gastronómica anual chamada "I Love Bufala".

Um fenómeno que nunca falha

Amaseno é uma aldeia saída de uma foto - com uma atração adicional. Gianniblues/Alamy

As pessoas das aldeias próximas acorrem para participar nos desfiles religiosos que serpenteiam pelas vielas sinuosas de Amaseno, e sobem e descem os degraus que conectam as camadas de pitorescas casas de pedra cobertas por hera e vasos de flores. Os desfiles chegam a ocorrer de noite sob uma chuva de estrelas cadentes.

Há um ambiente espiritual, potenciado pelo silêncio e paz deste cenário bucólico. A aldeia está rodeada por rios e montanhas rochosas pontilhadas por fósseis pré-históricos, onde os fora-da-lei se escondiam no século XIX.

A devoção a relíquias de santos é relativamente comum em Itália, onde a maioria da população se identifica como Católica Romana, mas no que diz respeito a sangue liquidificado, a maioria das pessoas está mais familiarizada com outro “milagre”.

Na cidade de Nápoles, o sangue de São Januário (habitualmente) liquidifica-se três vezes por ano rodeado por multidões animadas e cenas de fervor religioso extremo.

Porém, enquanto São Januário falhou algumas recorrências ao longo dos séculos, São Lourenço tem provado ser extremamente pontual, segundo Marzi – o seu sangue liquidifica-se sempre quando é a melhor altura do ano para observar as estrelas cadentes.

Continua a ser um mistério como o pequeno frasco de vidro com a forma de um cone invertido, guardado dentro de um tabernáculo decorado em prata na igreja de Amaseno, chegou à aldeia que até 1872 se chamava San Lorenzo – ou São Lourenço.

Na opinião de Marzi, pode ter sido trazido por antigos soldados romanos originários de Amaseno e que presenciaram o martírio do santo.

Uma carta ao Papa

O processo dos aldeões antes do dia da festa de São Lourenço. Cortesia Fabio Marzi

Consta que São Lourenço foi executado em Roma a 10 de agosto de 258 d.C., por ordem do imperador romano Valério. Ele foi carbonizado num grelhador, o que – segundo o padre de Amaseno, Dom Italo Cardarilli – explicaria por que motivo a substância granular escura no fundo do frasco também contém pó de carvão e cinzas.

"Apesar de sabermos muito pouco sobre esta relíquia, ela é mencionada no ato de consagração da nossa igreja, datado de 1177, como contendo ‘o sangue e gordura de São Lourenço’, e uma carta do séc. XVII ao Papa indicava que as pessoas tinham notado que, regularmente por volta de 10 de agosto, o sangue se liquidificava", diz o padre.

"Cada vez que acontece, rezamos e agradecemos a Deus por este sinal divino."

A liquidificação costuma acontecer entre 8 e 13 de agosto. O dia 10 de agosto, marcado no calendário católico como o dia da festa de São Lourenço, é quando o sangue está mais líquido e vermelho vivo, e é quando está garantido o melhor espetáculo de estrelas cadentes.

A chuva de meteoros foi alcunhada “lágrimas de São Lourenço” em homenagem ao martírio do santo. Com todos os olhos postos no céu nesta noite especial, é obrigatório pedir um desejo sempre que se avista uma estrela cadente – quantas mais, melhor.

Durante os dias da liquidificação, a relíquia é tirada do tabernáculo e colocada em exposição, mas Cardarilli diz que, se os visitantes pedirem para a verem, pode ser mostrada em qualquer dia do ano.

Cardarilli confirma que o conteúdo do frasco nunca foi examinado.

Ele diz que não há “fanatismo” envolvido na veneração do sangue que se liquidifica. "Faz parte da cultura e do património da aldeia, e ninguém pergunta por que razão acontece."

'Prova irrefutável'

O ‘milagre do sangue’ de Amaseno é semelhante ao de Nápoles (na foto). Salvatore Laporta/IPA/ABACA/Reuters

Mas já houve quem questionasse o fenómeno e apresentasse possíveis explicações científicas.

O químico Luigi Garlaschelli do Comitato Italiano per il Controllo delle Affermazioni sulle Pseudoscienze, que investiga afirmações pseudocientíficas, obteve autorização para estudar o frasco – não o seu conteúdo – do padre anterior de Amaseno. Em 1997, fez experiências básicas ao exterior do frasco.

Na opinião dele, a relíquia consiste de facto em gordura animal ou gelatina, talvez banha ou sebo, ceras, e um corante vermelho solúvel em óleo que derrete quando aquece.

"Passei vários dias em Amaseno para analisar o comportamento do líquido vermelho. Quando coloquei o frasco dentro de um recipiente de água fria com gelo, ele solidificava. Depois, aquecia-o com um secador de cabelo a uma temperatura de 31 graus Celsius e ele derretia. É uma prova irrefutável", afirma ele.

Segundo Garlaschelli, não é coincidência o “milagre” acontecer no mês mais quente do verão.

"A não ser em agosto, o frasco é mantido fechado no tabernáculo, que raramente é aberto. O processo de derreter pode perfeitamente acontecer noutros dias de verão ou a horas diferentes do dia, mas ninguém o vê."

Também na sua opinião, o sangue verdadeiro não tem o mesmo comportamento que a substância dentro da relíquia: coagula imediatamente e seca.

O primeiro corante vermelho solúvel em gordura que veio imediatamente à cabeça de Garlaschelli, que tem o mesmo tom de vermelho que o conteúdo do frasco e era amplamente usado durante a Idade Média, é “sangue de dragão”, uma resina vegetal extraída de plantas.

Uma forma de provar a natureza do material vermelho seria analisá-lo, obviamente, mas Garlaschelli avisa que isso poderia matar o misticismo de Amaseno e "a devoção do povo que vê o que deseja ver no frasco".

"Ou o aceitamos como um sinal divino graças à nossa fé, sem o questionarmos, ou não. Um milagre é isso", diz Marzi, que afirma que no séc. XIX um médico nascido na aldeia observou o frasco durante 30 anos e escreveu acerca da sua convicção de que era sangue verdadeiro.

O culto de São Lourenço é sentido intensamente mesmo no Canadá e nos Estados Unidos, onde descendentes de emigrantes italianos ainda comemoram o santo. Em Chicago Heights, no Estado do Illinois, uma comunidade local com origens em Amaseno celebra a festa de São Lourenço, realizando uma peregrinação com mulheres vestidas com o traje tradicional de Amaseno.

Relacionados

Viagens

Mais Viagens

Na SELFIE

Mais Lidas

Patrocinados