Há vales verdes e férteis, velhos esconderijos dos salteadores, pomares de cerejeiras – e um frasco misterioso que alegam conter um sangue muito especial.
Amaseno, uma pequena aldeia localizada na província de Frosinone, entre Roma e Nápoles, alberga um segredo místico que, segundo os habitantes, questiona as leis da natureza.
Os aldeões veneram um frasco de vidro que dizem conter o sangue de um santo que está regularmente envolvido naquilo que consideram um “milagre”.
Nos últimos quatro séculos, todos os anos – ocasionalmente mais de uma vez – aquilo que se acredita ser o sangue e carne de São Lourenço liquidifica-se e transforma-se de um torrão denso, escuro e acastanhado num líquido claro e brilhante vermelho-rubi misturado com outros elementos.
"Quando o sangue fica líquido, vê-se um pedaço esbranquiçado da pele do santo a flutuar, alguns fragmentos negros de carvão no fundo do frasco e umas gotículas untuosas e amareladas da gordura corporal do santo que começam a derreter e se misturam com o sangue”, diz o devoto local, Fabio Marzi, um bombeiro que dedica o seu tempo livre a estudar a história da relíquia e o seu fenómeno.
"São Lourenço é muito fiável. Todos os verões, entre 8 e 10 de agosto, a liquefação acontece e, por volta de 12 de agosto, o sangue começa novamente a solidificar. É altura de festa para a aldeia. As famílias reúnem-se, rezam e celebram com refeições faustosas."
Os habitantes de Amaseno deleitam-se com queijo de búfala de primeira e iguarias de carne, incluindo hambúrgueres de búfalo exibidos numa feira gastronómica anual chamada "I Love Bufala".
Um fenómeno que nunca falha
As pessoas das aldeias próximas acorrem para participar nos desfiles religiosos que serpenteiam pelas vielas sinuosas de Amaseno, e sobem e descem os degraus que conectam as camadas de pitorescas casas de pedra cobertas por hera e vasos de flores. Os desfiles chegam a ocorrer de noite sob uma chuva de estrelas cadentes.
Há um ambiente espiritual, potenciado pelo silêncio e paz deste cenário bucólico. A aldeia está rodeada por rios e montanhas rochosas pontilhadas por fósseis pré-históricos, onde os fora-da-lei se escondiam no século XIX.
A devoção a relíquias de santos é relativamente comum em Itália, onde a maioria da população se identifica como Católica Romana, mas no que diz respeito a sangue liquidificado, a maioria das pessoas está mais familiarizada com outro “milagre”.
Na cidade de Nápoles, o sangue de São Januário (habitualmente) liquidifica-se três vezes por ano rodeado por multidões animadas e cenas de fervor religioso extremo.
Porém, enquanto São Januário falhou algumas recorrências ao longo dos séculos, São Lourenço tem provado ser extremamente pontual, segundo Marzi – o seu sangue liquidifica-se sempre quando é a melhor altura do ano para observar as estrelas cadentes.
Continua a ser um mistério como o pequeno frasco de vidro com a forma de um cone invertido, guardado dentro de um tabernáculo decorado em prata na igreja de Amaseno, chegou à aldeia que até 1872 se chamava San Lorenzo – ou São Lourenço.
Na opinião de Marzi, pode ter sido trazido por antigos soldados romanos originários de Amaseno e que presenciaram o martírio do santo.
Uma carta ao Papa
Consta que São Lourenço foi executado em Roma a 10 de agosto de 258 d.C., por ordem do imperador romano Valério. Ele foi carbonizado num grelhador, o que – segundo o padre de Amaseno, Dom Italo Cardarilli – explicaria por que motivo a substância granular escura no fundo do frasco também contém pó de carvão e cinzas.
"Apesar de sabermos muito pouco sobre esta relíquia, ela é mencionada no ato de consagração da nossa igreja, datado de 1177, como contendo ‘o sangue e gordura de São Lourenço’, e uma carta do séc. XVII ao Papa indicava que as pessoas tinham notado que, regularmente por volta de 10 de agosto, o sangue se liquidificava", diz o padre.
"Cada vez que acontece, rezamos e agradecemos a Deus por este sinal divino."
A liquidificação costuma acontecer entre 8 e 13 de agosto. O dia 10 de agosto, marcado no calendário católico como o dia da festa de São Lourenço, é quando o sangue está mais líquido e vermelho vivo, e é quando está garantido o melhor espetáculo de estrelas cadentes.
A chuva de meteoros foi alcunhada “lágrimas de São Lourenço” em homenagem ao martírio do santo. Com todos os olhos postos no céu nesta noite especial, é obrigatório pedir um desejo sempre que se avista uma estrela cadente – quantas mais, melhor.
Durante os dias da liquidificação, a relíquia é tirada do tabernáculo e colocada em exposição, mas Cardarilli diz que, se os visitantes pedirem para a verem, pode ser mostrada em qualquer dia do ano.
Cardarilli confirma que o conteúdo do frasco nunca foi examinado.
Ele diz que não há “fanatismo” envolvido na veneração do sangue que se liquidifica. "Faz parte da cultura e do património da aldeia, e ninguém pergunta por que razão acontece."
'Prova irrefutável'
Mas já houve quem questionasse o fenómeno e apresentasse possíveis explicações científicas.
O químico Luigi Garlaschelli do Comitato Italiano per il Controllo delle Affermazioni sulle Pseudoscienze, que investiga afirmações pseudocientíficas, obteve autorização para estudar o frasco – não o seu conteúdo – do padre anterior de Amaseno. Em 1997, fez experiências básicas ao exterior do frasco.
Na opinião dele, a relíquia consiste de facto em gordura animal ou gelatina, talvez banha ou sebo, ceras, e um corante vermelho solúvel em óleo que derrete quando aquece.
"Passei vários dias em Amaseno para analisar o comportamento do líquido vermelho. Quando coloquei o frasco dentro de um recipiente de água fria com gelo, ele solidificava. Depois, aquecia-o com um secador de cabelo a uma temperatura de 31 graus Celsius e ele derretia. É uma prova irrefutável", afirma ele.
Segundo Garlaschelli, não é coincidência o “milagre” acontecer no mês mais quente do verão.
"A não ser em agosto, o frasco é mantido fechado no tabernáculo, que raramente é aberto. O processo de derreter pode perfeitamente acontecer noutros dias de verão ou a horas diferentes do dia, mas ninguém o vê."
Também na sua opinião, o sangue verdadeiro não tem o mesmo comportamento que a substância dentro da relíquia: coagula imediatamente e seca.
O primeiro corante vermelho solúvel em gordura que veio imediatamente à cabeça de Garlaschelli, que tem o mesmo tom de vermelho que o conteúdo do frasco e era amplamente usado durante a Idade Média, é “sangue de dragão”, uma resina vegetal extraída de plantas.
Uma forma de provar a natureza do material vermelho seria analisá-lo, obviamente, mas Garlaschelli avisa que isso poderia matar o misticismo de Amaseno e "a devoção do povo que vê o que deseja ver no frasco".
"Ou o aceitamos como um sinal divino graças à nossa fé, sem o questionarmos, ou não. Um milagre é isso", diz Marzi, que afirma que no séc. XIX um médico nascido na aldeia observou o frasco durante 30 anos e escreveu acerca da sua convicção de que era sangue verdadeiro.
O culto de São Lourenço é sentido intensamente mesmo no Canadá e nos Estados Unidos, onde descendentes de emigrantes italianos ainda comemoram o santo. Em Chicago Heights, no Estado do Illinois, uma comunidade local com origens em Amaseno celebra a festa de São Lourenço, realizando uma peregrinação com mulheres vestidas com o traje tradicional de Amaseno.