Perante o elevado número de mulheres sem um acompanhamento completo da gravidez no SNS, muitas por não terem médico de família, a ULS Amadora/Sintra está a avançar com um projeto-piloto. O objetivo é que as mulheres sejam identificadas pelo SNS logo no primeiro trimestre da gravidez. O seguimento dar-se-á nos centros de saúde, encarados como as grandes portas de entrada para estas mulheres. Para os hospitais seguirão os casos que inspirem maiores preocupações, tirando pressão aos serviços. Resultados que, perante a falta de médicos de família, deverão ser conseguidos com recurso a horas extraordinárias dos profissionais que já existem
No meio do caos que é nascer em Portugal em pleno verão, também há boas notícias. Mesmo que os efeitos só se vão sentir mais lá para o final de 2024. A Unidade Local de Saúde (ULS) Amadora/Sintra, que serve dois dos concelhos mais populosos da Grande Lisboa, está a desenvolver um projeto-piloto com um objetivo muito claro: garantir que as mulheres, mesmo não tendo médico de família, têm uma vigilância completa durante a gravidez.
O projeto chama-se “Nascer com Vigilância” e espera-se que esteja a apoiar as primeiras grávidas até ao final do ano, com uma articulação mais estreita entre o hospital e os cuidados primários, ou seja, os centros de saúde.
“Queremos aumentar a capacidade de vigilância completa às grávidas da ULS, para que sejam vigiadas mesmo que não tenham médico de família. Têm apenas de estar inscritas no SNS. Queremos cobrir duas situações: as mulheres que não têm médico de família e ficam sem vigilância completa; e as mulheres que, mesmo tendo médico de família, têm uma vigilância irregular justificada por vários fatores, como o constrangimento no acesso a exames”, explica Bárbara Flor de Lima, diretora clínica dos cuidados hospitalares da ULS Amadora/Sintra.
Vigilância completa? Só uma em quatro mulheres sem médico de família
Importa perceber o contexto em que nasce a ideia para este projeto-piloto. Na ULS Amadora/Sintra existe um grande número de mulheres sem a vigilância completa durante a gravidez.
No ano passado, esta ULS deu apoio a quase cinco mil grávidas. Praticamente quatro em cada dez tiveram um acompanhamento completo. Ou seja, a maioria não tem a vigilância recomendada ao longo da gestação.
Mais de duas mil mulheres que chegaram à ULS Amadora/Sintra não tinham médico de família atribuído. Nestas, só uma em cada quatro teve uma vigilância completa.
“Independentemente de estarmos a reorganizar a resposta existente, é importante reforçar que as grávidas sem médico de família têm acompanhamento. O primeiro passo é ir ao centro de saúde e referir que está grávida, que o acompanhamento é logo disponibilizado”, insiste Bárbara Flor de Lima à CNN Portugal.
Aliviar o hospital, assegurar continuidade
É pelos centros de saúde que passa também a estratégia do projeto-piloto “Nascer com Vigilância”. A intenção é aliviar a pressão no hospital, Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca, dando capacidade de resposta aos cuidados primários, “inclusive com exames complementares de diagnóstico”.
“Estamos a organizar esta resposta, integrando os cuidados hospitalares e os cuidados de saúde primários, para termos um acompanhamento mais adequado, que vai permitir identificar grávidas com patologias de alto risco, essas sim para acompanhamento hospitalar”, justifica Bárbara Flor de Lima.
A intenção é que as grávidas da Amadora e de Sintra olhem para os centros de saúde das suas áreas de residência como a principal porta de entrada no SNS. E que a recorram a eles o mais cedo possível, preferencialmente ainda no primeiro trimestre. Porque uma intervenção precoce permite despistar fatores de risco e, se necessário, fazer o reencaminhamento dos casos relevantes para contexto hospitalar.
Os restantes casos mantêm-se nos cuidados primários, aliviando a pressão no Fernando Fonseca. Assim, depois de identificadas, as grávidas podem continuar a receber cuidados nos centros de saúde com maior frequência, tal como desejado e recomendado.
“Uma gravidez sem vigilância poderá aumentar os riscos, a complexidade do parto, as complicações relacionadas com o parto”, argumenta Bárbara Flor de Lima.
Recorrer a horas extra e contratar médicos
O projeto está ainda numa fase inicial, avaliando a melhor forma de se divulgar junto do seu público-alvo, as mulheres sem vigilância completa durante a gravidez. Quando estiver a dar os primeiros passos, uma das tarefas passará também por traçar o perfil destas grávidas que não conseguem um acompanhamento completo no SNS, identificando os principais obstáculos ao acesso - por exemplo, se são mais frequentes entre as grávidas com menores recursos financeiros.
A equipa do “Nascer com Vigilância” está também a identificar os profissionais disponíveis nos cuidados primários da ULS e a definir um percurso a ser seguido pelas utentes, reconhecendo que faltam profissionais no serviço público para dar resposta a todas estas necessidades.
A solução passa, segundo explica à CNN Eduardo Andrade, coordenador da Unidade de Saúde Familiar Ribeiro Sanches, na Amadora, integrada no projeto, pelo recurso a horas extraordinárias, mas também pela contratação de mais profissionais.
“Haverá uma abertura para reforçar, no âmbito concreto do projeto, as equipas médicas e de enfermagem”, afirma. Eduardo Andrade admite que, sendo este “um tema muito sensível”, e que após uma abordagem aos colegas que já se encontram a trabalhar, tem sentido abertura e disponibilidade para virem a fazer horas extraordinárias ao abrigo do projeto.
A análise apontava para a necessidade de ter 30 a 40 médicos de família integrados no “Nascer com Vigilância”. Neste momento, foram identificados praticamente 30. E há expectativas de contratação também no médio prazo.
Um olhar de fora
O projeto “Nascer com Vigilância” foi um dos vencedores do Prémio Bolsa do Capital Humano da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares. Como tal, vai receber o apoio da Nobox, empresa especializada no apoio à inovação e melhoria dos cuidados na área da saúde.
“Neste caso, é possível ter médicos e enfermeiros mais bem organizados. E, por outro lado, reforçar os serviços, com recurso a horas extraordinárias daqueles que trabalham na ULS”, descreve Alberto Abreu da Silva, médico e cofundador da Nobox.
A empresa criada por dois médicos e uma consultora de gestão, diz, “ajuda as equipas clínicas a modernizarem o seu funcionamento, percebe a jornada dos doentes, trabalha em soluções que permitam melhorar os serviços prestados”.
Ou seja, traz um olhar de fora, ajudando a identificar problemas que as próprias equipas (e quem as lidera) nem sempre se apercebem por estarem tão embrenhados naquela realidade.
O desejo de todos é que os resultados obtidos na ULS Amadora/Sintra possam vir a ser replicados noutras geografias do país, onde as dúvidas e inseguranças na hora de ter um bebé são cada vez mais prementes.