Camarote, jogadores e as "razões culturais". O circuito dos 20 milhões que Álvaro Sobrinho terá desviado do BESA para o Sporting

Henrique Magalhães Claudino , Notícia atualizada às 14:37 de domingo
5 out, 18:00
Álvaro Sobrinho (Lusa)

Empresário angolano foi novamente acusado pelo Ministério Público, desta vez por um crime de branqueamento de capitais. Origem do dinheiro que levou Sobrinho a adquirir 30% do clube leonino levantou suspeitas na CMVM

O Sporting preparava-se para defrontar o Gil Vicente em Alvalade quando foi concluído o quarto de onze pagamentos à SAD dos leoninos, vindos de uma conta do BES Angola (BESA) e que ascenderam a 13,7 milhões de euros. O ano era 2011 e Álvaro Sobrinho, à data presidente do banco, tinha dado recentemente uma ordem que levou a que o empresário, mais de uma década depois, fosse acusado pelo Ministério Público de branquear vários milhões através de investimentos no clube verde e branco.

O Sporting estava a atravessar um período de crise financeira com a SAD leonina a registar um prejuízo de 44 milhões de euros e uma das soluções para esse problema veio de Álvaro Sobrinho que, para além de adepto, era bisneto de Joaquim Madaleno, um dos fundadores do clube. Em julho desse ano, durante a pré-época, o banqueiro encontrou-se com a direção do SCP e ambos acordaram um contrato de parceria de cooperação financeiro-desportiva”. 

Na prática, o banqueiro propunha-se a comprar os passes de 17 futebolistas na esperança de que, quando fossem vendidos, pudesse recuperar o dinheiro investido. Essa era a expectativa, segundo a acusação do Ministério Público consultada pela CNN Portugal. “Os passes dos jogadores deveriam ser transferidos ate 31/07/2014, garantindo, no minimo, a restituição integral do montante investido” pelo empresário angolano. 

Para conseguir concretizar esse investimento, Álvaro Sobrinho traçou uma estratégia que o viria a colocar sob mira das autoridades portuguesas - o empresário, descreve o Ministério Público, “decidiu utilizar os fundos disponíveis nas contas clearing” (contas temporárias onde bens são alocados antes de serem transferidos para outras contas) do banco que controlava “para financiar e investir” na SAD sportinguista - "como se aquele dinheiro fosse dele". Este modus operandi de Sobrinho não terá sido aplicado apenas nos negócios desportivos. Em 2022, foi acusado pelo Ministério Público, no processo que investigou a gestão danosa do BESA, de se apropriar de mais de nove milhões de euros vindos dessas contas “clearing” para benefício próprio. 

Dessa forma, de acordo com a acusação, Sobrinho deu ordens à direção de operações do BESA para realizar 11 transferências - entre 26 de julho de 2011 e 18 de abril de 2012 - para a SAD do Sporting. No total, saíram do banco angolano € 13.700.000. Este valor foi depois, a mando do empresário, “regularizado contabilisticamente” no BESA através da sua inscrição como um “crédito vencido”.

“Deste modo, corn o propósito de financiar e investir na Sporting SAD, o arguido Álvaro Sobrinho retirou os aludidos fundos do BESA, como se lhe pertencessem, bem sabendo que os valores disponíveis naquela conta bancária se destinavam a financiar a atividade do BESA, e que atuava em prejuízo deste”, afirma o MP.

Mas o plano de Sobrinho para alimentar o Sporting com vários milhões enquanto, segundo os procuradores, “encobria o rasto” desse dinheiro, não parou aí. Ao longo dos anos, o empresário angolano conseguiu, com vários investimentos, chegar a deter perto de 30% do clube. Para chegar a esse nível de influência precisou de uma sociedade e de vários testas-de-ferro.

Álvaro Sobrinho durante a audição na Comissão de Inquérito ao BES/ LUSA

Testas-de-ferro de Sobrinho eram família e amigos

Cerca de um mês antes de Álvaro Sobrinho e a direção do Sporting celebrarem o contrato de parceria, o empresário adquiriu 99% do capital social da sociedade Holdimo. Mas como a lei angolana exigia que as sociedades anónimas fossem constituídas por cinco acionistas, Sobrinho entregou cinco ações a cada um dos quatro irmãos - Emanuel Jorge Alves Madaleno, Silvio Alves Madaleno, Herlander Filipe Alves Madaleno e Rui Alberto Alves Madaleno.

O primeiro administrador da Holdimo foi Manuel Seixas Afonso Dias, cunhado de Álvaro Sobrinho, que chegou a controlar, com Emanuel Madaleno, irmão do banqueiro, a Ocean Private, uma companhia angolana que se tornou a maior devedora do BESA, com 226,75 milhões de dólares.

O cunhado de Sobrinho foi substituído em janeiro de 2012 por Gilberto Gonçalves, um amigo da família e apontado como sendo o testa-de-ferro de Álvaro Sobrinho nos outros processos que investigaram a queda do BESA. Foi com Gonçalves que no dia 15/01/2013 Godinho Lopes e José Nobre Guedes, na altura representantes da SAD do Sporting, reuniram e acordaram a primeira alteração ao contrato original assinado entre os verdes e brancos e Sobrinho. 

Desta vez, a SAD decidiu vender à Holdimo “uma percentagem dos direitos económicos associados aos direitos de inscrição desportiva de 28 jogadores”, aumentando o investimento de Sobrinho no clube para €20.600.000,00. Entre os jogadores que pertenciam em parte à Holdimo, de acordo com o Relatório e Contas do Sporting no ano de 2014, contam-se nomes como Adrien Silva, Cédric Soares e Elias. 

Dois meses mais tarde, em março de 2013, a direção do Sporting voltava a reunir-se com um novo representante da Holdimo, Paulo Antunes da Silva, advogado e professor universitário em Angola. Desta vez, ficou acordado que as participações económicas nos passes dos jogadores iriam ser convertidas em capital social na Sporting SAD. O negócio foi concretizado em novembro de 2014, já com Bruno de Carvalho ao leme dos leões. 

O dinheiro foi, então, transferido para duas contas. A primeira, referente ao capital social do Sporting, recebeu um total de 20 milhões de euros. A segunda era pertencente ao departamento de património e marketing, para onde foram transferidos 300 mil euros, com o intuito de pagar um “camarote”. “Em consequéncia, o arguido Álvaro Sobrinho, através da sociedade arguida Holdimo, passou a deter uma participação qualificada no capital social e nos direitos de voto da Sporting SAD de 20.000.000 de ações, correspondentes a 29,85% daquele capital e direitos”, diz a acusação, acrescentando que Paulo Antunes da Silva passou a exercer, simultaneamente, de acordo com as instruções de Sobrinho, funções nos Conselhos de Administração da Sporting SAD.

Paulo Antunes da Silva foi substituído mais tarde por Nuno Correia da Silva. Em 2016, deixou o conselho leonino e foi eleito presidente do Leixões. Já os outros antigos administradores, de uma forma ou de outra, ficaram sempre próximos de Álvaro Sobrinho: Manuel Afonso Dias é apontado como tendo sido o gestor da fortuna privada do banqueiro e Gilberto Gonçalves é suspeito de ter sido o testa-de-ferro de Sobrinho no esquema do alegado desvio de mais de 500 milhões de dólares do BESA. 

Neste processo, o Ministério Público não tem dúvidas: “os administradores da sociedade HOLDIMO atuaram como testas-de-ferro” de Sobrinho.  

“Por razões de natureza cultural”

No fim, foi o negócio para a aquisição de quase 30% do capital social do Sporting SAD que acabou por levantar suspeitas sobre um possível crime de branqueamento de capitais. Isto porque quando foram pagos os 20 milhões de euros, a Holdimo não tinha nem “a contabilidade organizada”, nem “contas aprovadas” - o que gerou desconfiança por parte da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) relativamente à origem dos valores. 

Foram pedidos esclarecimentos. Primeiro Paulo Antunes da Silva, em janeiro de 2015, explicou que, face às dificuldades económicas vividas no clube, aquele tinha sido o “acordo possível”. Perante a insistência da CMVM, quase um ano depois, o mesmo administrador acrescentava “desconhecer a origem dos fundos”, porque eles foram “aprovados e contabilizados antes do seu mandato”.

Já em 2016 seria a vez de Álvaro Sobrinho oferecer explicações: “Por razões de natureza cultural, da praxis local, e das estruturas acionistas e de administração - constituídas por pessoas ligadas por laços familiares ou de forte confiança pessoal e também pelo facto de não ser, na prática, sancionada a omissão de prestação de contas (...), as sociedades privadas angolanas não dispõem, em geral, de contabilidade organizada e não prestam contas aos acionistas com regularidade”.

De qualquer das formas, argumentou, a origem do dinheiro surgiu após a “reunião de meios financeiros dos acionistas, em particular do Dr. Álvaro Sobrinho, de diversos membros da sua família e de pessoas e empresas associadas aos mesmos para este especifico negócio a realizar pela sociedade e, ainda que numa pequena porte, de cerca de 5%, em meios gerados pela sociedade com a prestação de serviços e a realização de alguns negócios no setor imobiliário”. 

O Ministério Público tem uma versão diferente. Álvaro Sobrinho “conseguiu encobrir o rasto destas quantias monetárias, como se tratassem de verbas obtidas de forma lícita, dificultando que a apropriação ao BESA fosse criminalmente perseguida ou submetida a reação criminal, intento que logrou alcançar”. O arguido, continua a acusação, “conhecendo a proveniência das quantias monetárias transferidas do BESA, bem sabia que as introduzia no giro económico-financeiro normal como meio de desfrutar das vantagens económicas conferidas pela sua posse, e que dificultava a deteção, confisco e perda das mesmas por parte das autoridades judiciárias”.

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