Os viajantes que estão a virar costas aos aviões

CNN , Francesca Street
5 dez 2021, 10:00
Os viajantes que estão a virar costas aos aviões

Há uns anos, Charlotte Wolf regressou de uma viagem à volta do mundo e somou o número de voos que apanhou.

“Acho que apanhei cerca de 18 voos num curto espaço de tempo”, disse a jovem de 29 anos à CNN Travel.

Para Wolf, ver esse número escrito levou-a a uma dura reflexão. “Poluí imenso”, disse ela.

Wolf nunca dera muita importância ao impacto dos voos, mas este era um ponto de viragem. Pôs de lado a aviação. “Nunca mais andei de avião desde então.”

Em 2020, para cimentar o seu compromisso, Wolf assinou uma contrato para não voar, organizado pela Flight Free UK, um grupo organizado que promove formas de viajar alternativas à aviação, sem saber que as viagens aéreas viriam a estar paradas durante grande parte desse ano e do seguinte. Na primavera de 2020, as viagens aéreas pararam por todo o mundo.

As viagens aéreas são responsáveis por cerca de 2% de todas as emissões de CO2. Dados do Global Carbon Project sugerem que, mesmo em dezembro de 2020, quando foram retomadas algumas viagens, as emissões da aviação continuavam 40% abaixo dos níveis de 2019.

Com os céus despidos de aviões, o termo “férias em casa” tornou-se omnipresente. E mesmo quando as viagens internacionais retomaram esporadicamente no ano passado e neste ano, muitos viajantes continuaram a procurar férias perto de casa, no meio de tanta incerteza a nível global.

A caminho de 2022, a Covid continua a ser uma ameaça, mas as fronteiras continuam a reabrir e as viagens internacionais começam a regressar paulatinamente.

Mas enquanto muitos contam os dias até à próxima viagem de avião, outros viajantes conscientes como Wolf continuam empenhados em não mais voltar a viajar de avião.

Repensar a norma

Wolf, que vive em Inglaterra, não acha que o contrato que assinou para não voar a impeça de explorar o mundo.

“Continuo desejosa de viajar. Continuo a viajar, mas através de meios alternativos”, diz ela.

O companheiro de Wolf também está empenhado num estilo de vida sem viagens de avião. No verão de 2020, o casal foi de comboio até ao sul de França, uma aventura que repetiram em agosto passado. Também passaram, recentemente, uma escapadela de fim de semana em Edimburgo, trocando os voos baratos para a Escócia por uma viagem de comboio para norte.

A longo prazo, o casal espera um dia viajar do Reino Unido até ao Japão através do comboio Transiberiano.

No entanto, mesmo estando Wolf empenhada em evitar voar, não descarta a hipótese de voltar a entrar num avião. Ela é anglo-americana e tem família nos EUA.

“Continuo desejosa de viajar. Continuo a viajar, mas através de meios alternativos”

“Quando era mais nova, ia cinco vezes por ano a Nova Iorque. Agora, ficaria contente em lá ir uma vez a cada cinco anos por necessidade”, explica Wolf.

Wolf acha aceitável viajar de avião para visitar a família a cada cinco anos. Também viajaria em caso de emergência. Mas não voltará a viajar de avião em lazer.

Wolf admite ser mais fácil assumir este compromisso pelo facto de já ter viajado muitas vezes.

“Acho que é um privilégio e acho que muita gente não o faria se não tivesse já conhecido o mundo. Sou uma felizarda de já ter cumprido a minha lista de desejos com esta idade”, diz ela.

Wolf também sabe que as tarifas aéreas low-cost são mais apelativas que as caras viagens de comboio e sugere uma revisão global mais abrangente dos custos de viagem.

Também tem noção que, sendo uma trabalhadora por conta própria, é mais fácil ir de férias pelo caminho mais longo, e sugere a criação de incentivos governamentais para encorajar as pessoas a viajar de comboio.

“Obviamente que, indo do Reino Unido para França de comboio, perdemos um dia para cada lado, quando seria bem diferente de avião. Seria interessante ver incentivos a nível salarial, com férias prolongadas para quem provasse seguir uma abordagem mais ecológica”.

Embora Wolf não espere que toda a gente siga os seus passos, identifica as fotos com #flightfree. Ela quer “ter voz ativa nesse diálogo” e mostrar às pessoas como é fácil viajar de comboio do Reino Unido para a Europa… e mais além.

Movimento Flight-Free

O Flight Free UK foi inspirado no movimento sueco com o mesmo nome (Flygfritt), que ganhou preponderância em 2019, quando surgiu em voga o termo sueco “flygskam” (vergonha aérea). O Flight Free UK encoraja as pessoas a assinar um contrato anual para passarem um ano sem viajar de avião, como Wolf fez.

O grupo também faz parte da Stay Grounded, uma rede global de organizações fundada em 2016, que incentiva ao fim das viagens aéreas.

Se nos últimos cinco anos se tem falado mais em Flygfritt, para a diretora do Flight Free UK, Anna Hughes, evitar os aviões não é um fenómeno novo: Hughes fez o último voo há 12 anos.

“Já fiz tantas viagens e tive tantas aventuras emocionantes sem andar de avião que não sinto que esteja a perder nada, que seja um sacrifício, vejo-o como um aspeto positivo do meu estilo de vida”, disse Hughes à CNN Travel.

Foi o relatório de 2018 do IPCC e os seus gritantes resultados que levaram Hughes a querer ter mais voz sobre o compromisso de fugir à aviação.

“Decidi que não era suficiente deixar de viajar de avião, que tinha de encorajar muitas mais pessoas a fazer o mesmo”.

É difícil avaliar o grau de sucesso da campanha de Hughes devido ao contexto da pandemia da Covid-19, pois a Flight Free UK só foi criada em 2019.

Também é difícil quantificar o impacto da Covid-19 no movimento, diz Hughes. Mas ela já começa a encorajar pessoas a assinar o contrato para 2022, existindo dois tipos distintos de viajantes.

“Haverá muita gente desejosa de viajar. Por outro lado, isto terá sido uma espécie de reinício para muitas outras pessoas, que terão tomado noção das possibilidades que temos à nossa frente, ao serem obrigadas a permanecer por casa.”

Hughes e a sua equipa tentam celebrar e promover a ideia do regresso da tomada de decisão consciente em relação às viagens.

“Este ano, a Covid não nos deixou escolher. Fomos obrigados a ficar em casa por causa da pandemia”, diz Hughes.

“No futuro, conseguiremos tomar decisões assentes na nossa escolha? Quando reabrirem as viagens, conseguiremos escolher livremente explorar o mundo de outras formas? É que a crise climática é uma crise tão grande quanto a da pandemia, se não maior.”

Hughes também apoia as mudanças vindas de cima. Defende as taxas sobre o combustível para a aviação de forma a anular os voos baratos.

E se Hughes está algo céptica em relação a mudanças concretas na aviação da parte da COP26, acha que as medidas individuais podem levar a uma alteração mais abrangente na indústria e no governo.

Hughes compara o movimento ao aumento omnipresente do veganismo no Reino Unido.

Hughes tornou-se vegana na altura em que deixou de viajar de avião. Há uma década, era olhada com estranheza quando perguntava por opções veganas nos restaurantes. “Agora, dão-me uma ementa”, diz ela. “Havendo gente suficiente a fazê-lo, se o padrão do cliente começar a mudar, a indústria responde.”

A vista a partir da América

O Flight Free UK tem uma organização gémea nos EUA, como parte do movimento Stay Grounded.

Dan Castrigano, do Flight Free EUA, disse à CNN Travel que o movimento americano é menor que o dos conterrâneos europeus, muito devido a uma sólida rede de infraestruturas de caminho-de-ferro nos EUA.

Mas se pode ser difícil fugir à aviação para viajar internamente nos EUA, há americanos que continuam a tentar.

Betsy Thagard, de 59 anos, viajou recentemente da Califórnia até Chicago para visitar a família, quase sempre de comboio.

“Foi há dois anos que decidi deixar de viajar de avião”, diz Thagard. “Depois, ficámos impedidos de viajar durante 18 meses devido à Covid. Esta viagem que estou a fazer é a primeira desde que assumi o compromisso.”

Se trocar o avião pelo comboio obrigou a uma maior planeamento e a uma viagem mais longa, Thagard diz que adorou conhecer o país de comboio.

“Obriga-nos a começar a conhecer o nosso país, a ver o que podemos fazer para manter a sua beleza, em vez de irmos de avião para outro lado qualquer, para conhecer a beleza dos outros.”

“Passei décadas a viajar muito de avião para ir visitar a família, pelo que abdicar da aviação era uma grande mudança na minha vida, mas eu adoro.”

Contudo, Thagard teve de fazer um trecho da viagem de avião. “Havia apenas um comboio de Charlotte, Carolina do Norte, para Birmingham, Alabama, e partia às três da manhã.”

Thagard teve receio de esperar sozinha pelo comboio a essa hora na estação. “Tive de ir de avião esse trecho, mas foi uma desilusão”, diz ela.

É por esse motivo que Thagard espera que o governo americano expanda a rede de caminho-de-ferro do país, para facilitar a escolha de evitar os aviões.

Adotar viagens mais demoradas

Embora Thagard tenha viajado bastante quando era mais nova, disse que há muitos sítios que nunca visitou e que poderá ter dificuldade em visitá-los agora que aboliu as viagens aéreas.

“Sempre quis ir à Nova Zelândia e a Praga, mas agora não poderei ir a esses sítios, a não ser que arranje um barco que me leve, porque sei que não iria gostar de saber que estava a destruir esses mesmos sítios ao ir de avião”, diz ela.

Thagard que isso a deixa algo triste, mas que está preparada para apreciar a beleza da Califórnia, onde mora, e dos estados envolventes.

“Há muitos sítios no oeste dos EUA igualmente bonitos para visitar. Obriga-nos a começar a conhecer o nosso país, a ver o que podemos fazer para manter a sua beleza, em vez de irmos de avião para outro lado qualquer, para conhecer a beleza dos outros.”

E Praga pode não estar fora de hipótese. Quando se reformar, Thagard espera atravessar o Atlântico a bordo do Queen Mary 2, para depois explorar a Europa de comboio.

Tal como Wolf no Reino Unido, Thagard sabe que é um privilégio poder perder mais tempo a viajar de comboio ou de barco, pois também trabalha por conta própria e consegue gerir a sua agenda.

Mas Thagard quer encorajar outras pessoas, cujos trabalhos e estilo de vida o permitam, a adotar as viagens mais demoradas.

“A aventura, o percurso daqui até ali, faz parte do prazer da viagem. Não se trata de um simples passo desagradável a dar para se chegar a algum lado”, diz ela.

“É importante perceberem que é divertido.”

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