Estão as câmaras em linha de colisão com o Governo quando decidem travar os novos registos de alojamento local? Quem estuda este assunto ou esta neste ramo de atividade, garante que não. Estão apenas a cumprir a lei, que lhes dá responsabilidade. O que não quer dizer que não se deixem influenciar pelos protestos, pelas pressões e pela proximidade das eleições
Sai governo, entra governo. E o alojamento local assiste a uma nova mudança de regras. O executivo de Luís Montenegro deixou cair as restrições impostas por António Costa no Mais Habitação. E ficou a sensação no país de uma nova liberalização no setor.
Só que agora multiplicam-se as notícias de que há várias autarquias – com destaque para Lisboa e Porto, que representam um quarto dos registos nacionais – a apertar essas mesmas regras e a suspender novos registos. Será uma resposta aos crescentes protestos, quando há eleições autárquicas em 2025?
Antes disso, convém clarificar que, na realidade, a nova lei atirou para as mãos dos municípios as regras e limites em relação ao alojamento local. Na prática, cada autarquia tem o poder para decidir tendo em conta a pressão sentida nesta matéria.
Uma resposta aos protestos? “Sintomas de populismo que estão na guerra de Lisboa”
A onda de protestos contra o turismo tomou conta de várias cidades europeias. E nem Lisboa é exceção. Os exemplos mais extremos vêm de Espanha. Em Barcelona, manifestantes atacaram turistas com pistolas de água. Em Málaga, houve alojamentos para turistas que acabaram sujos por fezes. Em Málaga, autocolantes lembram que “aqui vivia uma família”.
Estará esta pressão na Europa, nomeadamente em Espanha, a condicionar o poder local em Portugal? Tanto os que defendem o alojamento local como aqueles que vaticinam o seu fim estão de acordo numa coisa: as câmaras estão a aproveitar-se desta preocupação com a (falta de) habitação e a apertar o cerco ao alojamento local para preparem terreno para as eleições do próximo ano.
“São, antes de mais, uma reação às manifestações que têm tido lugar no país. Os sinais de protesto em Portugal começaram em setembro de 2023. Não é um reflexo do que se está a passar em Espanha. Até porque Espanha, com quem mantemos bons contactos, procurou perceber o processo em Portugal”, argumenta André Escoval, porta-voz do movimento Porta a Porta – Casa para Todos.
Eduardo Miranda, presidente da ALEP – Associação do Alojamento Local em Portugal, encara como normal que as autarquias estejam a rever os seus regulamentos e a definir regras concretas, até porque, em algumas, esse processo já tinha começado antes das restrições socialistas do Mais Habitação. Ainda assim, admite que há “ruído que se criou na guerra política”.
Sobretudo em Lisboa, onde o executivo de Carlos Moedas é minoritário. “O que as câmaras fizeram foi retomar o processo. Como têm uma sensibilidade política maior para o assunto utilizaram o mecanismo da suspensão. No caso de Lisboa, diria, de forma exagerada. No Porto não, foi proporcional”, afirma.
E acrescenta: “Lisboa tem um ambiente político muito delicado. E misturam-se decisões em Lisboa com a questão das próximas eleições autárquicas. A oposição tem procurado focar o debate da habitação num único inimigo: o alojamento local. Os sintomas de populismo que vemos nesta matéria estão na guerra de Lisboa”.
Vera Gouveia Barros, economista que se tem dedicado ao estudo do mercado da habitação, nomeadamente do alojamento local, também reconhece que as câmaras estão “a responder àquilo que são as perceções” sobre esta matéria. Mas é porque estamos a menos de um ano das autárquicas? “Acho que é determinante”, completa.
A economista insiste que, “antes de agir, os poderes públicos têm de estudar os problemas”, algo que, no que respeita ao alojamento local, assegura, tem acontecido pouco.
Menos Alojamento Local, mais habitação?
Há outro ponto onde todos parecem estar de acordo: o problema da habitação é de escala nacional. As divergências vêm na hora de perceber se um travão ao alojamento local pode mesmo fazer a diferença.
“É evidente que o problema da habitação é estrutural, acontece em todo o país. E que há uma pressão sobre o poder político para uma resolução imediata”, começa André Escoval. Ainda assim, diz, “não se pode resolver um problema nacional em 318 parcelas” e “sem uma estratégia nacional”.
O movimento Porta a Porta não exclui avançar para outras formas de luta em 2025, até porque “o Governo está a fazer-nos ponderar medidas mais duras”.
Eduardo Miranda avisa que proibições ao alojamento local não servirão, nem de perto nem de longe, para suprimir as necessidades de habitação que existem no país. Quanto mais nas grandes cidades onde, explica, o tipo de imóveis utilizados para receber turistas (com áreas muito pequenas) não teriam condições para receber famílias.
“Lisboa já teve restrições a novos alojamentos. Isso ofereceu-nos experiência, foi uma espécie de ensaio clínico. O que se concluiu é que a medida teve algum efeito, sim, mas muito limitado”, completa Vera Gouveia Barros.
Dois ritmos: contenção e crescimento sustentável
As medidas do Mais Habitação fizeram tremer os proprietários de alojamento local. Ficavam proibidas as novas licenças, à exceção do espaço rural; as licenças poderiam caducar a cada cinco anos. Criava-se incerteza sobre a atividade. Depois, veio o Governo de Luís Montenegro e anulou tudo.
Apesar de ter ficado uma ideia de nova liberalização nesta atividade, alimentada pelos discursos dos partidos à esquerda, a verdade é que nem tudo ficou mais fácil para o alojamento local. A responsabilidade passa é para as mãos das autarquias, que devem preparar regulamentos para gerir esta atividade nos seus territórios.
Admitem-se dois ritmos distintos: as áreas de contenção (quando já exista sobrecarga) e as áreas de crescimento sustentável (onde é possível tomar medidas para evitar essa mesma sobrecarga).
Nestas últimas áreas, uma das medidas destacadas por Eduardo Miranda e Vera Gouveia Barros, e que permite proteger a oferta de habitação, passa pelo facto de os municípios poderem não autorizar novos alojamentos em imóveis que tenham sido objeto de contrato de arrendamento para habitação nos anos anteriores.
“Houve uma reação de rotular a nova lei como uma lei que liberalizava tudo. Nunca foi esse o teor das negociações que tivemos com o PSD. O que se procurou evitar era uma proibição cega, onde tudo é tratado por igual”, garante Eduardo Miranda.
Câmaras travam por receio de corrida aos registos
Das autarquias contactadas pela CNN Portugal, nenhuma reconheceu que a análise que está a ser feita em relação ao alojamento local seja condicionada pelas pressões dos protestos que têm surgido nesta matéria.
A Câmara de Lisboa justifica que a suspensão temporária de novos registos durante “seis meses, passível de renovação por igual período” procura “evitar um aumento súbito e acentuado de pedidos de registo” após a entrada em vigor das novas regras. A autarquia liderada por Carlos Moedas lembra que a capital já distingue as áreas com maior pressão, onde “não são admitidos, desde 2019, novos registos, exceto em situações excecionais previstas no regulamento”.
Lisboa está a preparar um novo regulamento municipal, embora não concretize quando deverá estar pronto. E lembra que em abril de 2023 apresentou propostas para “aumentar a área da cidade sujeita a contenção”, que acabaram bloqueadas pela oposição.
A Câmara do Porto prevê ter aprovado, ainda em novembro, o novo regulamento para o alojamento local. Até que este documento existe, vigora a proibição de novas licenças no centro histórico e no Bonfim. A autarquia liderada por Rui Moreira procurou também “evitar um grande fluxo de pedidos” com as mudanças implementadas pelo Governo.
À CNN Portugal, a Câmara de Cascais explica que “não pretende efetuar qualquer suspensão de novas licenças”. “Estamos a analisar e a rever o regulamento, não para limitar, mas para acautelar o equilíbrio entre todas as partes, defendendo o cumprimento de padrões de qualidade para os seus residentes”, assegura fonte oficial.
Também a Câmara de Odivelas informa que “não existe decisão da autarquia para suspensão de novos alojamentos” e que foi criado um grupo de trabalho para analisar a necessidade de um regulamento de alojamento local.
Registados… mas não necessariamente a funcionar
Em Portugal, os números do Registo Nacional de Alojamento Local (RNAL) dão conta da existência de mais de 114 mil alojamentos locais em Portugal a 20 de novembro.
Só neste ano, até 15 de novembro, foram feitos 5.871 registos. Trata-se de um valor muito inferior aos 15.045 registos do mesmo período de 2023, ou aos 10.588 de 2022. O registo de 2024 acaba por se aproximar do verificado nos dois anos de pandemia, que foram particularmente marcados pela incerteza quanto ao futuro deste setor.
Apesar dos registos, é preciso ter consciência de que nem todos os alojamentos registados estão efetivamente a receber turistas. Um estudo da Confidencial Imobiliário revela que apenas 45% dos alojamentos locais em Lisboa estão em atividade.
Segundo o estudo, Lisboa tem 10.370 apartamentos T0 e T1 registados, mas apenas 4.625 estão ativos de uma forma regular. No Porto, a proporção de atividade é superior, nos 58%.
Lisboa registou uma diária média de 135 euros, com uma ocupação média de 72%, no segundo trimestre. No Porto, a diária média foi de 87 euros, com uma ocupação média de 61%.