Contagem provisória dos votos nas eleições de domingo nos dois estados mostra que a extrema-direita ficou pouco aquém da CDU na Saxónia e conquistou o primeiro lugar na Turíngia, um estado de importância simbólica num dos mais negros períodos da história da Alemanha e da Europa. A vitória já esperada correspondeu a pesadas derrotas para os três partidos que compõem o atual governo de coligação de Olaf Sholz, quando falta um ano para as eleições federais. "Mas houve também um fenómeno novo que reforça a ideia de que o populismo não é uma só ideologia"
A Alemanha de Leste assistiu este domingo a um fenómeno em duas frentes, que no curto e médio prazo traz grande instabilidade à maior economia europeia, e que, no longo prazo, a um ano das eleições federais ao Bundestag, vem cimentar a vaga de nacionalismo identitário que tem conquistado terreno no país, na Europa e no resto do mundo.
Com a contabilização parcial dos votos nas eleições estatais da Saxónia e da Turíngia, foi confirmado que, após vitórias menos expressivas noutros estados federados, o partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD) conquistou a sua primeira grande vitória eleitoral, ficando em primeiro lugar na Turíngia, com cerca de 32,8% dos votos, e em segundo na Saxónia, com 30,6%. É a primeira vez desde a II Guerra Mundial que um partido de extrema-direita fica em primeiro lugar em eleições na Alemanha.
“O fenómeno de crescimento da extrema-direita, do populismo cultural e identitário representado pela AfD, já era esperado”, indica José Filipe Pinto, especialista em movimentos populistas e extremistas. "Mas houve também um fenómeno novo, que é a subida de um segundo partido populista, uma aliança com o nome da sua fundadora, que ficou em terceiro lugar nos dois estados e que representa uma oitava modalidade de populismo – um partido que, economicamente, bebe influência na ideologia socialista, mas que em questões como a imigração se aproxima do populismo cultural-identitário da AfD, que é não apenas nacionalista mas até nativista.”
Os resultados, destaca o especialista, “reforçam a ideia de que o populismo não é uma só ideologia”, o que é notório nos pontos que aproximam e que afastam a extrema-direita e a extrema-esquerda alemãs, AfD e Aliança Sahra Wagenknecht - Pela Razão e Justiça (BSW) – esta última fundada por uma autodenominada “conservadora de esquerda” em janeiro, após ter abandonado o Die Linke (partido A Esquerda).
A vitória da AfD em particular surge revestida de uma simbologia impossível de ignorar. A ida às urnas nos dois estados do Leste, ambos sob domínio da União Soviética durante a Guerra Fria até à queda do Muro de Berlim na viragem para os anos 1990, aconteceu precisamente 85 anos depois de a Alemanha Nazi ter invadido a Polónia a 1 de setembro de 1939, data que marca o início da II Guerra Mundial. E a Turíngia tem especial importância nesse período da História, no contexto da ascensão do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP) de Adolf Hitler.
A 2 de fevereiro de 1930, numa carta que enviou a um apoiante nos Estados Unidos dois meses após as eleições no estado, o líder do partido nazi escreveu: “Alcançámos o maior sucesso na Turíngia, somos realmente o partido decisivo lá hoje. Os partidos na Turíngia que anteriormente formaram governo são incapazes de reunir uma maioria sem a nossa participação.”
Noventa e quatro anos depois, com a AfD a conquistar cerca de um terço dos votos no mesmo estado, a co-líder do partido, Alice Weidel, congratulou-se com a vitória “histórica” numas eleições que foram um “requiem” para os três partidos da coligação federal de Olaf Scholz – e bebendo das palavras de Hitler, avisou: “Deixou de ser possível ter um governo estável sem nós.”
A importância da Turíngia, onde a AfD tem um "fascista" como cabeça-de-lista
Foi ao leme de Wilhelm Frick que os nazis começaram a firmar na Turíngia a sua rota política durante a República de Weimar. Nomeado ministro do Interior estatal na coligação que se formou após o NSDAP ter eleito seis deputados para o parlamento turíngio em 1929, Frick começou por remover da polícia local todos os que tinham inclinações republicanas, substituindo-os por homens favoráveis ao projeto nazi num estado que, nas décadas seguintes, viria a albergar o famigerado campo de concentração de Buchenwald.
"A importância simbólica [da vitória da AfD] não pode ser subestimada", refere à CNN Etienne Hanelt, do Fórum Verfassungsblog, que no verão passado lançou o Projeto Turíngia, "à luz das eleições estatais que aí vinham e da experiência passada com partidos autoritário-populistas noutros países europeus", como o Fidesz na Hungria e o PiS na Polónia. "Este simbolismo é ainda pior se se considerar que foi na Turíngia que os nazis integraram pela primeira vez um governo alemão, em 1930, e ganharam as suas primeiras eleições estatais em 1932."
Há alguns dias, o historiador alemão Alexander Gallus já ressaltava a importância deste dado histórico ao Der Standard. “Não houve grandes protestos na altura, só alguns jornais alertaram para a ‘ingenuidade’ e para uma ‘invasão do redil republicano’. [Hitler] ficou entusiasmado com o poder simbólico [da Weimar na Turíngia] – ele amava a cidade [Erfurt, capital do estado] onde Goethe e Schiller trabalharam.”
Após as eleições de dezembro de 1929, o próprio Hitler deslocou-se à Turíngia para orientar as negociações para a formação de um governo com as forças conservadoras, garantindo a nomeação de Frick – que, entre 1933 e 1934, viria a ser ministro do Interior do Reich, em Berlim, e que, após a II Guerra, foi julgado no Tribunal de Nuremberga e executado em 1946.
Quase um século depois das eleições de 1929, é improvável que os conservadores da União Democrata-Cristã (CDU) – que ficaram em primeiro lugar na Saxónia e em segundo na Turíngia – formem coligação com a AfD, o que deixa muitas possibilidades em aberto no que toca à governação nos dois estados.
“Como é que isto se vai resolver? Muito dificilmente”, responde José Filipe Pinto. “É crível que a CDU faça um cordão sanitário quer à AfD, quer à BSW, mas na Turíngia isto poderia levar os dois partidos populistas a juntar-se. O problema é que as agendas económicas de um e de outro são incompatíveis, o liberalismo da AfD é repudiado pela Aliança Sahra Wagenknecht. Vamos ver se se entendem com base na noção que ambos têm de ‘verdadeiro povo alemão’ e a sua postura anti-imigração.”
Assim que os primeiros resultados provisórios foram anunciados, Björn Höcke, líder da AfD na Turíngia, deixou um aviso a todos os partidos de que formar uma coligação sem a extrema-direita “não será bom para o estado” – “quem quer estabilidade na Turíngia tem de integrar a AfD”, disse.
Este é o mesmo Höcke que, em maio, foi condenado a pagar 100 multas no valor de 130€ por dia por ter recorrido à expressão “Alles Für Deutschland” ("Tudo pela Alemanha") durante a campanha eleitoral – um slogan das SA, ou Sturmabteilung, a força paramilitar do regime nazi, cujo uso é proibido na Alemanha moderna. Em tribunal, o historiador de formação disse não saber que se tratava de um slogan nazi proibido e defendeu o uso do "ditado do quotidiano".
"Na Turíngia, a AfD é liderada por um fascista", ressalta Hanelt, e não é o cientista político que o diz. "No passado, um tribunal anulou um processo de difamação interposto por Höcke, que não queria ser rotulado como tal, considerando que 'fascista' é a constatação de um facto."
"É crível que a AfD ainda vá subir muito"
A aproximação da AfD à Rússia, e o facto de culpar a NATO e o Ocidente pela guerra em curso na Ucrânia, não são um detalhe na análise aos resultados das duas eleições, como também não o é a postura anti-militarista da BSW, que o Deutsche Welle define como "um partido populista que combina políticas económicas de esquerda com iniciativas conservadoras em matéria de migrações e de política externa pró-russa".
Por esse motivo, há quem veja nas vitórias dos dois partidos uma “vitória de Putin na Alemanha”, um dos dados que surge as entrelinhas da reação do chanceler alemão, Olaf Scholz, aos resultados provisórios. "Tanto a AfD como a BSW apostaram numa campanha contra as políticas da coligação federal, em particular no que toca às migrações e à assistência alemã à Ucrânia na sua defesa contra a agressão russa", destaca Etienne Hanelt.
A partir de Berlim, já depois do aviso deixado por Höcke, Olaf Scholz deixou o seu próprio aviso: “Todos os partidos democráticos são agora chamados a formar governos estáveis sem os extremistas de direita”, referiu em comunicado. “O nosso país não pode e não deve acostumar-se a isto. A AfD está a prejudicar a Alemanha. Está a enfraquecer a economia, a dividir a sociedade e a arruinar a reputação do nosso país.”
A acompanhar a vitória dos dois extremos que se tocam veio o que José Filipe Pinto e inúmeros analistas classificam de “derrota catastrófica” para o SPD, o maior partido da coligação de Scholz, acompanhada de derrotas igualmente duras para os outros dois partidos do atual governo alemão – na Saxónia, Os Verdes terão conseguido ficar acima do mínimo de 5% de votos para entrarem no parlamento regional, na Turíngia nem eles nem o FDP alcançaram a fasquia.
"O impacto prático dos resultados fora destes estados será limitado, já que é improvável que a AfD integre o governo, mas vai muito provavelmente influenciar e mover o discurso político mais para a direita, porque outros partidos assustados com o sucesso da AfD tentam ser mais duros quanto à imigração", refere Hanelt. "Muitos estudos em ciência política já demonstraram que este poder de definir a agenda geralmente ajuda os partidos de extrema-direita e raramente serve para persuadir os eleitores a escolherem partidos mais moderados."
A fraca prestação do centro-esquerda e o facto de a AfD ter ultrapassado os conservadores da CDU na Turíngia, que ficaram praticamente empatados com a extrema-direita na Saxónia, são sinónimo de mais problemas no futuro, a começar com a próxima ida às urnas na Alemanha, marcada para 22 de setembro no estado de Brandemburgo, acrescenta José Filipe Pinto. "O que fica já é um aviso para a terceira eleição que aí vem, também no Leste da Alemanha, em que provavelmente vamos ter uma situação semelhante no curto prazo", refere.
"O problema vem a seguir, nas eleições para o Bundestag, porque aí é muito previsível que o SPD volte a ser muito penalizado, que a coligação no poder perca muita capacidade também, mas simultaneamente é crível que a AfD vá subir muito", adianta o especialista. "Já com a subida da Aliança Sahra Wagenknecht tenho dúvidas, porque esse é um fenómeno essencialmente localizado a leste, enquanto a AfD é um fenómeno nacional.”
Esse fenómeno não é de agora e veio mesmo para ficar. "A política na Saxónia e na Turíngia é muito específica e os resultados destas eleições não podem ser facilmente transpostos para o resto da Alemanha", indica o cientista político do Fórum Verfassungsblog. "Ainda assim, ao longo dos últimos 10 anos a AfD foi-se movendo mais e mais para a direita e conquistando ganhos não apenas na Alemanha de Leste. Estas eleições vão seguramente ter impacto nas estratégias de campanha de outros partidos, que já começaram a mover-se mais para a direita."