Da zeitenwende de Scholz ao wundertüte de Trump. "Com o colapso da coligação alemã e a eleição nos EUA, as coisas estão muito difíceis"

16 dez 2024, 07:00
Chanceler Olaf Scholz SPD Friedrich Merz CDU Alemanha Bundestag (Kay Nietfeld/dpa via AP)

A queda do Governo Scholz, oficializada esta segunda-feira, não podia vir em pior altura e o futuro não é risonho para a maior economia da Europa. Alemanha e a UE não estão preparadas para o novo mandato de Donald Trump e ainda não é certo de que forma a próxima chancelaria vai conseguir recuperar da atual crise económica – e de liderança

A notícia era esperada há meses, após Olaf Scholz ter demitido o seu ministro das Finanças, abrindo a porta à queda da coligação. O colapso acontece oficialmente esta segunda-feira, dia em que o Bundestag leva a votos a moção de confiança pedida pelo chanceler – e à qual é certo que não sobreviverá, dada a ausência de apoios parlamentares suficientes ao seu SPD.

A notícia era esperada há meses, mas os problemas não começaram com o braço-de-ferro entre o social-democrata e o liberal Christian Lindner. O cocktail explosivo esteve a maturar durante décadas e, chegados ao final de 2024, com eleições antecipadas previstas para 23 de fevereiro, a Alemanha dá por si num dilema. 

Após anos dependente do gás barato da Rússia, de importações de bens de consumo baratos da China e de exportações de elevado valor, em particular no setor automóvel, tudo sob garantias de proteção e segurança dos Estados Unidos, o modelo económico da maior nação da União Europeia (UE) está obsoleto – e o futuro, pelo menos no curto prazo, não augura melhorias substanciais.

A invasão em larga escala da Ucrânia pela Rússia em fevereiro de 2022 foi a pedra de toque que confirmou a crise latente. E com o panorama económico global em grande ebulição e o iminente regresso de Donald Trump à Casa Branca em janeiro, as previsões apontam agora para uma contração da economia alemã pelo segundo ano consecutivo – precisamente a raiz da crise que veio ditar o colapso da chamada “coligação semáforo”, entre o SPD de centro-esquerda, os liberais do FDP e Os Verdes.

“Uma das razões pelas quais esta coligação teve tantos problemas e pelas quais tivemos recessão na Alemanha nos últimos dois anos é o chamado travão à dívida, que impede o Governo de se endividar acima dos 0,35% do PIB, e esse é o dinheiro que falta para o tipo de investimento industrial de que o país tanto precisa”, aponta à CNN Portugal Patrick Schröder, da Chatham House. 

“O desafio agora para a Alemanha, enquanto hub de produção na Europa, tem duas frentes, face às políticas de industrialização dos Estados Unidos e da China, onde há financiamento governamental quer por via de isenção de impostos, quer por via de subsídios – e isto aplica-se a tudo, muito ao setor automóvel, incluindo produção de baterias para veículos elétricos, mas também às tecnologias emergentes, tecnologia limpa, energias renováveis… E isto é um problema para a Alemanha em particular, mas também para a Europa em geral.”

Havia esperanças de que, se Trump vencesse as eleições do outro lado do Atlântico no início de novembro, os partidos da coligação conseguiriam pôr de parte as suas diferenças para a manter de pé. Mas horas depois de confirmada a derrota da democrata Kamala Harris, a quatro mil quilómetros de distância confirmou-se o pior – e o pior surgiu após Scholz ter sugerido declarar emergência financeira para suspender o travão constitucional, uma linha vermelha para Lindner, que teria permitido incluir no Orçamento federal mais apoio à Ucrânia e mais dinheiro para reconstruir a indústria alemã de Defesa.

Os liberais acusam o SPD de pressões inaceitáveis, o SPD acusa o FDP de irresponsabilidade política, uma opinião que é partilhada por uma larga faixa do eleitorado e pela generalidade dos analistas, incluindo Sophie Pornschlegel. “Nunca vi nada assim, foi uma total irresponsabilidade política, os liberais bloquearam tudo, rejeitaram qualquer compromisso”, destaca a analista do Instituto Jacques Delors à CNN. E agora, “as sondagens põem-nos abaixo do limiar mínimo de 5% de votos” para elegerem deputados ao Bundestag.

A situação económica da Alemanha é tão grave que há até quem diga que o colapso da coligação "semáforo" - entre o SPD de Scholz (ao centro), Os Verdes de Robert Habeck (esquerda) e o FDP de Christian Lindner (direita) - se deveu, pelo menos em parte, à suspensão dos planos da Intel para investir 30 mil milhões de euros na produção de semicondutores no país Foto: Markus Schreiber/AP

Novas dinâmicas, novas discórdias

A 24 de fevereiro de 2022, as tropas de Putin invadem a Ucrânia pelo Leste. A 27 de fevereiro, Olaf Scholz profere em Berlim um discurso sobre o “resoluto empenho” da Alemanha na paz e na segurança da Europa. O ataque da Rússia, refere o chanceler, marca uma “Zeitenwende” – um ponto de viragem histórico e uma mudança de paradigma para a Europa e o resto do mundo. E após anos de capacidades de defesa negligentes e de imprudência ou ingenuidade quanto à sua posição geopolítica, chegou a hora de os alemães mostrarem que estão à altura do desafio.

“Temos de nos questionar: que capacidades possui a Rússia de Putin? E de que capacidades precisamos para contrariar esta ameaça – hoje e no futuro?”, questionou o chanceler alemão. “É evidente que temos de investir muito mais na segurança do nosso país para proteger a nossa liberdade e a nossa democracia. O objetivo é ter umas Bundeswehr [forças armadas] poderosas, de vanguarda e progressistas. [...] Isto é certamente algo que um país com a nossa dimensão e a nossa importância na Europa deveria ser capaz de alcançar. Mas não devemos ter ilusões, tudo isto custa muito dinheiro. Por isso, vamos criar um fundo especial para as Bundeswehr – e estou profundamente grato ao ministro Lindner pelo seu apoio nesta matéria!”

Mais de dois anos depois, com a guerra na Ucrânia ainda em curso após a Alemanha ter aprovado um fundo de 100 mil milhões de euros para modernizar o seu exército, a nova Comissão Von der Leyen está apostada em investir na indústria da Defesa europeia, mas o apoio de Lindner desapareceu. E restam mais dúvidas do que certezas quanto às hipóteses de salvar a Zeitenwende de Scholz com a saída de cena do chanceler – o quarto na História do país a cair na esteira de uma moção parlamentar desde a II Guerra Mundial, depois de Willy Brandt, Helmut Schmidt, Helmut Kohl e Gerhard Schröder.

“É muito difícil dizer qual será o novo modelo económico da Alemanha após as eleições”, assume à CNN o analista Thomas Obst, do Instituto para a Economia Alemã (IW), com sede em Colónia. “As sondagens preveem que a CDU [conservadora] vai ser o partido mais votado, mas ainda não publicou nenhum programa económico, apenas alguns fragmentos, e a questão é que o partido é conhecido por ser muito a favor do investimento privado, muito favorável às empresas, pelo que deverá apresentar políticas principalmente focadas em competitividade” – uma estratégia insuficiente para dar resposta a todos os desafios, a começar pelas urgentes questões de segurança e defesa.

A cerca de dois meses das eleições antecipadas, e após um ano de grandes conquistas para a Alternativa para a Alemanha (AfD) em eleições estatais, as sondagens antecipam que a extrema-direita ficará em segundo lugar – um em cada cinco alemães planeiam votar nela – atrás da CDU de Friedrich Merz, mas à frente do SPD, d’Os Verdes e da recém-criada Aliança Sahra Wagenknecht (BSW, extrema-esquerda). E dado que a CDU já traçou como linha vermelha a partilha de governação com a AfD, "terá de trabalhar com o SPD ou com Os Verdes", ressalta Obst.

As duas opções acarretam o potencial de discórdia, o que prenuncia renovadas dificuldades. “Com o SPD, poderá haver um impasse, em que não se assiste a uma mudança sistémica. Com Os Verdes, há grandes ideias sobre o que fazer com a economia, mas há um entendimento diferente, Os Verdes são muito mais intervencionistas, enquanto a CDU é muito mais orientada para o mercado", indica o analista económico. "Com uma chancelaria CDU, provavelmente veremos algo ao nível dos impostos, com a redução da carga fiscal, especialmente sobre as empresas, e uma tentativa de fazer algo quanto ao mercado laboral e aos salários, ponto central das suas ideias – mas com os sociais-democratas essas propostas deverão ser bloqueadas.”

Uma coligação CDU-SPD é uma possibilidade, admite também Patrick Schröder, tal como aconteceu antes de 2020 ao leme de Angela Merkel, com Scholz como seu vice-chanceler. “Só que isso não resultou assim tão bem”, adianta o analista da Chatham House. “A outra opção é os conservadores coligarem-se com Os Verdes, o que representaria uma nova coligação a nível federal, e já há exemplos ao nível subnacional, em alguns parlamentos estatais, em que os dois partidos têm conseguido trabalhar bem em conjunto”.

Com a “perceção generalizada entre o eleitorado de que o FDP foi o grande bloqueador na atual coligação, sobretudo ao impedir mudanças no travão à dívida que pode ser alterado em circunstâncias especiais – e diria que estas são circunstâncias muito especiais – é improvável que o partido alcance o mínimo de 5% de votos”, adianta Schröder. E isto abre a porta a uma potencial “combinação interessante, a novas dinâmicas e a uma inovação do sistema político alemão”, quando Berlim precisa “no mínimo de uma situação que nos permita níveis mais elevados para contrair empréstimos, por forma a estimular a economia”.

Friedrich Merz e a sua CDU excluem à partida uma coligação com a AfD, pelo que lhes resta o SPD e Os Verdes - com o primeiro, o historial não é famoso, com os segundos há pontos de acordo mas também desavenças no horizonte Foto: Markus Schreiber/AP

A Ucrânia e a defesa alemã na Europa

Com a segurança e defesa no topo das prioridades económicas da Alemanha e da UE como um todo, é difícil dizer o que é mais escasso neste momento: se o dinheiro, se a liderança. Quem o diz é a Economist, num artigo intitulado "Se a Europa quer paz, tem de ter planos para a guerra", no qual fala numa Alemanha "sob o comando da pequenez de Olaf Scholz" que "está a desfazer-se em pedaços".

Com a coligação já defunta, Scholz prometeu para o final deste ano uma nova estratégia para refundar a indústria alemã de Defesa, algo que o ministro da Defesa, Oscar Pistorius – que chegou a ser apontado a cabeça-de-lista do SPD – pré-anunciou na semana passada, num comunicado em que destacou que “a atual situação de ameaça exige que promovamos tecnologias-chave na Alemanha”.

Coassinado pelo ministro da Economia, Robert Habeck adiantou no mesmo comunicado que esta estratégia, ainda por revelar em detalhe, vai proporcionar a “segurança do planeamento” à indústria da Defesa e promover a inovação – e “para o efeito, estamos também a lutar por melhores condições-quadro europeias e por uma consolidação estratégica da indústria europeia de segurança e defesa”.

“Em novembro do ano passado, o governo já tinha apresentado novas diretivas para a Defesa, uma espécie de processo de atualização de diferentes políticas, e em junho deste ano anunciou novas orientações para uma reforma abrangente do setor, que não era atualizado desde 1989”, adianta Schröder. Uma das propostas é retomar o serviço militar obrigatório, algo já sob discussão e que “a CDU quer aprofundar após as eleições”. Mas em matéria de indústria, é necessária outra reforma ao nível orçamental, porque, como destaca o investigador da Chatham House, “para melhorar o equipamento militar é preciso mais dinheiro do orçamento federal, não é possível fazê-lo apenas com o setor privado”.

Ainda enquanto líder da oposição, na véspera de Scholz pedir formalmente ao Parlamento para debater e votar a moção de confiança, o provável futuro chanceler da Alemanha visitou Kiev para se encontrar com Volodymyr Zelensky, a quem propôs que Alemanha, França, Reino Unido e Polónia – nas palavras de Friedrich Merz, “os quatro principais países da Europa e da NATO” – criem um grupo de contacto para coordenar a abordagem europeia face à agressão russa na Ucrânia. Na resposta, Zelesnky disse apoiar a proposta do futuro chanceler alemão, antes de contrapor: "Mas para ser sincero, já organizamos isso, os países que referiu já têm um grupo de contacto."

Implacável nas críticas à anterior líder do seu partido, Angela Merkel, pela postura branda em relação ao Kremlin, Merz diz que aproveitou a reunião com o Presidente ucraniano para se "informar sobre o atual estado das defesas do país". E já depois de ter feito um ultimato à Rússia, prometendo entregar mísseis-cruzeiro Taurus de longo alcance à Ucrânia se o bombardeamento de civis continuar durante o seu mandato, disse em Kiev que pretende apresentar esta "visão unida" da UE à liderança dos EUA ainda este mês, quando faltam poucas semanas para Joe Biden passar o testemunho a Donald Trump.

O Presidente eleito dos EUA, esse, continua a prometer acabar com a guerra forçando as partes a sentarem-se à mesa de negociações e a decidir a futura ajuda norte-americana a Kiev com base no que for alcançado. E, em Berlim, Merz já deu a entender que, apesar de estar aberto a levantar o travão à dívida, vai cortar nos apoios sociais para poder financiar os necessários investimentos militares do país.

Friedrich Merz, o provável próximo chanceler alemão, é um acirrado defensor da NATO e da Ucrânia e muito crítico da postura "demasiado branda" da anterior líder da CDU, Angela Merkel, em relação à Rússia de Putin Foto: Efrem Lukatsky/AP

As tarifas e a (não) retaliação

Isto leva-nos à ameaça de tarifas sobre as importações europeias para os EUA, algo que já tinha marcado a primeira administração Trump e que promete moldar a sua segunda. “Trump pensa nas tarifas como uma arma poderosa para transmitir a sua posição, vimos isso mesmo com as tarifas que já prometeu aplicar ao México e ao Canadá, quando anunciou as tarifas ao México, falou sobre os líderes dos carteis de droga mexicanos e não sobre comércio”, refere Thomas Obst, do IW. “E no caso da Europa, quer mais despesa com a Defesa e usará as tarifas nesse sentido.”

O economista alemão concorda que os europeus têm de aumentar essa despesa e defende que o melhor caminho no atual contexto é o da negociação. “Se calhar o melhor é tentar alcançar um acordo com Trump, tentar negociar, como Christine Lagarde já sugeriu – fazer-lhe uma proposta em vez de retaliar, para evitar este cenário de guerra comercial”.

Ao longo do último ano, durante a campanha presidencial norte-americana, o Instituto para a Economia Alemã simulou três cenários em que Trump aplica tarifas sobre importações europeias e chinesas e as conclusões são preocupantes – e não apenas para a Europa. No primeiro, os EUA passam a taxar mais o que europeus e chineses exportam de forma unilateral e “o resultado macroeconómico para os Estados Unidos, o efeito no PIB, é quase zero”, explica Obst, pelo que “o plano até pode resultar para a economia norte-americana se ninguém retaliar”. Mas o caso muda de figura nos outros dois cenários, um em que só a China retalia, o outro em que a UE também retalia. 

“Aí estamos diante de um mundo diferente, isto resultaria num efeito muito negativo para todos, incluindo para a economia dos EUA, com uma provável contração do PIB”, adianta o economista alemão. Isto é “especialmente verdade para a Alemanha, que seria duramente afetada, porque a economia do país é muito baseada nas exportações e os EUA são o seu maior parceiro comercial” e o principal destino das suas exportações.

Para já, Obst refere que “é provavelmente um bom sinal Trump ainda não ter anunciado quanto ao Reino Unido e à UE” e alinha pelo diapasão da presidente do Banco Central Europeu quanto à necessidade de encontrar pontos de união com a próxima administração norte-americana – e a desvinculação EUA-China pode ser um caminho, até tendo em conta as tarifas impostas pela UE à importação de veículos elétricos de Pequim. “No caso da Alemanha, apesar de não ser favorável [a este tipo de negociações], essa talvez possa ser uma área em que podemos trabalhar em conjunto [com a administração Trump], face às tensões geopolíticas e caso as tarifas entrem mesmo em vigor.”

Mesmo ainda sem um anúncio oficial, a maioria dá como certa a aplicação de tarifas às importações europeias para os EUA de Trump. E a Alemanha é quem mais tem a sofrer com isso, reforça Patrick Schröder. “Há obviamente uma preocupação, não apenas em relação à Alemanha, mas à Europa como um todo”, refere o analista da Chatham House, que ressalta um grande ponto de contenda entre Washington e Berlim, o excedente comercial do segundo face ao primeiro, que já tinha alimentado a ira de Trump durante o seu primeiro mandato e que promete voltar a causar ondas nas relações transatlânticas.

“Temos de esperar para ver o que acontece quanto a isto, mas a questão do défice comercial Alemanha-EUA será usada como moeda de troca, no caso para forçar os países europeus a contribuir mais para o orçamento da NATO – o comércio é hoje uma ferramenta de geopolítica e a questão é que os EUA são o maior mercado das exportações da Alemanha, há cerca de 5.800 empresas alemãs com produção nos EUA.”

"Aí está ele outra vez!", manchete do tablóide alemão Bild no rescaldo da vitória de Donald Trump nos EUA Foto: Martin Meissner/AP

Indústria automóvel em maus lençóis

Não são só os especialistas que o dizem, os dados também o mostram: o setor automóvel que serve de grande motor à economia alemã vai ser duramente afetado se Trump avançar com as tarifas comerciais, ainda que persista uma réstia de esperança de que o plano não avance.

Antes de assumir a presidência dos EUA em 2016, o empresário tornado líder dos norte-americanos tinha prometido aplicar tarifas de 25% sobre a indústria automóvel europeia que nunca chegaram a concretizar-se. Mas segundo uma análise recente da Reuters, fabricantes como a alemã Volkswagen e as suas fornecedoras podem sofrer mais com as já anunciadas tarifas de 25% sobre as exportações do México para os EUA do que com tarifas diretas sobre bens importados da UE, considerando que a Volkswagen nos EUA importou dez vezes mais do México do que da Europa ao longo deste ano.

Numa nota interna enviada aos seus clientes horas depois do anúncio de Trump, a gestora de investimentos Bernstein Research indicava: “As ramificações para os fabricantes nos EUA das tarifas aduaneiras ao México e ao Canadá são tão grandes que, neste momento, é difícil não considerar o anúncio de ontem como mais do que uma moeda de troca.”

O cenário é ainda mais nocivo considerando a deslocalização de empresas alemãs para os Estados Unidos ocorrida nos últimos anos, também no contexto do Inflation Reduction Act (IRA) aprovado por Biden que veio ressuscitar o modelo protecionista Made in America. “O desafio é que o IRA atraiu muitas empresas para os EUA, os investimentos da indústria privada da Alemanha mudaram-se para os EUA”, refere Patrick Schröder. “E, ao mesmo tempo, a Alemanha enfrenta grande concorrência com os veículos elétricos da China, com boa qualidade e preços muito mais acessíveis, que ultrapassaram empresas alemãs como a BMW e a Volkswagen, que também têm modelos de veículos elétricos, mas que não são bons [quanto os chineses] e são mais caros.”

A isto acresce a questão do travão à dívida na base do colapso do governo alemão, que levou a que fossem feitos “ajustes que removeram os subsídios aos consumidores para comprarem veículos elétricos”, adianta o analista da Chatham House. “E com a Volkswagen e outras a cortar nos postos de trabalho, a eleição de Trump e a queda do governo alemão, as coisas estão muito difíceis.”

As tarifas sobre as importações de aço e alumínio do México, Canadá e Europa durante a primeira administração Trump afetaram duramente um setor já em crise que está agora preocupado com uma possível renovação da guerra comercial com os Estados Unidos Foto: Michael Sohn/AP

Ainda à espera do que o diretor do IW refere como o “wundetüte de Trump” (‘saquinho de surpresas’, numa tradução livre), a Bosch, outra gigante industrial alemã, anunciou esta semana que também vai cortar 8.250 postos de trabalho a nível mundial nos próximos anos, uma redução que pesa sobretudo no fornecimento de peças a fabricantes de automóveis em todo o mundo, numa altura em que a multinacional se debate com fraca procura, custos demasiado elevados e com a intensificação da concorrência.

“Com os desafios na indústria automóvel e a redução da produção na Europa, a Alemanha está a tentar atrair investimento estrangeiro no setor dos semicondutores”, destaca Thomas Obst – mas também isso está a falhar. O especialista invoca o caso da gigante norte-americana Intel, que em 2023 assinou um acordo com o governo alemão para investir 30 mil milhões de euros numa fábrica de microchips no país, mas que este ano suspendeu esses planos – com a Fortune a atribuir a rutura da coligação Scholz a essa decisão. “Parece-me, olhando para os exemplos, que a nossa localização não é suficiente para atrair grandes investimentos estrangeiros”, diz o economista do IW.

Questionado sobre o impacto do IRA no mundo empresarial alemão, Obst refere que a relocalização dos últimos anos “tem mais a ver com os preços muito mais baixos e com questões de regulamentação e carga fiscal nos EUA” e que “não há ainda provas de que o IRA tenha tido esse efeito” com base nos dados do primeiro semestre de 2024. Pelo contrário, os dados mostram que “as empresas alemãs beneficiaram efetivamente do IRA, as exportações aumentaram e se os EUA desenvolverem a sua indústria verde, como previsto nessa legislação, as nossas empresas também têm a ganhar com isso”. 

Apesar das preocupações com o facto de o IRA ser uma política industrial vertical e muito intervencionista, o que pode estar para vir é bem pior, sobretudo tendo em conta os planos de Trump para acabar com esse pacote legislativo de Biden. “O IRA é menos preocupante do que as tarifas de Trump”, ressalta. “O que estamos a ouvir das empresas alemãs revela preocupação, mas não pânico para já, e ainda temos muitos pontos fortes, como produtos muito especializados, que podem ter valor se os EUA continuarem apostados no hidrogénio e na produção de baterias para veículos elétricos. O problema é que não é claro se esse plano vai funcionar.”

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