Com Trump de volta, a Alemanha vai a eleições antecipadas. "Estamos definitivamente a assistir a uma viragem extrema à direita"

11 nov, 07:00
Olaf Scholz e Christian Lindner (Clemens Bilan/Lusa)

Apesar do pessimismo, há quem antecipe "uma coisa positiva" face ao iminente colapso da coligação de Olaf Scholz após meses de querelas internas. Com o despedimento do ministro das Finanças, o caminho está aberto para se anteciparem as eleições federais na Alemanha, que podem ter lugar em março ou já em janeiro. A vitória de Trump do outro lado do Atlântico veio aumentar as pressões sobre a UE para se manter unida e forte e isso depende de um governo estável na maior economia da Europa, onde a AfD, de extrema-direita, continua em rota para alcançar o seu melhor resultado de sempre em eleições federais, ainda que não tão bom como o que alcançou ao longo deste ano em eleições estatais no Leste do país. A grande incógnita no imediato é como que é todos os outros partidos se vão posicionar nos 60 dias de campanha até à ida às urnas

A Europa amanheceu na última quarta-feira com a notícia da eleição de Donald Trump como o 47.º Presidente dos Estados Unidos. Horas depois tornou-se também o dia em que a já frágil coligação da Alemanha entrou na sua reta final. Com a decisão de despedir o ministro das Finanças, Christian Lindner, líder dos liberais do FDP, o chanceler Olaf Scholz passou a encabeçar um Governo minoritário entre o seu SPD e Os Verdes e anunciou um voto de confiança no Bundestag (Parlamento federal) para o próximo dia 15 de janeiro – cinco dias antes de Trump tomar posse nos EUA.

Com o chumbo da moção de confiança dado como garantido, é provável que os alemães sejam chamados às urnas em março, seis meses antes da data inicialmente prevista para as eleições federais. Mas a julgar pelas reações do principal líder da oposição, de outros partidos, do Presidente da Alemanha e de quase dois terços do eleitorado, é possível que as eleições aconteçam mais cedo.

“Não há qualquer razão para esperar até ao início do próximo ano para pedir uma moção de confiança”, disse Friedrich Merz, líder dos conservadores da CDU, para quem a ida às urnas deve acontecer já em janeiro. “Agora não é altura para táticas e truques, mas para a razão e a responsabilidade”, afirmou o Presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, dizendo-se “pronto” para dissolver o Bundestag e convocar eleições de imediato.

Ter eleições o mais depressa possível – cumprindo o prazo constitucional de 60 dias a contar da dissolução do Parlamento – é o que uma maioria dos alemães deseja, de acordo com uma sondagem divulgada dois depois do despedimento de Lindner, que levou os ministros dos Transportes, da Justiça e da Educação, todos do FDP, a demitirem-se – com o primeiro deles, Volçer Wissing, a abandonar também o partido. De acordo com o inquérito de opinião para a emissora pública alemã ARD, 65% da população quer ir às urnas já, contra apenas 33% que apoiam o calendário apresentado por Scholz.

“As eleições podem acontecer antes de março, mas não muito antes disso”, explica à CNN o analista alemão Etienne Hanelt. “Vai ser preciso preparar a ida às urnas: selecionar candidatos, permitir que os partidos mais pequenos recolham assinaturas, recrutar funcionários eleitorais, toda a parte logística. A primeira data em discussão é final de janeiro de 2025, mas acho que o mais provável é termos eleições em março.”

Mais do que a data das eleições, que antes da queda iminente do Governo estavam previstas para setembro do próximo ano, “o que os factos nos mostram é que esta coligação chegou ao fim”, destaca Sophie Pornschlegel, do Centro Jacques Delors, em entrevista à CNN. “Não é do interesse do SPD ter eleições já, dado que vão precisar de tempo para se preparar, mas é natural que a oposição queira que haja eleições mais cedo do que tarde. Neste momento, as sondagens dão 34% aos conservadores [da CDU] e provavelmente serão eles a ganhar as eleições, quer elas aconteçam em janeiro, quer depois.”

Christian Lindner, líder dos liberais, é acusado de obstrução para aumentar o teto da dívida e reforçar o apoio à Ucrânia, nas palavras da analista Sophie Pornschlegel uma "total irresponsabilidade política"; eleitores poderão castigar o FDP de Lindner, que se arrisca a não eleger qualquer deputado ao Bundestag Foto: Filip Singer/Lusa

Uma "tragédia" na maior economia europeia

Com a iminente queda da coligação, a maior economia da Europa está mais do que nunca mergulhada em várias crises, incluindo uma crise de sustentabilidade financeira. “A Alemanha está numa situação difícil, com a economia em recessão, e quando o bolo está a diminuir, é mais doloroso redistribuí-lo”, sublinha Hanelt. A situação económica piorou a olhos vistos com a invasão em larga escala da Ucrânia pela Rússia há dois anos e meio, que pôs fim à entrada de gás barato no país. Mas, apesar de tudo, o chanceler alemão continua apostado em obter o apoio da aliança CDU-CSU para fazer aprovar o Orçamento federal antes do Natal, contemplando mais apoio financeiro à Ucrânia.

Merz, contudo, já deixou claro que só ajudará Scholz se este aceitar sujeitar a sua enfraquecida coligação ao voto do Parlamento ainda este ano. “Até lá, não iremos manter conversações sobre qualquer assunto com o que resta do Governo”, assegurou o conservador aspirante a chanceler, horas depois de um encontro com Scholz na quinta-feira ter terminado “em desacordo”.

Um dia antes, em declarações aos jornalistas, o chanceler alemão tinha ressaltado que o país “precisa de um governo que seja capaz de atuar, que tenha a força para tomar as decisões necessárias para o nosso país”, denunciando o “comportamento obstrutivo” de Lindner nas disputas orçamentais dentro do Governo e acusando-o de pôr os interesses do FDP à frente dos interesses do país, ao bloquear a legislação necessária sem motivos legítimos. “Especialmente hoje, um dia depois de um evento tão importante como as eleições nos EUA, este tipo de egoísmo é totalmente incompreensível”, acusou o chanceler.

Lindner, por sua vez, veio denunciar as pressões sobre o FDP para ultrapassar o limite da despesa pública previsto na Constituição, o chamado travão da dívida, uma medida que o líder dos liberais se recusou a apoiar – com fontes do Governo a dizerem que Scholz pretendia alargar o pacote de apoio à Ucrânia de 3 mil milhões para 15 mil milhões de euros e financiá-lo com a suspensão dessa medida constitucional. “Olaf Scholz recusa-se a reconhecer que o nosso país precisa de um novo modelo económico”, disse o líder dos liberais aos jornalistas. “Olaf Scholz mostrou que não tem a força necessária para dar um novo impulso ao seu país”.

Ainda coligados com o SPD, Os Verdes não escondem que a situação foi e continua caótica, com o ministro da Economia, Robert Habeck, a declarar “em nome” do seu partido, no rescaldo imediato da demissão de Lindner: “Isto é quase trágico num dia como o de hoje, em que a Alemanha precisa de mostrar unidade e capacidade de ação na Europa.”

“Tragédia é a palavra certa para definir o que está a acontecer”, refere Sophie Pornschlegel sobre a “coligação disfuncional” ainda no poder, acusando os liberais de "total irresponsabilidade política" por terem passado meses “a bloquear tudo, sem quererem alcançar qualquer compromisso". Como ressalta Etienne Hanelt, “os media estavam a especular há vários dias que o Governo de coligação alemão estava prestes a acabar – e se alguma coisa, muitos acreditavam que a reeleição de Trump faria com que a coligação se unisse uma vez mais”; mas em mais um mau presságio para a Europa, isso não se confirmou.

Eleição de Donald Trump para um segundo mandato como Presidente dos EUA pressiona UE a manter frente unida, o que será praticamente impossível sem um governo estável na Alemanha, referem os analistas Foto: Alex Brandon/AP via CNN Newsource

A "única coisa positiva" no horizonte

Não deixa de ser uma coincidência infeliz que o colapso da coligação, há muito frágil, tenha ocorrido quase ao mesmo tempo da eleição de Trump. Nas horas que passaram entre a derrota confirmada de Kamala Harris do outro lado do Atlântico e o início do fim do atual Governo alemão, os especialistas foram rápidos a ditar que, mais do que nunca, a UE tem de mostrar uma frente unida perante a imprevisibilidade de uma nova administração Trump, após o seu primeiro mandato ter sido marcado por um crescente isolacionismo e por uma guerra comercial entre os tradicionais parceiros transatlânticos.

“Com Trump de volta à Casa Branca, é no mínimo incerto até que ponto os EUA vão ser um aliado fiável da Europa”, aponta Hanelt. E nesse contexto, “enquanto maior economia da Europa, a Alemanha tem de contribuir muito mais para a defesa da NATO e no apoio à Ucrânia, já que não o fazer resultará numa potencial nova crise de refugiados e numa Federação russa ainda mais encorajada e mais próxima das fronteiras” da União Europeia.

“França e Alemanha saíram muito enfraquecidas das eleições europeias de junho, Macron estava demasiado focado nos seus próprios problemas políticos, e agora temos a Alemanha ocupada com eleições novamente”, acrescenta Pornschlegel, especialista no eixo franco-alemão. “A única coisa positiva que poderá sair daqui é termos um governo mais estável, que trabalhe mais com Macron, que trabalhe mais com o Governo de Keir Starmer, no Reino Unido, e até com Pedro Sánchez, em Espanha. Em Bruxelas, Ursula Von der Leyen tem um plano real para avançar com o que é preciso fazer, o que falta é vontade política. Vamos ver quão pró-europeu Merz será – os conservadores alemães tiveram Helmut Kohl, tiveram Angela Merkel, líderes que conseguiram trabalhar relativamente bem com a Europa. Vamos ver se ele vai trabalhar com base nesse legado.”

Após meses de disputas internas sobre a política orçamental e a estratégia económica do país, poucos foram apanhados de surpresa pelo colapso da chamada coligação “semáforo”, cuja popularidade tem vindo a decrescer na mesma medida em que a popularidade da extrema-direita e de uma recém-formada extrema-esquerda tem vindo a subir, nomeadamente em eleições estatais que tiveram lugar nos últimos meses, no Leste da Alemanha.

Pouco depois de Turíngia e Saxónia terem ido às urnas, em plebiscitos que marcaram duras derrotas para o SPD, o partido de Scholz ganhou algum fôlego nas eleições estatais de Brandemburgo, conseguindo um frágil primeiro lugar para impor um cordão sanitário à Alternativa para a Alemanha (AfD) no estado – mas apesar de a extrema-direita não ter conseguido replicar o mesmo nível de sucesso que nas duas anteriores eleições, nem por isso saiu derrotada dessa ida às urnas.

A Aliança Sahra Wagenknecht (BSW, extrema-esquerda), fundada este ano pela ex-comunista com o mesmo nome, está a enfrentar a sua primeira crise interna e isso pode desviar mais votos para a Alternativa para a Alemanha (AfD, extrema-direita) Foto: Christoph Soeder/dpa via AP

Desta vez, as sondagens não antecipam que a AfD consiga um lugar cimeiro nas eleições federais como conseguiu na Turíngia, por exemplo, mas como explica o analista do Fórum Verfassungsblog, “a turbulência e a sensação de disfuncionalidade política tendem a ajudar os partidos populistas, neste caso tanto a AfD como o BSW” – partido de extrema-esquerda fundado este ano por Sarah Wagenknecht, uma comunista demissionária que dá nome à aliança e que se aproxima da AfD em quase tudo à exceção da abordagem económica.

Só que na mesma semana em que a coligação Scholz entrou na sua reta final, a líder do BSW viu o seu poderio ser desafiado por Katja Wolf, que lidera a distrital do partido na Turíngia, ressalta Hanelt, o que “poderá afetar negativamente a popularidade do BSW” e abrir mais caminho à extrema-direita.

Deriva para a extrema-direita e uma campanha imprevisível

“A AfD está na melhor posição de sempre em sondagens desde as últimas eleições federais de 2021”, aponta o analista alemão. “Na altura conquistou 10,4% dos votos, agora está a rondar os 17% a nível nacional, ainda que se encontre numa tendência descendente.” Sendo um valor baixo em comparação com os 34% de intenções de voto atribuídas aos conservadores da CDU, “17% não deixa de ser muito alto para os padrões alemães, sobretudo se considerarmos que o partido só foi criado em 2015, quando, por exemplo, a Frente Nacional em França existe desde os anos 1980”, adianta Sophie Pornschlegel. “Isto é muito mau no contexto alemão.”

A piorar a situação constatou-se uma aparente aproximação do SPD, de centro-esquerda, à retórica da extrema-direita, quando na véspera das eleições estatais de Brandemburgo, a ministra do Interior de Scholz anunciou a reimposição de controlos em todas as nove fronteiras da Alemanha, pondo a tónica no tema que mais tem servido de combustível na fogueira da AfD.

“A decisão da ministra Annalena Baerbock de fechar as fronteiras alemãs é anti-Schengen e contrária às leis da UE, o que a torna ilegal, e para além disso a chancelaria também decidiu começar a deportar afegãos e sírios”, refere Pornschlegel. “Com a extrema-direita a ganhar terreno, isto é, não só chocante, como mostra que os progressistas estão realmente a perder o discurso e a narrativa, que estão completamente dominados pela AfD. As sondagens apontam-lhe ‘apenas’ 17%, vamos ver se assim é, sabemos como são as sondagens. Mas estamos definitivamente a assistir a uma viragem extrema à direita.”

Sondagens antecipam que a AfD, partido de extrema-direita liderado por Björn Höcke, que este ano conquistou enormes ganhos em eleições estatais no Leste da Alemanha, deverá conquistar cerca de 17% dos votos nas eleições federais Foto: Daniel Vogl/dpa via AP

Com o apoio dos EUA em risco, adianta Etienne Hanelt, “o SPD e Os Verdes defendem que as despesas com Defesa não podem vir às custas do Estado social, já que isso encorajaria os partidos populistas”. E do outro lado, “o FDP recusa o aumento do défice e o levantamento constitucional da dívida” – só que “ambos serão necessários e os líderes partidários vão ter de explicar isto aos cidadãos” até às eleições.

O que as sondagens mostram neste momento é que quer os liberais do FDP quer o partido A Esquerda poderão nem sequer ultrapassar o mínimo de 5% de votos necessários para eleger deputados ao Bundestag, enquanto o BSW de extrema-esquerda continua em queda, com 7% das intenções de voto, embora “ainda possa haver algumas movimentações ao longo da campanha”, diz o analista do Verfassungsblog.

“O interessante naquilo a que estamos a assistir é que, tal como nos EUA, os progressistas estão presos ao status quo e não se diferenciam assim tanto da direita em certos aspetos, especialmente no que toca às migrações e, ao mesmo tempo, com a extrema-direita a ganhar terreno, a abordagem dos partidos conservadores está mais radical do que nunca”, adianta Sophie Pornschlegel. “Vai ser interessante ver como é que os partidos centristas se vão posicionar até às eleições, como é que os conservadores vão fazer campanha em questões como as migrações e o clima e se os progressistas terão a coragem de realmente apresentar uma agenda que responda às necessidades das pessoas.”

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