Controlos com os nove países que fazem fronteira com a Alemanha entram em vigor esta segunda-feira. Para os analistas, a medida "não será eficaz em termos do controlo de entradas, é acima de tudo uma forma de aparentar capacidade de ação", numa altura em que a extrema-direita continua a ganhar terreno no país - e na Europa. Após quase 40 anos de livre circulação, é este o pré-anúncio da morte de Schengen?
A decisão “não tem precedentes” e vai “pôr à prova a unidade da União Europeia”. É assim que Alberto Alemanno, professor Jean Monet de Lei e Políticas Europeias na HEC Paris, define a reposição dos controlos nas fronteiras da Alemanha com os nove países que a rodeiam, que entra em vigor esta segunda-feira. “Trata-se de um duro golpe para o princípio fundamental da livre circulação na UE”, refere o analista à CNN – “e estabelece um precedente perigoso para outros Estados-Membros”.
Em conferência de imprensa há uma semana, a ministra alemã do Interior, Nancy Faeser, explicou que Berlim quer “reduzir ainda mais a migração irregular”, pelo que decidiu “tomar novas medidas que vão além das medidas abrangentes já em curso”. Com controlos implementados na fronteira com a Áustria desde 2015 e nas fronteiras com a Polónia, a República Checa e a Suíça desde o ano passado, as restrições são agora alargadas às restantes fronteiras com França, Luxemburgo, Bélgica, Países Baixos e Dinamarca.
Sob as regras definidas para o Espaço Schengen, “os Estados-membros podem adotar restrições temporárias nas suas fronteiras por uma série de razões específicas, mas essas restrições têm de ser proporcionais ao seu objetivo declarado”, explica Alemanno. E “quando um Estado-membro situado no centro da UE restringe as suas fronteiras com nove países, está claramente a ir além do que é razoável ao abrigo da legislação da UE e é difícil justificar essa política”, defende o especialista em direito comunitário.
Enquanto fiador do Tratado de Schengen, o executivo da União Europeia (UE) reagiu ao anúncio destacando que a Alemanha está no seu direito face a “uma ameaça séria”, mas ressaltou que os controlos fronteiriços têm de ser “necessários e proporcionais” e que devem “permanecer estritamente excecionais”. Para Alemanno, foi mais uma prova de que “a Comissão Europeia está a ser cada vez mais indulgente na imposição do respeito pelas regras de Schengen, demonstrando cumplicidade com alguns Estados-membros rebeldes”.
Uma medida "eleitoralista"
Criado em 1985 por cinco países europeus, hoje o Espaço Schengen integra 25 dos 27 Estados-membros da UE, a par de outros quatro não-membros, incluindo a Suíça e a Noruega. Por princípio, permite a livre circulação de pessoas e bens entre todos sem formalidades de maior, mas prevê exceções.
“A reposição de controlos não é propriamente uma novidade”, indica Lea Christinck, do Instituto Alemão de Investigação de Migrações e Integração (DeZIM). “O que mudou foi a duração e a justificação para esses controlos”, que ao invés de serem aplicados “como último recurso e de forma proporcional”, têm sido cada vez “mais longos”, quase sempre com base no que a investigadora refere como “um enquadramento altamente problemático das migrações como uma ameaça à segurança pública”.
Ao abrigo do Código das Fronteiras de Schengen, alterado em 2016 e novamente revisto em abril deste ano, cada Estado-membro pode impor controlos nas suas fronteiras por ameaças à segurança pública, grandes eventos internacionais, emergências sanitárias ou outras questões específicas por um período máximo de três anos. A medida alemã ficará em vigor por um período inicial de seis meses, que pode ser prorrogado por mais duas vezes, sujeito a revisão pela Comissão Europeia.
Contudo, “no passado, por exemplo na fronteira germano-austríaca, a duração máxima dos controlos fronteiriços foi ultrapassada várias vezes desde 2015, apesar dos limites e da sua classificação como contrários à lei”, refere Christinck, que remete para um “acórdão histórico” do Supremo Tribunal de Justiça em 2022, relativo aos controlos aplicados pelo governo austríaco nas fronteiras com a Hungria e a Eslovénia desde o outono de 2015, face ao primeiro pico elevado de chegadas de refugiados e migrantes à UE.
“Esses controlos baseavam-se alternadamente em vários artigos do Código das Fronteiras Schengen e o TEJ esclareceu que mesmo uma ameaça contínua não é suficiente para prolongar a duração máxima autorizada dos controlos nas fronteiras internas”, adianta a investigadora do Instituto DeZIM. “Consequentemente, os controlos foram declarados ilegais com efeitos retroativos” – mas nem por isso deram mostras de abrandar.
A par das questões legais, salta à vista a eficácia desta medida – ou falta dela. E no caso alemão, ressalta Lea Christinck, “os controlos devem ser vistos sobretudo como um ato simbólico – só têm lugar em alguns pontos das respetivas fronteiras, o que significa que não são muito eficazes em termos de controlo de entradas, são acima de tudo uma forma de aparentar capacidade de ação”.
Como outros países europeus, no ano passado a Alemanha assistiu a um aumento da imigração irregular, com dados oficiais a apontarem para mais de 250 mil chegadas clandestinas ao país até dezembro. E no final da semana passada, a chancelaria de Olaf Scholz anunciou um acordo com o Quénia para receber até 250 mil trabalhadores qualificados e semiqualificados do país, em troca da repatriação de 800 quenianos a viver irregularmente no país, de um total de cerca de 14.800 cidadãos do país africano atualmente na Alemanha. “Queremos aplicar de forma coerente a repatriação de pessoas que não têm o direito a ficar – este é um elemento importante para limitar a migração irregular, e este é um bom acordo para isso”, disse Nancy Faeser na sexta-feira.
As novas restrições nas fronteiras surgem numa altura em que o Alternativa para a Alemanha (AfD) e a sua retórica anti-imigração continuam a conquistar terreno no país, com o partido de extrema-direita a alcançar há duas semanas as suas maiores vitórias eleitorais de sempre, nos estados da Turíngia e da Saxónia, desde a queda do regime nazi, e quando falta uma semana para as eleições estatais de Brandemburgo, onde continua bem colocado nas sondagens.
As eleições na Turínga e na Saxónia tiveram lugar poucos dias depois de um atentado na cidade de Solingen, na região de Düsseldorf, que vitimou três pessoas e feriu oito, e que foi levado a cabo por um sírio de 26 anos com alegadas ligações ao Estado Islâmico e que aguardava deportação, isto depois de, em maio, um afegão de 25 anos a viver na Alemanha desde 2014 ter esfaqueado um agente da polícia de 29 anos em Mannheim, quando faltavam poucos dias para as eleições europeias (nas quais a AfD ficou em segundo lugar). No rescaldo do mais recente ataque, a chancelaria apresentou um plano para acelerar a deportação de migrantes irregulares e requerentes de asilo cujos pedidos foram rejeitados.
“[A aplicação de controlos nas fronteiras alemãs] tem por objetivo sinalizar politicamente, quer aos cidadãos alemães, quer aos imigrantes que chegam, que o governo já não está disposto a tolerar a livre circulação”, indica Alberto Alemanno. “É uma decisão que parece ser mais motivada por razões políticas do que por provas, surgida numa altura difícil para o acordo de coligação alemã”, de centro-esquerda, entre o SPD de Scholz, Os Verdes e os liberais do FDP. A menos de um ano das eleições federais na maior economia da UE, “trata-se essencialmente de uma medida eleitoralista com uma base factual limitada”, defende o especialista da HEC Paris.
Uma mudança de paradigma
O número de governos europeus apostados em repor controlos fronteiriços tem estado a aumentar, sobretudo face às pressões da retórica anti-imigração da extrema-direita que se tem espalhado por toda a UE. Neste momento, a Áustria está a operar controlos face a “ameaças de segurança” relacionadas com a guerra na Ucrânia e ao elevado número de chegadas a partir das vizinhas Eslováquia, República Checa, Eslovénia e Hungria.
Invocando ameaças de terrorismo por causa da guerra em Gaza e riscos de espionagem russa após a invasão em larga escala da Ucrânia, a Dinamarca também já está a controlar as chegadas por via terrestre e marítima, a par de França, Itália, Noruega, Eslovénia, Finlândia e Suécia, todos sob o argumento de ameaças à segurança.
Apesar da "base factual limitada" sobre a eficácia dos controlos nas fronteiras, as medidas agora em vigor na Alemanha “poderão dissuadir muitos migrantes e requerentes de asilo de tentarem atravessar as fronteiras, o que terá impacto nos nove países que, de repente, se verão confrontados com a presença de milhares de pessoas rejeitadas na fronteira alemã”, refere Alemanno.
A Áustria já deu a entender isso mesmo, quando logo após o anúncio de Faeser veio garantir que não vai aceitar quaisquer migrantes que sejam impedidos de entrar no país vizinho ao abrigo de uma medida "ilegal". A Polónia fala numa decisão “inaceitável”, com o primeiro-ministro, Donald Tusk, a pedir aos “outros países afetados consultas urgentes sobre ações a tomar dentro da UE quanto a este assunto”.
Pouco depois do anúncio, a Suécia, que não faz fronteira com a Alemanha mas que, tal como a Áustria, tem um partido anti-imigração no poder, anunciou uma “mudança de paradigma” nas suas políticas de acolhimento, sob a qual vai passar a pagar até 31 mil euros a migrantes para que voltem para os seus países de origem.
“A reintrodução de controlos nas fronteiras internas enfraquece o princípio fundamental de livre circulação do Espaço Schengen e perturba o quadro de asilo e migrações da UE que foi recentemente alvo de reformas, com base em fronteiras abertas”, com entrada em vigor prevista para 2026, refere Lea Christinck. “Na minha opinião, isto contradiz a própria essência do Sistema Europeu Comum de Asilo – substitui a solidariedade por políticas defensivas unilaterais e mina a responsabilidade coletiva e a confiança que as reformas [comunitárias] pretendem promover.”
Jogada de risco
Em 2016, um estudo da Fundação Bertelsmann Stiftung apontava que a reintrodução dos controlos nas fronteiras internas custaria à UE cerca de 470 mil milhões de euros em perda de crescimento ao longo de 10 anos. E há ainda a considerar os custos humanos, nas palavras de Alberto Alemanno “mais difíceis de quantificar”, mas potencialmente “enormes, já que afetam milhões de cidadãos e residentes da UE que subitamente são dissuadidos de atravessar as fronteiras”.
Apesar de “complexos e difíceis de medir”, os custos são óbvios e alguns fazem-se sentir no imediato face ao “aumento e normalização de políticas restritivas” como estas, acrescenta Christinck. “Há efeitos negativos para as pessoas e as empresas das regiões fronteiriças, para os trabalhadores pendulares e para o comércio, [que] durante muito tempo foram um argumento central contra estes controlos.”
Com base em estudos prévios, e ainda que esses efeitos negativos se registem “em diferentes graus”, a especialista dá como exemplos “engarrafamentos de trânsito e uma deterioração dos transportes públicos locais”, a par dos “elevados custos de deslocação e alojamento dos agentes policiais destacados nas fronteiras” e dos “custos de construção e instalação” de infraestruturas para o efeito, a par da “elevada retenção de agentes da polícia necessários para outras tarefas”.
Há ainda a considerar os efeitos incontornáveis para as populações migrantes de países terceiros, com as medidas a acarretarem riscos como o aumento do tráfico humano. “Os controlos fronteiriços estacionários tendem a conduzir a uma alteração das rotas das pessoas que pretendem entrar e transitar pela Alemanha”, explica Christinck. “Por causa deles, e para terem a possibilidade de procurar proteção na Alemanha, as pessoas em movimento ficam mais dependentes do contrabando, o que, por um lado, reforça potencialmente este modelo de negócio e, por outro, torna a rota migratória mais perigosa, mais marginalizada e mais cara para as pessoas em movimento”, quando “o que é necessário são mais rotas de fuga legais e seguras”.
Com vários controlos de fronteiras em vigor no espaço Schengen, aumentam também os relatos de repulsa ilegal nas fronteiras terrestres, adianta a investigadora de migrações, nomeadamente as alemãs – uma “violação do direito internacional” que arrisca amplificar-se na UE.
“As rejeições generalizadas não são legais, os pedidos de asilo de nacionais de países terceiros que procuram proteção, bem como a eventual responsabilidade de outros Estados europeus, devem ser examinados no âmbito do procedimento de Dublin. Mas há relatos, incluindo de organizações de direitos humanos e das pessoas afetadas, de que as pessoas estão a ser rejeitadas apesar de terem pedido asilo – e existe o risco de esta prática se intensificar.”
No rescaldo do anúncio de Faeser, uma das mais duras críticas à decisão veio de um cientista político da Universidade de Viena, que recorreu à rede social X para dizer que os políticos alemães deixaram de poder “continuar a dizer que alguém não está a cumprir a legislação da UE”. “Querem acabar com Schengen com um aceno de mão e de forma completamente acéfala, a governar como se a AfD (já) estivesse no poder”, escreveu Christopher Wratil. “Será que toda a gente enlouqueceu?”
A notícia da morte de Schengen pode ser exagerada para já, mas há que exercer cautela política. “Para garantir que Schengen não acaba, o Estado alemão deve respeitar o quadro jurídico e as suas limitações”, defende Lea Christinck. Ainda sobre cautela política, e questionado sobre a jogada “eleitoralista” da coligação alemã, Alberto Alemanno deixa outro alerta: “O que temos aprendido em casos anteriores em que os partidos tradicionais tentaram imitar os seus adversários à direita é isto – que o original tende a ser preferido à cópia.”