Governo era para ser apresentado no dia 20 mas fecho das negociações foi antecipado. O mundo, tal como está a ser tarifado atualmente, não dá para grandes esperas. No caso alemão, as negociações envolvem alguém que é um "género de Sérgio Sousa Pinto"
Têm sido dias de grande azáfama em Berlim, que culminaram com uma chamada a três na terça-feira, entre o conservador Friedrich Merz, que venceu as eleições legislativas antecipadas de 23 de fevereiro, o líder do SPD e o presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier. O objetivo: antecipar o anúncio de um governo de coligação que os dois partidos estão a negociar há mais de seis semanas e que, face à guerra comercial lançada pela administração de Donald Trump, se tornou mais urgente do que nunca.
“Isto foi uma loucura em Berlim nos últimos dias e o que acelerou todo este processo foram as tarifas de Trump. Esta guerra económica tem criado grande alarme na Alemanha, um país que está em recessão há dois anos e cuja indústria automóvel, principalmente BMW, Audi e Volkswagen, depende imenso do mercado norte-americano”, explica à CNN o analista político Miguel Baumgartner, especialista em assuntos europeus com larga experiência na Alemanha.
“Eles queriam ter apresentado o governo no dia 20, mas não havia como esperar, e terça-feira tiveram uma chamada a três para que nas próximas 48 horas houvesse um gesto político para acalmar os mercados”, adianta Baumgartner, citando fontes em Berlim com quem passou a manhã ao telefone. Com a entrada em vigor das ditas tarifas “recíprocas” de Trump, chegou a meio da manhã desta quarta-feira a notícia de que habemus governo alemão, para evitar que o país continue ao leme de um executivo de gestão num momento tão turbulento.
“Com a Alternativa para a Alemanha (AfD, de extrema-direita) cada vez mais próxima da CDU, com os mercados em alvoroço, com a bolsa alemã a perder nestes últimos dias o que não tinha perdido na última década - algo que não se via desde a crise do subprime em 2008 -, era preciso um gesto político”, reforça Miguel Baumgartner.
Esse gesto chegou, enfim, muito graças a uma grande cedência de Merz ao SPD. Durante a campanha, ficou claro que Scholz iria sair de cena após as eleições e ficou igualmente claro que Merz queria continuar a trabalhar com Boris Pistorius, ministro da Defesa na última coligação e que deverá manter essa pasta na nova. A grande surpresa é que Merz terá como vice-chanceler Lars Klingbeil, colíder do SPD, que assumirá também a pasta das Finanças.
“Merz não queria ter o presidente do SPD nas Finanças, mas nesta última semana, e com as tarifas e as convulsões que tem havido, nomeadamente na bolsa alemã, ele começou a sofrer muita pressão dos governos regionais - e mesmo dentro do próprio partido - para efetivamente aceitar o que era a condição sine qua non do SPD, de ter a pasta das Finanças, da mesma forma que Angela Merkel teve Scholz como seu ministro das Finanças”, adianta Miguel Baumgartner.
Antes do dito “Dia da Libertação”, assim proclamado por Donald Trump quando, no início deste mês, anunciou as datas e os valores das taxas aduaneiras sobre bens importados de mais de 150 países, CDU e SPD estavam há várias semanas a negociar a coligação ponto por ponto e o processo não estava a ser pacífico, diz o analista.
“As negociações estavam emperradas, era um problema sério, porque há efetivamente matérias, nomeadamente ligadas aos trabalhadores e ao salário mínimo, dos apoios sociais, quando há partes da Alemanha com grandes problemas de emprego... Havia todo este lado social que o SPD não podia perder – não podia levar aqui um abraço de urso, daí não querer um neoliberal com a pasta das Finanças.”
Com esta aceleração do processo made in USA, Merz “acabou por ceder e terá agora como número dois um homem que não é tão à esquerda quanto Scholz - para dar um exemplo que nos é mais próximo, é um género de Sérgio Sousa Pinto”, adianta Baumgartner. E a primeira grande dúvida a pairar sobre o novo governo alemão prende-se, precisamente, com o que esperar de Lars Klingbeil.
“Quando tens como ministro das Finanças alguém que é a versão mais jovem do Scholz – extremamente cauteloso e que, enquanto ministro das Finanças de Merkel, foi uma espécie de Mário Centeno, que congelou dinheiro e que não gastava em nada – há um medo que hoje se sente em Berlim sobre como é que [Klingbeil] vai fazer as reformas fiscais e laborais necessárias e como é que vai ter essa capacidade de gastar dinheiro enquanto efetivo delfim de Scholz.”
Merz quase que a ser enrolado
Ainda não havia anúncio formal sobre a nova coligação e o Politico vaticinava que “Merz já está em sarilhos políticos”. “O novo chanceler prometeu ser um líder forte para a Europa, mas as conversações [para a formação de governo] podem deixá-lo concentrado no controlo de danos a nível interno”, escrevia terça-feira o portal.
Essa imagem de líder forte colada a Merz praticamente desde o colapso da coligação semáforo de Scholz, precisamente no dia em que Donald Trump foi novamente eleito presidente dos EUA, em novembro passado, tem vindo a perder-se, e não apenas por causa das concessões que acaba de fazer para dar um governo estável à Alemanha.
“Muitos eleitores que votaram CDU acham que Merz perdeu gás e que, de alguma forma, toda aquela força, aquela genica que empregou, se perdeu e é isso que se nota muito nos últimos inquéritos de opinião, com muito voto CDU a dizer que, se fosse agora, votariam AfD porque a Alemanha não pode estar parada, tem de avançar”, explica Miguel Baumgartner. Pouco depois da entrevista com a CNN, uma nova sondagem conduzida entre 4 e 5 de abril junto de mil eleitores colocava a AfD à frente da CDU pela primeira vez, em mais um duro golpe para o chanceler Merz.
Dado o atual contexto económico e financeiro, Baumgartner destaca como outro grande desafio o facto de que “não foi bem explicado às pessoas como é que vai funcionar aquela bazuca económica que já apresentaram”, outro potencial problema. “Foi tudo explicado em termos muito técnicos, muito burocráticos, e depois há o facto de a aprovação ter de passar pelos parlamentos regionais e de haver muitos governos regionais sem maiorias.”
Em várias regiões, aliás, os governos estavam em suspenso à espera de orientações que nunca mais chegavam, sobretudo desde o anúncio das tarifas Trump. “Estavam, efetivamente, à espera de uma orientação política dos dois partidos a nível nacional e basicamente não tem havido nada. Merz não falou nos últimos dias, não apareceu a falar do problema das tarifas – os alemães estavam à espera de uma voz que não surgiu.”
Com o governo formado graças a uma enorme concessão que muitos eleitores da CDU podem ver como “Merz quase que a ser enrolado pelo SPD, a ser apanhado numa teia”, começam os verdadeiros desafios em Berlim, a começar pela resposta às tarifas, adianta Baumgartner.
“O que vamos ter de entender nas próximas horas e dias é que tipo de comportamento vai a coligação ter, até porque há situações como a questão dos sindicatos, agrícola e da imigração que não estão resolvidas mas que não ser conservadas nos próximos. Há um sentimento de que foi o pragmatismo que os levou a tomar esta decisão agora, porque até há 24 horas o acordo de governo não estava fechado. Só que era preciso acalmar os mercados, acalmar os eleitores e, o quanto antes, tomar decisões.”