“A Alemanha não é um país pobre, mas é um país exausto — exausto de proteger-se de tudo, até de si própria.”
Há uma melancolia nova a atravessar a Alemanha. Não é o pessimismo existencial de Thomas Mann, nem a culpa histórica que se arrasta pelos manuais; é antes uma espécie de cansaço estrutural — o cansaço de um país que já não cresce, que já não acredita que possa transformar a sua disciplina em prosperidade. Segundo a The Economist, há hoje na Alemanha mais de quinhentos tipos de apoios, subsídios e benefícios sociais. O Estado Social alemão tornou-se um labirinto generoso, mas paralisante, onde a cada passo o cidadão encontra um formulário, um benefício, uma compensação. E, enquanto isso, a economia abranda, a inovação esmorece e o país mais poderoso da Europa parece preso na sua própria teia de virtude burocrática.
Durante décadas, a Alemanha foi a locomotiva europeia. Crescia com método, exportava com orgulho, equilibrava orçamentos e liderava com contenção. Mas a engrenagem emperrou. O que hoje se discute em Berlim não é a taxa de crescimento, mas a razão pela qual o crescimento desapareceu. O investimento público estagnou, a transição energética é dispendiosa e confusa, a indústria automóvel perde terreno para os asiáticos, e o que sobra é um país que continua a funcionar — mas já não vibra.
Quando Friedrich Merz chegou à Chancelaria, prometeu um “outono de reformas”. Parecia um regresso à velha tradição ordoliberal — a ideia de que o Estado existe para garantir regras e equilíbrio, não para substituir a sociedade. Mas o outono passou sem reformas. O governo de Merz, que se imaginava como o renascimento da eficiência alemã, acabou prisioneiro de comissões, coligações e compromissos. Entre o SPD, que teme cortes, e o seu próprio eleitorado conservador, que exige disciplina orçamental, Merz tem governado como quem procura luz num nevoeiro — a cada passo mais hesitante, mais solitário, mais refém da realidade.
A reportagem da The Economist descreve este impasse com precisão: a Alemanha prometeu movimento e entregou paralisia. O “autumn of reforms” é, afinal, um outono húmido, sem fogo nem impulso. A economia estagna e o governo deriva. A pergunta que se impõe é simples: como é que o país que inventou o conceito de produtividade se transformou na economia menos dinâmica do G7?
Talvez a resposta esteja na própria virtude alemã. A Alemanha vive obcecada com a estabilidade. A ordem — Ordnung — é mais do que uma palavra, é uma filosofia. Mas num mundo em convulsão, a ordem pode ser um luxo caro. O economista Wolfgang Münchau escreveu em “Kaput: The End of the German Miracle” que a Alemanha se habituou a ser rica por inércia, beneficiando do euro, da globalização e da energia barata russa. Agora, sem esses pilares, o modelo revela-se frágil. O país é uma potência sem risco, e portanto sem audácia.
A generosidade do Estado Social tornou-se também o seu fardo. Com mais de quinhentos apoios e prestações, a máquina administrativa consome uma parte crescente do orçamento. As famílias vivem amparadas, mas a produtividade não acompanha. Os incentivos à inovação perdem-se num emaranhado de regras; o mérito dilui-se na equidade; e a economia move-se como um automóvel de luxo preso no trânsito. A Alemanha não é um país pobre, mas é um país exausto — exausto de proteger-se de tudo, até de si própria.
Friedrich Merz tenta devolver uma narrativa de força e confiança, mas a sua entrada, que se esperava de leão, tornou-se um rugido abafado. Falta-lhe espaço político: governa com um SPD que o tolera, mas não o acompanha, e enfrenta uma oposição que não oferece alternativa, apenas ressentimento e que está à frente nas sondagens. Merz é um homem de convicções liberais num tempo de medo. Quer reformas, mas encontra uma sociedade que teme perder o conforto que construiu. E essa tensão explica quase tudo: a Alemanha está dividida entre a memória do esforço e o hábito da segurança, do conforto e da ordem.
O problema alemão é, no fundo, o problema europeu. Uma Europa que cresceu à sombra da prosperidade germânica agora descobre que o seu centro está parado. A Alemanha era o motor e o exemplo, o país onde o Estado Social coexistia com a produtividade e a ética do trabalho. Hoje, essa harmonia rompeu-se. O Estado Social cresceu mais depressa do que a economia que o sustenta. E o modelo, outrora invejado, transformou-se num aviso: quando o bem-estar se torna fim e não meio, a sociedade perde o impulso de criar.
Num momento em que a Europa tenta redefinir-se, com guerras à porta e desafios globais à vista, a Alemanha precisava de liderar. Mas para liderar é preciso acreditar, e esse é talvez o bem mais escasso da política alemã contemporânea. O país vive sem entusiasmo. A sua elite fala em reformas, mas age como se temesse o próprio movimento. O eleitorado, envelhecido e cauteloso, desconfia de qualquer mudança e foca a sua impaciência no partido anti-europeu. E o resultado é esta paralisia: uma nação exemplar que esqueceu o verbo inovar.
Talvez o que falte à Alemanha não sejam políticas, mas narrativa. Nenhum povo se move por relatórios técnicos. Move-se por ideias, por ambições, por visões que ultrapassam o imediato. A Alemanha de Adenauer acreditava na reconstrução; a de Schmidt acreditava na responsabilidade; a de Kohl acreditava na unificação. A de hoje acredita apenas em evitar o erro e a questão da guerra na Ucrânia não pode ser o centro dos discurso. Mas não há progresso sem risco. E o risco é precisamente o que Merz parece incapaz de assumir.
Se nada mudar, a Alemanha arrisca tornar-se uma potência de manutenção: competente, ordeira, previsível, mas sem grandeza. Um país que administra o presente em vez de projetar o futuro. O que começa como prudência pode terminar como irrelevância. E uma Europa sem o pulso da Alemanha é uma Europa órfã do seu centro económico.
Talvez o outono das reformas ainda venha — talvez o inverno traga, como tantas vezes na história alemã, a lucidez do frio. Mas, por agora, o que se vê é um país que duvida de si. E nenhum plano económico resiste à dúvida de uma nação.