Dá para um semáforo ser azul? E um kiwi? O dia em que a extrema-direita disse "Adeus, Lenine!"

23 fev, 23:20
Alice Weidel celebra resultado da AfD nas federais (Filip Singer/EPA)

Não dá para ignorar o elefante na sala: a CDU de Friedrich Merz venceu e vai governar, mas a extrema-direita gritou em força na Alemanha

Se a mãe de Alexander Kerner visse o mapa eleitoral da Alemanha depois deste domingo era capaz de voltar a entrar num vórtex cinematográfico à procura de latas de comida da era soviética. O filho da velhinha Christiane, estrela do magnífico "Adeus, Lenine!" - se não viram, vejam, que vale a pena -, teria certamente dificuldade em explicar à mãe o que aconteceu à sua Alemanha de Leste, hoje completamente tomada pela extrema-direita.

É mesmo assim: o mapa mostra o antigo território da República Democrática da Alemanha (RDA) completamente pintado de azul, num pontapé brutal ao semáforo que compunha um governo de sociais-democratas do SPD (encarnado), liberais do FDP (amarelo) e Os Verdes (autoexplicativo). É um azul mais claro, e é também o azul da Alternativa para a Alemanha (AfD), partido que alinha numa lógica pró-Putin, anti-imigração e que teve este domingo o seu melhor resultado de sempre, duplicando a votação das últimas federais para alcançar 20% das intenções de voto.

O estrondo foi tal que Alice Weidel, a líder do partido que foi amplamente apoiada por Elon Musk - Donald Trump veio prontamente dizer que este era um "grande dia", demorou escassos minutos a reagir, para se afirmar como um partido que chegou ao arco do poder. Ela que voltou a dizer ao vencedor da noite que quer formar governo, sob pena de a extrema-direita chegar ao poder por si mesma noutro cenário.

"Estamos abertos a uma coligação com a CDU. Caso contrário não haverá uma mudança política possível na Alemanha", reiterou, falando num partido que nunca foi tão forte nacionalmente e que está “de mão esticada para formar um governo”.

Mas o líder da CDU, que teve cerca de 29%, o mais do que provável próximo chanceler da Alemanha, já negou essa possibilidade. “Não vamos entrar em conversações para uma coligação com a AfD. Dissemo-lo antes das eleições e o povo que votou na AfD sabia disso”, afirmou Friedrich Merz, puxando para si uma “vitória muito clara”.

“Vou procurar construir um governo que represente todo o país e que resolva os problemas do país. Não é segredo nenhum que preferia ter apenas um parceiro de coligação”, acrescentou, sublinhando que pretende encontrar uma solução governativa até à Páscoa.

Friedrich Merz toma uma cerveja pouco depois de saber que vences as eleições (Marcus Brandt/picture alliance via Getty Images)

AfD não, portanto. Então quem? As contas mais fáceis, talvez as dos otimistas, levariam a dizer que CDU e o mais do que derrotado SPD têm mandatos suficientes para formar um bloco central e governar o país.

Apesar de derrotado, naquilo que até definiu como um resultado “amargo” - o SPD teve mesmo o pior resultado em 130 anos, com cerca de 16,5% -, o ainda chanceler Olaf Scholz manifestou alguma disponibilidade, embora não se tenha percebido exatamente para quê exatamente.

Sem nunca o dizer preto no branco, o líder dos sociais-democratas deixou a entender que está disposto a apoiar um governo dos conservadores se essa for a única forma de afastar a extrema-direita do poder. Porque Olaf Scholz não disse que ia apoiar a CDU, mas reiterou que “nunca devemos aceitar” um partido como a AfD no poder.

Voltando ao mapa, o resto da Alemanha também virou à direita, embora não tão vincadamente. Da Baviera à Renânia, é de preto que se fazem as regiões, havendo ainda um dado curioso que confirma um dos melhores resultados da noite. Os esquerdistas do Die Linke (significamente literalmente "A Esquerda") conseguiram ganhar em cerca de metade do distrito de Berlim, numa ilha roxa perdida num mar de azul, o tal azul que Christine Kerner não iria aceitar.

Houve ainda vitórias pontuais de SPD ou até d'Os Verdes, partido que pode entrar claramente nas contas de uma coligação.

Recuperando um artigo publicado para antecipação destas eleições, deixamos abaixo o manancial de possibilidades para formação de governo.

GroKo: CDU + SPD

A chamada Grosse Koalition - grande coligação, ou GroKo - é uma das constelações governamentais mais famosas da Alemanha, integrando os conservadores da CDU/CSU e os sociais-democratas do SPD: desde 1949, houve quatro GroKos, três delas sob a liderança de Angela Merkel. A questão é que, ao contrário de cenários anteriores, os conservadores moveram-se bastante mais para a direita ao leme de Merz, o que torna os compromissos com o centro-esquerda mais desafiantes.

Para o atual líder da CDU, há um homem que tem “mostrado de forma impressionante” como as coisas devem ser negociadas numa GroKo: Boris Rhein, o atual primeiro-ministro do estado de Hesse, que faz parte da ala ‘Merziana’ do partido. Quando venceu as eleições regionais em 2023, Rhein negociou com o SPD e com Os Verdes, acabando por escolher trabalhar com o SPD por ser um parceiro mais “flexível e conciliador”.

Nas derradeiras semanas antes das eleições federais, Merz referiu-se frequentemente ao governo regional de Hesse como um modelo a seguir - ainda que, quando questionado sobre se prefere coligar-se com o SPD ou com Os Verdes, tenha respondido que “a situação pós-eleitoral não vai ser fácil”. Os especialistas antecipam que o SPD será mais flexível do que Os Verdes também a nível nacional, sobretudo no que toca às migrações e asilo, bandeira de Merz e uma área na qual os próprios sociais-democratas também se encostaram à direita, particularmente no último ano de governação.

Se os resultados eleitorais apontarem na direção de uma nova GroKo, é provável que se assista a movimentações importantes dentro do próprio SPD, até porque Olaf Scholz, o chanceler de saída, já excluiu a hipótese de integrar um governo Merz. Pelo contrário, o ministro da Defesa, Boris Pistorius, que muitos queriam como cabeça-de-lista do SPD nestas eleições, e o colíder do partido, Lars Klingbeil, deverão ganhar grande relevância.

Alemanha de fora. E Quénia?

A coligação semáforo que Scholz encabeçava desde 2021 e que caiu por causa de querelas com os liberais, sobretudo face à indisponibilidade do FDP para aumentar o teto da dívida pública e, por conseguinte, o apoio à Ucrânia, foi o primeiro governo tripartido da Alemanha em mais de 60 anos. 

Ao longo das oito décadas do pós-II Guerra, têm sido muito mais comuns as coligações entre dois partidos, mas a crescente fragmentação política e a subida de popularidade de vários partidos mais pequenos, como a AfD e a BSW de extrema-esquerda, fundada há um ano por uma dissidente comunista, abrem caminho a novos tipos de acordos.

Se Os Verdes, o FDP e A Esquerda conseguirem conquistar assentos no Bundestag - não é certo para os liberais neste momento -, uma aliança tripartidária será praticamente impossível de evitar. Nesse caso, e caso as sondagens não tenham fugido muito às reais tendências de voto do eleitorado alemão, a CDU enfrenta duas grandes opções: a chamada coligação Alemanha, composta pela CDU/CSU, o SPD e os liberais do FDP ou uma menos provável coligação entre CDU/CSU, SPD e Verdes, que os media batizam de coligação Quénia. (Em ambos os casos, as cores dos três partidos correspondem às três cores das bandeiras alemã e queniana.)

Mesmo que se prove incontornável, o cenário de uma coligação tripartida é pouco desejado. O consenso entre todos os partidos é que existem tantas divisões político-ideológicas que o novo governo seria, desde o início, tão frágil e propenso a conflitos como o anterior. Como escrevia o Politico há alguns dias: "Para alcançar o sucesso que deseja, o provável próximo chanceler da Alemanha precisa que os liberais e os esquerdistas colapsem e peguem fogo." A grande questão, sobretudo em relação ao Die Linke, é se Merz pode contar que assim seja.

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