As eleições revelam uma Alemanha dividida, desiludida com a sua elite política e imersa numa crise existencial. Ou os políticos apresentam soluções credíveis, ou quem se autoproclama defensor da Alemanha continuará a minar a democracia, até se impor como a única alternativa
A Alemanha voltou às urnas, após a desintegração da coligação semáforo, mas embora o veredicto eleitoral possa ter trazido clareza, não trouxe estabilidade. A extrema-direita continua a crescer, sintoma de uma crise profunda, enquanto partidos tradicionais, outrora âncoras do sistema, viram a sua base decair. O centro político vacilou, mas não caiu. Contudo, quem ganhou foram os extremos – aqueles que desejam outra Alemanha, noutra Europa.
Os resultados eleitorais deixam um cenário imprevisível. Com 28,5%, a CDU/CSU garantiu a vitória, mas já não ocupa o lugar incontestado de outros tempos. Afinal, a imitação raramente supera o original: a estratégia de Friedrich Merz para atrair eleitores da AfD falhou. O grande facto da noite é a ascensão da Alternative für Deutschland (AfD), que, com 20,8%, duplicou o resultado de 2021. O seu avanço a Leste era esperado, mas o verdadeiro abalo dá-se a nível nacional, expondo a erosão das barreiras que separavam os partidos democráticos da extrema-direita. A CDU enfrenta agora uma pressão crescente, mas, aparentemente, Merz resistirá à tentação de cruzar a linha vermelha imposta desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
O SPD voltou a evidenciar a sua fragilidade em consolidar uma base de apoio estável, mesmo entre eleitores históricos, como os trabalhadores para a AfD, obtendo 16,4%, um resultado historicamente baixo e a primeira vez na história da Alemanha do pós-guerra em que não fica em primeiro ou segundo lugar. Os Verdes, apesar do desgaste, estabilizaram nos 11,6%, enquanto a Die Linke, dado como extinto, surpreendeu com 8,8%, impulsionado pelo voto dos jovens, contendo o crescimento do novo partido de esquerda ”conservadora", a Aliança Sahra Wagenknecht (BSW), que não entrou no Bundestag, tal como os Liberais (FDP).
Sob a liderança de Friedrich Merz, a CDU tomou a dianteira na formação do governo, mas sem a força necessária para evitar negociações difíceis e concessões inevitáveis. A ausência de um parceiro natural de coligação, como o FDP, agrava a sua posição, deixando-a vulnerável a um cenário de instabilidade. Sem aliados estratégicos, a capacidade de governar de forma eficaz fica comprometida, correndo o partido o risco de ser forçado a fazer cedências que enfraqueçam a sua identidade e capacidade para concretizar a sua agenda.
O dilema é claro: uma vitória aparentemente sólida, mas curta, sustentada por um programa, mas sem a força necessária para ser implementada com assertividade, uma vez que as cedências previsíveis a enfraquecem antes mesmo de se concretizar. Num tabuleiro onde a força é relativa e a negociação inevitável, a CDU terá de equilibrar o compromisso com a convicção, sob pena de perder o que conquistou e antecipar o que a AfD procura: novas eleições.
Este partido de extrema-direita, que frequentemente invoca o imaginário nazi, emerge como a segunda maior força política, um marco sem precedentes na Alemanha pós-reunificação. O seu crescimento fulgurante reflete não apenas o descontentamento generalizado com os partidos tradicionais, mas também a sua capacidade de instrumentalizar a ansiedade económica, imigração e segurança. A questão central mantém-se. Continuará a AfD a ser um pária dentro do sistema, condenada à irrelevância? E até quando?
Tudo dependerá de Friedrich Merz. Manterá a sua palavra ou cederá à tentação, normalizando a agenda da extrema-direita? Afastar-se da AfD implicará um governo frágil e instável; aproximar-se da mesma, um ponto de não retorno para a democracia alemã. Qual dos lados de Merz, díspares durante a campanha, prevalecerá? O de defensor dos interesses da União ou aquele que propõe uma reforma radical da política de migração, contrariando as regras europeias?
Já o partido de Olaf Scholz confirmou os piores prognósticos, tendo sido incapaz de reconquistar um eleitorado desencantado e desmobilizado. O fraco desempenho eleitoral não só fragiliza o SPD como força central da política alemã, como também acelera a necessidade de uma redefinição estratégica profunda. O atual chanceler insistiu antes das eleições que não aceitaria entrar num governo com a CDU ou sequer participar nas negociações. Boris Pistorius, o popular Ministro da Defesa e provável sucessor, aparentemente, tem uma opinião diferente.
Os Verdes sofreram um recuo previsível, após anos de participação numa coligação disfuncional, ainda que menor que o dos seus antigos parceiros, mas poderão não vir a ser necessários para uma futura aliança governativa. Na luta pela sobrevivência política, mas já distantes do arco governativo, a Die Linke, há muito em declínio, procurou reinventar-se ao renovar o apelo à juventude e às causas sociais, conseguindo conter a ameaça direta do recém-formado BSW, que tem vindo a atrair eleitores desiludidos com a esquerda. Já os Liberais (FDP), outrora peças-chave nas coligações de governo, pagaram o preço da inflexibilidade do seu líder, Christian Lindner, sendo castigados por um eleitorado que os responsabilizou pelo impasse político.
Num cenário de crescente polarização, Friedrich Merz enfrentará o maior teste político da sua carreira, sendo forçado a encontrar aliados estáveis num quadro político instável. Trata-se de um desafio colossal para um candidato que nunca exerceu cargos ministeriais. Se falhar, no entanto, os custos não serão apenas para a Alemanha, mas para a própria Europa.
Uma "Grande Coligação" entre a CDU e o SPD, concretizada quatro vezes desde 1949, três das quais sob a liderança de Angela Merkel, é matematicamente possível. É considerada por muitos, dentro e fora da Alemanha, ideal para acelerar reformas estruturais cruciais, estancar o declínio económico do país e recuperar a sua posição de liderança na Europa. Uma oportunidade, arriscada tendo em conta o que aconteceu noutros países, ao ceder a oposição à extrema-direita, mas que poderia, aos olhos de muitos, recuperar o brilho do “milagre alemão”.
Outro cenário matematicamente possível será um acordo de governo entre a CDU, o SPD e os Verdes, a chamada coligação “Quénia”. No entanto, possível não significa, de forma alguma, que seja fácil. As diferenças ideológicas entre os três partidos são significativas e a necessidade de encontrar um terreno comum em áreas cruciais como a economia, a imigração, as políticas fiscais, sociais e as políticas ambientais exigiria concessões que nem todos estariam dispostos a fazer.
Finalmente, matematicamente impossível seria a chamada coligação "Kiwi", já existente a nível estadual, entre a CDU e os Verdes. Contudo, apesar das convergências nas áreas da defesa e da política externa, seria surpreendente que alguma vez conseguissem chegar a um consenso na questão da imigração. Enquanto a CDU tem tentado conter o avanço da AfD através de um endurecimento do discurso, os Verdes rejeitaram essa abordagem, optando por focar-se no combate ao extremismo e na defesa dos valores democráticos. Em temas tão importantes como as políticas ambientais e energéticas, as diferenças também são profundas, e mesmo que uma coligação fosse possível, os desafios seriam tantos que a união entre a CDU e os Verdes seria, no melhor dos casos, um casamento de conveniência, não uma solução robusta para o futuro.
Independentemente da coligação, antevê-se uma governação marcada por grande tensão e um constante realinhamento de posições, que dificultará a implementação de reformas essenciais, com destaque para a rigidez fiscal imposta pelo teto da dívida, que limita a capacidade de investimento do Governo. Somada à estagnação económica e à fragilidade da indústria, aliada à inflação persistente e aos ainda elevados custos energéticos, tornará a governação num exercício de sobrevivência para Merz, com a sombra da AfD sempre presente.
Apesar deste cenário, a vitória da CDU terá sido recebida com alívio, ainda que ensombrada pelos resultados históricos da extrema-direita. Com uma guerra na Europa há três anos, com o declínio estratégico e económico da Alemanha dentro da União Europeia e o fim anunciado da aliança transatlântica, será crucial que o futuro chanceler tenha a força necessária para governar. Para reafirmar a Alemanha como o motor da economia europeia, exercer uma liderança firme na defesa da Ucrânia e promover um investimento sem precedentes na defesa.
Porque se a Alemanha está em crise, a União Europeia também não está de boa saúde. E do outro lado do Atlântico, Donald Trump testa os limites da resistência europeia, denotando mais uma vez a sua obsessão com os déficits comerciais e a sua disposição para impor tarifas à União Europeia, que representa tudo aquilo que detesta – o cosmopolitismo, o liberalismo e a cedência voluntária de soberania em prol de normas e instituições supranacionais. A indústria alemã sofrerá um impacto severo, com o setor automóvel e a indústria química a serem os mais atingidos. Espera-se que Merz opte por uma resposta firme, disputando com Emmanuel Macron e Ursula Von der Leyen a liderança da União. Numa clara mensagem, após as eleições, deixou claro que qualquer hesitação poderá ter consequências gravíssimas e reforçou a ideia que as grandes decisões europeias terão, necessariamente, de voltar a passar por Berlim.
A realidade é que ceder às exigências de Trump, em detrimento dos interesses estratégicos europeus, enfraqueceria a cooperação em segurança e defesa, isolando a Alemanha e reduzindo a sua influência em Bruxelas. Uma União Europeia fragmentada tornar-se-ia vulnerável à manipulação de Washington, exposta às pressões de Pequim e Moscovo, e incapaz de responder às inquietações dos seus cidadãos — um vazio que a extrema-direita, sem hesitar, exploraria.
O próprio Vice-Presidente dos Estados Unidos, J.D. Vance, já sinalizou as suas preferências. Ao encontrar-se com Alice Weidel, líder da AfD, após a Cimeira de Segurança de Munique, enquanto ignorava Scholz, reabriu feridas históricas e deixou claro que, para a América de Trump, os extremistas são mais importantes do que os aliados tradicionais. O Vice-Presidente, mais centrado em reescrever a história do que em aprender alguma coisa com a mesma, ignorante sobre o que aconteceu em 1923 ou 1933, pôs em causa princípios que, ao longo de décadas, visaram impedir a chegada de um novo líder de extrema-direita ao poder.
A realidade é que estas eleições confirmaram uma Alemanha cada vez mais polarizada, sem uma força política capaz de garantir estabilidade. Na ânsia de captar o voto útil, a CDU acabou por normalizar a AfD, relativizando o seu extremismo em vez de o combater. O resultado está à vista. Perante a incerteza internacional e a necessidade de evitar um vazio de poder na maior economia europeia, impõe-se agora uma aceleração das negociações entre a CDU e o SPD. Uma negociação sensata e pragmática que defenda o futuro da Alemanha, mas também da União Europeia.
Mais do que um novo Bundestag, o que emerge é um país fragmentado, desiludido com as elites e à deriva numa crise económica e política. Mas um país que registou a mais alta taxa de participação eleitoral desde a reunificação. Conseguirá uma nova coligação dar uma resposta à altura das expetativas dos alemães? Conseguirá reinventar o seu modelo económico e renovar o contrato social com os seus cidadãos? Ou permitirá à AfD posicionar-se como a “verdadeira” oposição, capitalizando o descontentamento popular?
Ou os políticos apresentam soluções, ou quem se faz passar por defensor da Alemanha irá destruindo, instituição a instituição, a democracia, até restar apenas uma república sem republicanos. A morte da democracia não é um evento, é um processo. Weimar não caiu de um dia para o outro. Aqueles que adormecem numa democracia arriscam acordar numa ditadura.
Já aconteceu – pode voltar a acontecer.