A Rússia tirou-lhe energia, a China está a tirar-lhe exportações, Trump quer tirar-lhe a vantagem comercial: a Alemanha está em ebulição para se tirar disto

2 fev, 19:00
Friedrich Merz líder CDU Bundestag Berlim Alemanha (Markus Schreiber/AP)

Após duras críticas pela aliança inédita com a extrema-direita, aprovando no Bundestag duas moções não-vinculativas sobre migração e segurança com o apoio da AfD, conservadores da CDU reúnem-se esta segunda-feira em congresso pré-eleitoral. Fontes dizem que Friedrich Merz vai tentar desviar o debate para os desafios económicos do país, mas não é certo até que ponto vai fazer o eleitorado esquecer-se da questão que mais o move e do tabu pós-guerra que quebrou

Se tivesse sido aprovada, a chamada “lei de limitação do fluxo” de imigrantes que os conservadores alemães levaram ao Bundestag (Parlamento federal) na sexta-feira teria correspondido à primeira legislação vinculativa aprovada com os votos da extrema-direita. Dois dias antes, num passo que angariou muitas críticas e acusações - incluindo da sua antecessora, Angela Merkel -, o líder da CDU contou com o apoio da Alternativa para a Alemanha (AfD) para fazer aprovar duas moções não-vinculativas sobre migração e segurança – mas num volte-face, uma maioria dos deputados federais reprovou o pacote vinculativo.

“A votação de quarta-feira foi histórica no mau sentido”, explica Lea Christinck, do Centro Alemão de Investigação sobre Integração e Migrações (DeZIM). “Aquilo a que chamamos ‘brandmauer’ [barreira de proteção] caiu na Alemanha.”

É com a inédita aliança CDU-AfD como pano de fundo que os conservadores se reúnem esta segunda-feira numa conferência nacional, último encontro do partido antes das eleições de 23 de fevereiro. Com Merz sem pudores em deitar abaixo a barreira de proteção, e com milhares de alemães mobilizados nas ruas contra a sua decisão, observadores e jornalistas vão estar de olhos postos no congresso para avaliar o estado de espírito dos seus delegados e o verdadeiro nível de união nas fileiras da União Democrata-Cristã.

A CDU de Merz tem liderado, de forma sustentada, as sondagens desde que a chamada coligação-semáforo de Olaf Scholz, entre o SPD, os liberais do FDP e Os Verdes, caiu em meados de dezembro. Nessa altura, as intenções de voto nos conservadores rondavam os 32% contra 18% para a AfD em segundo lugar.

Um mês depois, mostra a sondagem das sondagens do Politico, a CDU parece ter perdido algum terreno, caindo para 30%, e numa tendência oposta a AfD, de extrema-direita, subiu para 21% - o que prenuncia ainda mais problemas na maior economia da União Europeia, em tempos tida como o país mais estável do continente.

Para desviar as atenções do tópico ‘migrações e asilo’ – que é como quem diz, do tópico ‘cordão sanitário’ à extrema-direita – Friedrich Merz planeia focar-se na situação económica da Alemanha, uma crise cuja responsabilidade atribui sem pudores a Merkel, tal como a crise migratória que acusa a antecessora de ter criado.

Segundo fontes, 80% a 90% do seu discurso no encontro de segunda vai focar-se num plano de 15 pontos para reavivar a economia alemã, numa altura em que a Alemanha e toda a UE enfrentam grandes riscos de turbulência económica face às tarifas que Donald Trump promete impor sobre as exportações europeias para os EUA.

Com a UE ainda sob ameaça latente de tarifas dos EUA sobre as suas exportações transatlânticas, Trump continua preso a uma ideia "que vem de trás" sobre o excedente comercial da Alemanha em relação ao mercado norte-americano, destaca Alberto Cunha Foto: Yuri Gripas/EPA 

“Merz é o líder partidário mais pró-atlantista dos últimos 20 anos na Alemanha, mas sobe ao poder com Trump no poder - e Trump tem uma visão deturpada sobre o défice da balança comercial: sendo um político extremamente mercantilista e protecionista, não percebe que ter um défice comercial não significa que os EUA estejam a perder comercialmente, nem significa que os outros, no caso os alemães, estão a competir de forma desleal”, diz à CNN Alberto Cunha, doutorado em Estudos Europeus pelo King’s College e professor em duas universidades alemãs.

Entre as medidas que Merz pretende apresentar pode constar uma proposta de acordo comercial UE-EUA, no que o analista português considera uma “resposta interessante e a opção óbvia para um político pró-atlantista e pró-comércio como Merz”, sobretudo considerando a posição difícil em que o futuro chanceler alemão se encontra. 

“A opção intermédia é não ter acordo, mas fazer concessões, o que é muito mal visto pela opinião pública alemã, junto da qual Trump é ainda mais impopular do que no resto da Europa”, destaca o também investigador associado do Instituto de Política Europeia em Berlim. “E quanto à opção de guerra comercial, os franceses estão à partida mais confortáveis porque dependem menos do comércio e mais da agricultura - mas a Alemanha não pode dar-se a esse luxo no contexto atual, quando perdeu a energia barata da Rússia, quando com a China enfrenta mais concorrência e menos exportações, e quando enfrenta agora também dificuldades com o Mercosul e com Trump."

Merz "derrubou-se a si próprio"?

A tentativa de Merz em focar o debate político na economia está alinhada com a Comissão Europeia de Ursula Von der Leyen, que esta semana apresentou a sua proposta detalhada para relançar a economia da UE, num documento batizado "Bússola da Competitividade". E, no caso alemão, isso traz-nos de volta a uma questão sensível, do chamado travão à dívida, um mecanismo constitucional que impede o país de se endividar acima dos 0,35% do PIB, o mesmo que ditou a queda da coligação Scholz e um assunto sobre o qual o líder da CDU continua a manter uma postura ambígua, ressalta Alberto Cunha.

“A Alemanha continua a ser, de longe, o motor económico da Europa e a grande discussão neste contexto é o que fazer com o travão constitucional introduzido em 2009”, ressalta o especialista português. “A regra alemã sobre o défice estrutural é mais restritiva do que a europeia e acabou por ser ela a ditar o fim do governo. Sobre isto Merz é bastante ambíguo, mas suponho que vá ser atacado neste ponto nos debates com Scholz."

Se disser que quer acabar com o travão, perde votos à direita, caso contrário perde ao centro, adianta o especialista. "É esse o grande dilema da CDU neste momento: vai para o centro ou para a direita? O instinto é estar no meio, quando a candidatura de Merz quer, sobretudo, estancar a hemorragia de votos para a AfD - e o SPD vai aproveitar para atacar.”

Quem quer que domine os debates até às eleições, é certo que o tema migrações está e vai continuar a ser o grande motor da ida às urnas, da mesma forma que o foi em eleições estatais no ano passado, como na Turíngia e na Saxónia, onde a AfD conquistou os seus melhores resultados de sempre.

Entre cada plebiscito, a Alemanha tem assistido a ataques muito mediatizados, o último deles há pouco mais de uma semana, quando um afegão com tendências violentas que devia ter sido deportado em 2023 matou um homem e uma criança à facada e feriu várias outras crianças num parque de Aschaffenburg, na Baviera.

O esfaqueamento seguiu-se a um outro ataque ocorrido em dezembro, quando um médico saudita anti-Islão e simpatizante da extrema-direita conduziu um carro contra transeuntes num mercado de Natal em Magdeburgo, matando seis pessoas e ferindo mais de 200.

“A AfD conseguiu desviar as atenções do facto de o suspeito ser um simpatizante seu, capitalizando, em vez disso, o medo das pessoas e associando-o a críticas mais alargadas às políticas de imigração e asilo”, destaca Lea Christinck. E em resultado disso registou-se “um aumento da violência e dos ataques racistas em toda a cidade, incluindo uma tentativa de fogo posto tendo como alvo um projeto de esquerda” pró-integração de migrantes.

Nas últimas semanas, o partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha, liderado por Alice Weidel, subiu alguns pontos percentuais nas sondagens, numa rota diametralmente oposta à da CDU Foto: Michael Sohn/AP

Após as europeias de junho passado, e após uma campanha em que a maioria dos partidos alemães focou as suas mensagens nos desafios económicos e de política externa, um inquérito do Eurobarómetro concluiu em outubro que questões como o custo de vida (37%), a situação económica (36%) e a situação internacional (37%) foram secundárias para o eleitorado alemão em comparação com questões de migrações e asilo (44%). E com a AfD a dar cartas junto de pelo menos um quinto dos eleitores, este dado não é de menosprezar, indicam os analistas.

Merz até pode tentar, mas é improvável que consiga desviar as atenções deste ponto até 23 de fevereiro. “Ele entrou como um tigre e acabou como um tapete”, disse a líder do partido de extrema-direita, Alice Weidel, com um tom notoriamente satisfeito, na sexta-feira. “O sr. Merz não é apenas desastrado, também não é rigoroso – derrubou-se a si próprio.”

O líder da CDU chegou a pensar que ser mais duro no que toca à imigração, mostrando que o partido está preparado para fazer as coisas de forma diferente – mesmo que isso passe por depender do apoio da AfD –, dar-lhe-ia um impulso junto dos eleitores. Mas só os próximos dias e semanas vão mostrar se a jogada de Merz resultou ou se o tiro saiu pela culatra. E, enquanto isso, o centro e a esquerda unem-se em críticas ao líder conservador e milhares de alemães continuam a sair à rua em várias cidades.

Quando Merz se congratulou com a vitória agridoce no Bundestag, Olaf Scholz veio questionar se o eleitorado pode mesmo confiar no líder da CDU quando diz que nunca aceitaria coligar-se com a AfD. “Os cidadãos têm de se questionar se podem mesmo acreditar que, havendo uma maioria [parlamentar] CDU-AfD, não irá mesmo haver uma coligação CDU-AfD”, disse o cabeça de lista do SPD.

“Não tenho qualquer confiança que Merz não coopere com a AfD para obter mais maiorias no Bundestag”, adianta Christinck à CNN – nem tão pouco “que se distancie claramente da AfD após as eleições”.

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