Como este jogador de futebol salvou um adolescente judeu da perseguição da Alemanha nazi

CNN , Thomas Schlachter
17 jul 2024, 08:00
Ralph Freeman como soldado no Corpo de Pioneiros do Exército britânico (Cortesia de Alan Freeman)

Depois de a Alemanha ter recebido a equipa de futebol da Inglaterra em maio de 1938, Rolf Friedland esperou pacientemente no exterior do estádio.

O adolescente esperava falar com algumas das maiores estrelas do futebol da época – um sentimento de antecipação que muitos adeptos do desporto já experienciaram.

Mas para o jovem judeu-alemão de 17 anos estava em jogo muito mais do que isso. Friedland sabia que um dos jogadores de futebol que alinharam naquele dia tinha o poder de lhe salvar a vida.

E foi com a ajuda de um defesa inglês que Friedland conseguiu sair da Alemanha, escapar à perseguição dos nazis e começar uma nova vida no estrangeiro como Ralph Freeman.

‘Eles vão matar-me’

A família de Freeman já tinha fugido da Alemanha sem ele, e ele ficou sozinho e isolado, sabendo que deixar o país era essencial para a sua sobrevivência.

"Psicologicamente, ele estava desesperado para sair", diz Alan Freeman, filho de Ralph, à CNN. "Ele foi deixado lá sozinho, presumivelmente com algum tipo de esperança de que os seus pais seriam capazes de o tirar de lá, mas não acho que ele confiava inteiramente nisso."

Fã de futebol desde sempre, o desespero de Freeman para deixar a Alemanha nazi levou-o ao Olympiastadion naquele fatídico dia 14 de maio de 1938. Elaborou um plano para tentar chamar a atenção de um jogador inglês que poderia ajudá-lo a fugir da Alemanha.

O adolescente Freeman, terceiro a contar da esquerda, com a equipa de futebol em Berlim (Cortesia Alan Freeman)

"Penso que o meu pai era uma pessoa criativa e, para fazer algo assim, é preciso um certo grau de criatividade", explica Alan.

"Embora houvesse um certo elemento de iniciativa criativa, penso que [o plano] foi feito principalmente por desespero", acrescenta.

"Eu só precisava de sair", diz Alan sobre a atitude do seu pai. "'Vou encontrar uma maneira qualquer de tentar sair daqui. Se eu não sair daqui, eles vão matar-me.”

Quando os jogadores saíram do estádio, foi o defesa inglês e do Tottenham Hotspur Bert Sproston que parou e ouviu Freeman.

"Não sei se ele escolheu especialmente Bert Sproston como a pessoa mais provável para o ajudar", conta Alan. "Ele simplesmente falou com esse jogador em particular e esse jogador em particular registou o desespero do meu pai.”

"É óbvio que lhe tocou o coração e ele decidiu voltar atrás e fazer algo a esse respeito."

Embora Sproston não conhecesse os pormenores exatos da vida de um judeu que vivia na Alemanha à data, o escritor e jornalista John Leonard acha que ele estaria ciente da hostilidade dos nazis para com os judeus.

No seu livro "Salute!”, Leonard analisa a forma como o desporto e a política se confrontaram durante este período – culminando neste famoso jogo.

"Tenho a certeza de que ele se apercebeu de que, os judeus na Alemanha, para o dizer de uma forma educada, estavam a passar um mau bocado", diz Leonard à CNN.

24 de Agosto de 1938: Bert Sproston, acabado de assinar contrato com o clube de futebol Tottenham Hotspur (H. F. Davis/Topical Press Agency/Getty Images)

Michael Berkowitz, professor de história judaica moderna na University College London, concorda.

"Toda a gente estava ciente disso", diz Berkowitz à CNN. "Mais uma vez, é importante não ler de trás para a frente, mas as pessoas sabiam que se estava a passar algo que não era normal para os padrões de outros lugares."

Depois de falar com Sproston, que levou os seus dados para a Grã-Bretanha, Freeman obteve um visto para o Reino Unido para assistir a um jogo amigável da Inglaterra.

Conseguiu finalmente sair da Alemanha e evitar os acontecimentos que viriam a desenrolar-se.

‘Um ano crucial’

A Europa estava à beira da guerra quando a seleção da Inglaterra se deslocou a Berlim em 1938.

As tensões geopolíticas estavam a chegar a um ponto de ebulição no continente e o poder de Adolf Hitler e do partido nazi continuava a crescer em toda a Europa.

À medida que a influência dos nazis aumentava, o tratamento da população judaica da Alemanha piorava drasticamente.

"1938 foi um ano realmente crucial", diz Berkowitz.

Foi o ano em que se assistiu à anexação alemã da Áustria, vulgarmente conhecida por Anschluss, em março, bem como à Kristallnacht – a noite dos vidros partidos – em novembro do mesmo ano.

Berkowitz explica que Hitler intensificou cautelosamente o seu tratamento odioso dos judeus depois de ter chegado ao poder em 1933, mas em 1938 as condições pioraram drasticamente.

"A anexação da Áustria abarcou uma incrível ação anti-judaica, incluindo fogo posto em sinagogas e o espancamento de judeus nas ruas", acrescenta Berkowitz.

"Mas ainda mais impressionante foi [...] o que mais tarde seria chamado de ‘Kristallnacht’", diz Berkowitz. "Quase todas as sinagogas da Alemanha foram incendiadas, literalmente centenas, milhares de pessoas foram espancadas nas ruas [e] pensava-se inicialmente que não tinham sido mortas tantas pessoas, agora sabemos que foram mortas muitas mais pessoas."

Uma sinagoga a arder em Borne-Platz, Frankfurt, a 10 de novembro de 1938 (Photo 12/Universal Images Group via Getty Images) 

Segundo o Museu Memorial do Holocausto nos Estados Unidos, pelo menos 91 judeus foram mortos, 30 mil judeus alemães foram presos e enviados para campos de concentração e centenas de sinagogas foram incendiadas durante os acontecimentos de 9 e 10 de novembro de 1938.

"Foi nessa altura que o mundo acordou verdadeiramente”, diz Leonard. “Unificou-se perante o horror com o que os nazis estavam a fazer."

Graças à intervenção de Sproston, Freeman conseguiu embarcar num comboio em Berlim e chegou a Londres apenas algumas semanas antes dos acontecimentos de 9 e 10 de novembro.

‘Ele salvou-me a vida’

As ligações de Sproston ao mundo do futebol revelaram-se vitais para ajudar Freeman a sair da Alemanha.

"Normalmente, é preciso ter algum tipo de ligação pessoal. É preciso que alguém se responsabilize por nós, ou então é preciso que haja algum tipo de esforço organizacional", diz Berkowitz sobre o processo de obtenção de um visto para sair da Alemanha como judeu.

"Mas, digamos, puramente como um indivíduo ou um indivíduo sem meios. Uau. Isto não é fácil de fazer".

O facto de Sproston ter patrocinado o visto britânico de Freeman revelou-se, portanto, inestimável para garantir a sua fuga da Alemanha.

"Bert Sproston não só mudou a vida de Ralph Freeman. Salvou-lhe a vida", acrescenta Leonard.

"Sem a sua intervenção, era muito provável que o jovem Ralph Freeman tivesse ido parar a um campo de concentração e tivesse sido assassinado pelos nazis."

Freeman enquanto adolescente a fazer canoagem num dos vários lagos de Berlim (Cortesia de Alan Freeman)

Leonard também diz que, ao contrário da maioria dos seus companheiros de equipa ingleses, Sproston podia olhar para trás para este jogo com um sentimento de orgulho.

Foi antes desta partida que os jogadores ingleses fizeram a famosa saudação nazi antes do pontapé de saída.

Leonard afirma que a equipa inglesa estava sob uma pressão considerável para fazer a saudação nazi como forma de apaziguamento mas, ao ajudar Freeman, Sproston pode sentir-se menos culpado pela saudação antes do jogo.

"Ele [Sproston] foi um dos jogadores que deixou Berlim, depois de ter tomado uma decisão pessoal, tanto quanto uma decisão de equipa, que iria assombrar a maioria dos jogadores para o resto das suas vidas – ele certamente poderia olhar para trás, para esse jogo, com um laivo de orgulho", diz Leonard.

‘O mundo seria um sítio melhor’

Sproston faleceu em 2000 e Ralph Freeman faleceu em 2010, mas o filho de Ralph, Alan, diz que os dois continuaram próximos após a sua primeira interação.

"Até ao dia em que Bert morreu, mantiveram-se em contacto", explica Alan.

Alan acrescenta que os dois ficavam sempre contentes por se verem e que esta boa relação foi transmitida à geração seguinte, uma vez que Alan mantém contacto com Janice, a nora de Sproston.

Alan diz que ele e Janice têm uma "relação profunda e significativa e uma amizade" construída sobre os legados e as histórias do pai e do sogro.

O amor pelo futebol e, em particular, pelo Tottenham Hotspur, também foi transmitido de pai para filho e Alan lembra-se com carinho de acompanhar o percurso do Tottenham com o seu pai.

Mas mais importante ainda foi a história de Bert Sproston e da sua ajuda a Ralph Freeman para tentar deixar a Alemanha nazi.

"Penso que se todos nós pudéssemos agir com decência para com as outras pessoas da mesma forma que Bert se comportou para com o meu pai, então o mundo seria um lugar melhor", diz Alan.

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