"O álcool que existe nas bebidas é um químico muito aditivo e agressivo, muitíssimo disponível e muito bem aceite socialmente, o que piora a situação." Qual situação? O consumo excessivo de álcool "é o principal fator de risco para mortalidade prematura e incapacidade entre os 15 e 49 anos". E o consumo em Portugal está acima da média da UE. Premissa: "quanto mais se aguenta o álcool maior é risco"
Nota do editor: se você ou alguém que conhece estiver a lutar contra uma dependência alcoólica, entre em contacto com o seu médico de família ou ligue para a linha Vida SOS Droga do SICAD 14 14, para a linha SNS24 808 24 24 24 ou para a linha de ajuda dos Alcoólicos Anónimos Portugal 217 162 969 ou através do e-mail info@aaportugal.org
De fácil acesso, socialmente aceite e, em muitos casos, associado a momentos de felicidade - seja num jantar de família, numa ida ao café com amigos ou naquela saída de sexta-feira ou sábado -, o álcool é uma constante em muitas situações: mas será que o copo de vinho ao almoço e ou xiripiti com o café se pode tornar num problema de dimensão maior?
Perceber a partir de que momento alguém é diagnosticado clinicamente como alcoólico é algo que advém de um processo complexo, não linear e que varia de pessoa para pessoa, consoante os tipos de consumos, a personalidade e até o momento da vida que a pessoa visada está a atravessar. Outra nota: o psiquiatra e antigo diretor do Centro das Taipas Luís Patrício sublinha que “o álcool é um químico neurotóxico e o seu consumo não é isento de riscos para a saúde, podendo estar na origem de várias doenças”.
Segundo o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), mais de 85% da população portuguesa terá consumido pelo menos uma bebida com teor alcoólico nos últimos 12 meses. O relatório coloca Portugal no conjunto de países em que o consumo de álcool está acima da média da União Europeia, que se fixa nos 9,5 litros per capita, valor que no panorama português é de 12,1 litros. Do número total de portugueses, 2,8% dos portugueses têm um consumo elevado ou nocivo e 0,8% têm mesmo uma dependência. E é aqui que surge a dificuldade principal: como se distingue um consumo abusivo de dependência?
Esta diferenciação entre tipos de consumo é complexa e, por vezes, pode ser um autêntico "desafio", como explica a psicóloga clínica Ana Catarina Nunes, do Fórum Nacional Álcool e Saúde. A especialista refere à CNN Portugal que usualmente uma dependência alcoólica é diagnosticada em casos em que o consumo provoca sintomatologia ao “nível fisiológico, cognitivo e mental”, pessoas que têm um “desejo intenso de consumir, um descontrolo associado e a vontade de repetir este comportamento apesar dos danos que isto já lhes provocou". "O consumo, o álcool, torna-se o centro do mundo dessa pessoa."
Esta ideia é também corroborada pelo psiquiatra Luís Patrício, autor do blogue Mala de Prevenção. O também ex-diretor do Centro das Taipas - um dos antigos bastiões do "modelo português" do combate às dependências - lembra que há indicadores a que se deve estar atento, tal como também alerta a Organização Mundial da Saúde (OMS). Se sente incómodo ou sofrimento quando não bebe álcool e esse sentimento desaparece após um par de novos goles; se tem vindo a aumentar a quantidade e as vezes em que bebe; se está a perder o controlo dos consumos; se deseja reduzir ou parar de beber e não consegue; se preenche muito tempo do seu pensamento em torno do álcool, se se está a desleixar na sua vida, responsabilidades e continua a beber apesar dos estragos ou danos, físicos, psíquicos, familiares profissionais, sociais que sente e vive, então deve continuar a ler este artigo. Deve fazer o mesmo se sentir que alguém na sua vida aparenta estes sinais. E mesmo que não esteja nem conheça alguém nesta situação, continue: informe-se porque é conhecimento que convém ter.
Luís Patrício explica que o primeiro passo será sempre "entender em cada consumidor, no seu contexto individual, familiar e cultural, qual é o consumo habitual perante cada situação". O psiquiatra defende que "havendo mais do que três destes critérios num paciente" será benéfico "avaliar a dependência", alertando que o alcoolismo ou dependência alcoólica é uma doença que se instala lentamente, revelando-se apenas em "sinais e sintomas que surgem quando o consumidor suspende o consumo e, por isso, entra em abstinência aguda".
"No abusador de álcool só há uma doença que se escolhe - e que é desejada voluntariamente: é a intoxicação aguda ou bebedeira, que se acaba por pagar com a ressaca. Todas as outras doenças, dezenas delas, não são desejadas mas podem surgir, de entre as quais a dependência, a impotência, a demência. Todas são expressão de agressão e violência para a saúde do consumidor e não só", lembra Luís Patrício.
Ana Catarina Nunes, que é também membro da Ordem dos Psicólogos, lembra que estamos perante "uma substância lícita, de venda livre, e que é um problema na medida em que, de todas as substâncias, é das que têm maiores índices de iliteracia na população" e para a qual, nos casos de dependência, "as respostas são insuficientes", acrescentando que o tratamento de problemas relacionados com o álcool "tem sido das áreas mais esquecidas em Portugal".
"Grande parte das pessoas não tem literacia apesar de ser uma das substâncias mais presentes e aceites pela sociedade. Faz parte de rituais quase de passagem: bebemos em festas, bebemos em jantares, bebemos no café, bebemos quando vamos sair à noite… Se calhar, não há uma perceção do risco real", aponta a especialista da Ordem dos Psicólogos.
Os quatro tipos de consumo de álcool
A OMS, a Ordem dos Psicólogos e a Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF) distinguem os consumos de bebidas alcoólica em quatro tipos: abstinência ou de baixo risco, de risco, nocivo e dependência. A APMGF apresenta um conjunto de definições genéricas para cada um destes padrões:
Consumo de baixo risco: até duas unidades de bebida* por dia para os homens e uma unidade de bebida por dia para as mulheres, sem beber pelo menos dois dias por semana, quer seja homem ou mulher;
Consumo de risco: corresponde ao consumo ocasional de risco ou esporádico excessivo e diz respeito ao consumo ocasional de mais de cinco unidades (supera 50g de etanol) de qualquer bebida no homem numa única ocasião e quatro unidades na mulher (40g de álcool) numa única ocasião três ou mais vezes no último mês. Este é um padrão que pode vir a implicar dano físico ou mental se este persistir. É um padrão de consumo de muita importância em saúde pública apesar da ausência de alguma perturbação evidente no utilizador. A intervenção no caso das pessoas cujo consumo é de risco pode prevenir o aparecimento de problemas;
Consumo nocivo: define-se como um padrão que causa danos à saúde - quer física quer mental; todavia este transtorno não satisfaz os critérios de dependência;
Dependência: um padrão de consumos constituído por um conjunto de fenómenos fisiológicos, cognitivos e comportamentais que podem desenvolver-se após repetido uso de álcool. Inclui um desejo intenso de consumir bebidas alcoólicas, descontrolo sobre o seu uso, continuação dos consumos independentemente das consequências, uma alta prioridade dada aos consumos em detrimento de outras actividades e obrigações, aumento da tolerância ao álcool e sintomas de privação quando o consumo é descontinuado. O tipo de intervenção dos médicos de família na dependência inclui a identificação do problema e a discussão com o consumidor das vantagens de poder ser orientado para um especialista na área da alcoologia.
*Considera-se unidade de bebida padrão o que na restauração se consome numa taça de vinho, ou uma cerveja, e em meia dose de bebida destilada - como whisky, gin, brandy, etc...
Tremores, vontade de consumir e o gole milagroso: eis a abstinência
Os períodos de abstinência podem ser complicados de suportar. Ana Catarina Nunes lembra que é frequente os pacientes "experienciarem tremores físicos, uma vontade incessante de consumir e, depois de beberem, deixam de ter todas estas questões em minutos”.
A psicóloga explica que abstinência para um dependente alcoólico, quando comparada com outras drogas, apresenta "características um pouco diferentes mas há traços partilhados como os tremores físicos ou a necessidade de consumir", referindo ainda que também "o aumento de tolerância é semelhante", algo que pode pode apresentar um risco sério e imediato para a saúde deste tipo de consumidores.
"Estas pessoas vão gradualmente aguentando cada vez mais álcool, o que pode ser um problema também em casos de recaídas após tratamentos ou longos períodos de abstinência porque há a tendência de consumir as mesmas quantidades. Na cocaína, por exemplo, muitas vezes as overdoses aconteciam depois dos tratamentos", diz Ana Catarina Nunes.
Para o psiquiatra Luís Patrício, a abstinência envolve "períodos difíceis de suportar", até porque vivemos "numa sociedade de brutal estímulo e sedução para o consumo abusivo de álcool, dentro de casa e no contexto social, laboral ou festivo". O psiquiatra vai mais longe e realça que em determinados contextos estes períodos de não consumo podem ser mais difíceis para alguém que sofra de alcoolismo do que para uma pessoa viciada em qualquer outra droga, muito por culpa da facilidade de compra e aceitação social.
"O álcool que existe nas bebidas é um químico muito aditivo e agressivo, muitíssimo disponível e muito bem aceite socialmente, o que piora a situação", refere Luís Patrício.
Questionário CAGE e AUDIT, uma ferramenta de triagem da Organização Mundial da Saúde
Já sentiu que deveria diminuir ou parar o seu consumo de álcool? Já se sentiu chateado por alguém criticar o seu modo de beber? Já se sentiu culpado por causa da forma como costuma beber? Já teve de beber assim que se levantou ou logo pela manhã para diminuir o nervosismo ou a ressaca? As perguntas que acabou de ler são a versão mais crua do questionário CAGE de Mayfield. Criado na década de 70, continua a ser uma das ferramentas de triagem utilizadas para identificar problemas relacionados com o consumo de bebidas alcoólicas. De acordo com a conjetura deste teste rápido, quem contabilizar duas ou mais respostas positivas tem alguma probabilidade de ter um abuso ou dependência, mas nem tudo é assim tão simples porque, apesar de ser um método utilizado clinicamente, carece sempre de uma interpretação médica e deve ser acompanhado por outros despistes metodológicos.
A OMS alerta que o consumo de álcool está ligado a três milhões de mortes anuais em todo o mundo, que o consumo nocivo “é responsável por 5,1% de todas as doenças a nível global” e que esta substância “é o principal fator de risco para mortalidade prematura e incapacidade entre os 15 e 49 anos, sendo responsável por 10% de todas as mortes nessa faixa etária”.
Há muito, que a OMS vê no álcool um inimigo da saúde pública em todo o planeta e em 1981 criou uma ferramenta de triagem que permite um melhor entendimento dos tipos de consumo já referidos. Chama-se Teste de Identificação de Transtornos por Uso de Álcool, mas usualmente é referido como AUDIT, sendo composto por 10 perguntas, cada uma delas com cinco respostas possíveis e às quais são atribuídas pontuações que variam entre os 0 e 4 pontos. No final, o somatório deverá ser o espelho do tipo de consumo que cada pessoa tem. De lembrar que esta é meramente uma ferramenta de triagem e não de diagnóstico, que conta com a sinceridade do inquirido e que estará sempre suscetível de uma avaliação médica.
“AUDIT é um questionário de referência. Per si, não é um diagnóstico, mas funciona muito bem enquanto ferramenta de triagem. Se as pessoas forem sinceras nas respostas que dão, permite distinguir um consumo de baixo risco, nocivo ou uma dependência. Contudo, precisa sempre de ser a acompanhado de uma avaliação médica”, realça a psicóloga clínica Ana Catarina Nunes.
Resultado AUDIT | Nível de Risco | Problema | Intervenção Aconselhada |
---|---|---|---|
0 a 7 pontos | Baixo | Abstinência ou consumo de baixo risco | Informação e educação |
8 a 15 pontos | Baixo / moderado | Consumo de risco | Orientação |
16 a 19 pontos | Moderado | Consumo nocivo | Orientação, intervenção breve e monitorização |
20 a 24 pontos | Alto | Provável dependência | Encaminhamento para cuidados de saúde especializados |
É ainda possível alguém estar no limbo entre o consumo abusivo e a dependência alcoólica. A psicóloga Ana Catarina Nunes explica que já acompanhou casos de "pessoas altamente diferenciadas que conseguiram manter a maioria das funcionalidades do dia a dia", no entanto, em regra geral "é possível identificar algumas alterações comportamentais". Perceber que existe um problema torna-se também uma tarefa árdua quando existe "um consumo isolado", ou seja, pessoas que optam por beber quando estão sozinhas e "aí não é tão percetível”, evidencia a psicóloga.
O psiquiatra Luís Patrício também reconhece estes casos em que os "consumidores abusadores não cumprem ainda com critérios de dependência". O especialista considera que "não é correto dizer que estas pessoas estão dependentes", mas esclarece que estão numa "situação de risco manifesto e à mercê de muitas doenças provocadas pelo álcool no corpo e na mente, incluindo naturalmente a dependência".
Tratamento e como encontrar ajuda
Apesar de Portugal estar à frente da média europeia neste tipo de consumo, a rede de ajuda continua a apresentar lacunas, de acordo com os especialistas ouvidos pela CNN Portugal. Ainda assim, tanto Luís Patrício como Ana Catarina Nunes entendem que o primeiro passo deve ser expor o problema ao médico de família, que vai avaliar o caso e optar pelo melhor tipo de tratamento para cada paciente.
“A rede de referência começa no médico de família. Há também estruturas do Idt – Instituto da Droga e da Toxicodependência. O SICAD é a estrutura das adições em Portugal”, lembra Ana Catarina Nunes.
No entanto, o psiquiatra vinca que "a ajuda começa com o próprio a reconhecer que algo está a ficar fora de controlo". Tudo terá de começar no "reconhecimento da situação de desassossego ou sofrimento pelo próprio consumidor" e "sem estigmatizar nem culpabilizar". A família do paciente também pode ser muito útil em todo o processo se se apresentar como uma base de suporte e apoio para o dependente. O psiquiatra deixa apenas um alerta: "Evite ir imediatamente fazer um internamento através de anúncios publicitários sem uma prévia avaliação médica".
O internamente nem sempre será necessário ou proveitoso, lembra o ex-diretor do Centro das Taipas, realçando que este não é um processo instantâneo ou rápido: "Os tratamentos preparam-se como projetos a médio e longo prazo". "A manutenção do tratamento é fundamental e a frequência de grupos de autoajuda também é de imenso valor. A permanência em abstinência de consumo de bebidas com álcool é para a grande maioria a grande necessidade e o grande objetivo. O tratamento com avaliação regular ajuda muito, a medicação adequada também, bem como o apoio familiar. O tratamento dos outros sofrimentos que assola a pessoa em causa também é fundamental, sejam sofrimentos prévios ao abuso, associados ao abuso ou decorrentes do abuso", explica o psiquiatra Luís Patrício.
Uma das associações que possibilitam a participação em grupos de autoajuda, de forma anónima e gratuita, é a dos Alcoólicos Anónimos Portugal, que se definem como uma associação de doentes alcoólicos anónima e sem qualquer tipo de inscrição. As reuniões são presenciais ou através de suporte digital e "há de tudo e todos são bem acolhidos", como explicam à CNN Portugal os responsáveis pelo projeto, lembrando que esta "é uma doença que não escolhe idades, géneros nem profissões". Em regra geral, quem aparece para "desabafar" fá-lo por "pressão familiar, por causa do emprego, por conselho médico ou até porque se passou a sentir mal consigo próprio".
"As reuniões são fechadas ou abertas. Os participantes podem trazer elementos de suporte, como família, amigos ou colegas", explica a associação sem fins lucrativos.
"Quanto mais se aguenta maior é o risco"
Guerra, inflação e situações financeira frágeis devem continuar a ser uma realidade em 2023. Espera-se que o próximo ano acarrete um conjunto de complicações económicas e sociais e, para a psicóloga Ana Catarina Nunes, vai haver um maior número de pessoas a procurar escapes e o álcool é um deles.
“Sendo uma substância inibidora e anestesiante, acho que podemos ter aqui um aumento dos consumos face à crise que aí vem”, explica.
Luís Patrício destaca o que se verificou durante a pandemia de covid-19, quando, durante os confinamentos, foram "evidentes os aumentos do consumo e o consumo sem companhia". O psiquiatra lembra que muitas pessoas aumentaram bastante o consumo mesmo sem entrarem em estado de embriaguez - isto levou a que se "habituassem e aumentassem as tolerâncias", o que "é muito mau sinal, porque quanto mais se aguenta maior é risco", como explica o especialista.
Ana Catarina Nunes ressalva que essa tendência esperada de um maior consumo de álcool em 2023 não significa que o número de casos de dependências alcoólicas também aumente, "porque vai sempre depender de cada um”. Todavia, "é esperado um aumento do número de recaídas, tal como na pandemia", com quem já tinha obtido tratamento.
Conselhos, informações e respostas:
Se está a passar por algum tipo de consumo abusivo ou dependência alcoólica fale com o seu médico de família ou entre em contacto com alguns dos contactos disponibilizados no início deste artigo.
. Guia orientador da intervenção psicológica nos problemas ligados ao álcool - Leia aqui
. A importância do médico de família - Leia aqui
. Alertas da Organização Mundial da Saúde - Leia aqui
. Respostas do SNS para o alcoolismo - Leia aqui
. Sínopse Estatística do SICAD - Leia aqui
Deixamos-lhe ainda um conjunto de boas práticas disponibilizadas pelo psiquiatra Luís Patrício, originalmentae publicadas no blogue Mala da Prevenção:
- Tome a bebida com álcool devagar para ter tempo de saborear
- Beba uma bebida sem álcool entre cada duas com álcool
- Nunca beba em jejum
- Beba golos pequenos
- Não aceite rodadas
- Não beba para sossegar
- Não beba sob stress
- Não beba se está triste
- Não beba se está só
- Respeite os limites
- Abuso é o uso com dano