Depois de meses sem chuva, há muito combustível disponível para amplificar qualquer ignição. Mas "claro que não há coincidências — tem de haver mão criminosa, mão humana". O resto é má gestão, mau planeamento, má política
Os incêndios de setembro, e especialmente o de Albergaria-a-Velha, que lavra nas últimas horas, não são resultado de um “verão tardio”, não podem ser explicados meramente pela meteorologia, mas são, sim, resultado da falta de planeamento nas florestas nacionais. A garantia é deixada pelo climatologista Mário Marques, que acusa municípios e sucessivos governos de “destruirem, ou permitirem que se destruam, as florestas, os habitats autóctones”.
“Verão tardio? Nós já estamos no Outono meteorológico, que começa no dia 1 [de setembro]. A partir de dia 19 [quinta-feira] a temperatura vai descer, até com probabilidade de aguaceiros. O calor que temos hoje é normal, é o vento de leste — até se diz ‘o vento de leste não dá nada que preste’. Temperaturas de 31, 32 graus não são nada”, explica, lembrando que “nos incêndios [como este de Albergaria] não há coincidências”. “Ignições simultâneas. Por todo o lado. Às vezes a horas tardias, de madrugada. Claro que não há coincidências. Tem de haver mão criminosa, mão humana”, denuncia Mário Marques.
Sobretudo em zonas como Albergaria-a-Velha, “que é um matagal de eucaliptos”, havendo um incêndio o que não faltará é matéria para o alimentar e propagar, frisa o responsável.
O especialista vai assim mais longe do que a explicação mais imediata, que aponta para a existência de "muito combustível disponível" nos campos depois de vários meses sem chuva .
“Fala-se muito da vegetação, do que não é limpo, do que terá crescido nos últimos meses, mas o problema não é só a vegetação. O problema é que em Portugal já quase só existe monocultura. Hectares e hectares de eucaliptal. Portugal é o país europeu que mais deu cabo do habitat autóctone — os carvalhos, por exemplo, são um oásis”, denuncia. E estes oásis poderiam impedir incêndios de grandes dimensões. “Poderiam, sim. Um incêndio num eucaliptal pode atingir os 30 quilómetros por hora. A projeção de uma folha de eucalipto pode atingir dois quilómetros; a de um carvalho, 200 metros. Não é por acaso que eucalipto, em aborígene, significa ‘árvore de fogo’”, salienta.
Esta onda de calor "é habitual"
Pedro Miranda, professor de Meteorologia na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e especialista em alterações climáticas, alerta para que estes incêndios tidos como tardios “vão ser cada vez mais frequentes e intensos”.
“O clima é algo de longo prazo, enquanto a meteorologia resulta de processos de curto prazo. Esta onda de calor em Portugal, de tempo quente e seco, é habitual, e pode ser habitual nesta altura do ano, porque são ventos que chegam de Espanha — por isso é que se diz que de Espanha não chegam nem bons ventos nem bons casamentos. Ou seja, não é um resultado direto das alterações climáticas, mas as alterações climáticas tornarão este tipo de ondas de calor ainda mais comuns”, explica.
O especialista explica que o fenómeno não é português, “é global”, mas Portugal “está localizado nos subtrópicos e o fenómeno será mais intenso precisamente nos subtrópicos”.
“Está a fazer-se pouco no combate às alterações climáticas”
Questionado sobre o que se tem feito para mitigar e para nos adaptarmos às alterações climáticas e suas consequências, Pedro Miranda é taxativo: “Pouco. Na origem, pouco”.
“Nós sabemos que as alterações climáticas resultam essencialmente das emissões, da queima de combustíveis fósseis, também da desflorestação. E está-se a fazer pouco, os grandes atores mundiais — a Europa é uma exceção, mas também é um pequeno emissor — não têm interesse e, não tendo, as alterações climáticas amplificam-se, com especial incidências nos países menos ricos — de novo, como Portugal”, garante.
As previsões meteorológicas são, apesar de tudo, um aliado. “E conseguimos saber com alguma antecedência o grau de risco. Mas é uma atuação mais na resposta do que na adaptação [às alterações climáticas]”, lamenta Pedro Miranda.
O climatologista Mário Marques também considera que pouco se atua. E atira de chofre a responsáveis: ”Todos. Governos. Municípios. Todos. Em Portugal é ‘follow the money’ [à letra, "sigam o dinheiro"]. A indústria da celulose, os silvicultores, tem um peso enorme. Um plano de reflorestação em Portugal seria tão ou mais importante do que um plano de combate a incêndios. Mas o que há é para inglês. Desde 1986 os planos de ordenamento florestal foram alterados 30 vezes. Há demasiadas forças de bloqueio para que algo se faça”.
Mário Marques antecipa para Portugal “um cenário muito, muito mau” e não somente pelo aumento das temperaturas. “Se pensarmos na Europa e, por exemplo, na Grécia, onde há incêndios violentos, a situação é diferente da portuguesa. Na Grécia há incêndios violentos porque há calor. A Grécia bateu o seu recorde de tempo quente, com 21 dias seguidos com temperaturas acima de 38 graus. Em Portugal a realidade não é a mesma. Em Portugal a realidade é a da não proteção e a da destruição do nosso habitat e ecossistemas. As florestas portuguesas são cada vez menos e não têm um plano. Portanto, ou os decisores políticos mudam de mentalidade, ou teremos mais incêndios e as consequências serão imprevisíveis”, conclui.