Funcionárias da instituição de acolhimento admitem realizar procedimentos técnicos que serão exclusivos de enfermeiros e dizem que não as deixam recusar. Ordem está a investigar e admite poder existir "exercício não habilitado de atos próprios da enfermagem"
A Ordem dos Enfermeiros abriu um processo para investigar o que se passa na Associação Ajuda de Berço, por suspeitas de existirem funcionárias a realizar atos de enfermagem a crianças para os quais não têm qualquer habilitação e competência. A situação foi confirmada à CNN Portugal pela própria OE, que adiantou ainda que já pediu esclarecimentos à Ajuda de Berço – uma IPSS que é uma casa de acolhimento residencial.
A investigação iniciou-se depois de terem chegado à Ordem várias denúncias de funcionárias da Associação, sobre o que, alegadamente, ali se passa: ajudantes de ação educativa, sem qualquer competência a executar procedimentos exclusivos de enfermeiros, como “aspiração nasogástrica, manuseamento de aparelho de correção de glicemia, alimentação por PEG ou preparação e administração de medicamentos diários e temporários”. Isto em crianças, algumas com problemas de saúde complexos.
Sandra Anastácio, diretora da Ajuda de Berço, confirmou à CNN Portugal que são as funcionárias a fazer os procedimentos e que não tem nenhuma enfermeira "de serviço", mas defende que a situação não é irregular e acusa as trabalhadoras que fizeram as queixas de estarem a agir por outros motivos, nomeadamente a de quererem desviar a atenção de "processos disciplinares por alegados maus-tratos a crianças”.
O caso chegou ao conhecimento da OE por email, com as funcionárias da Ajuda de Berço a denunciar ainda que quando alguma se recusava a executar os tratamentos havia a possibilidade de “sanções”, fossem elas “processos disciplinares” ou “suspensões”.
Uma das funcionárias chegou a enviar dois emails a pedir ajuda à OE. O primeiro em julho de 2023, em que contou que se sentia pressionada para a realização dos procedimentos, e um segundo email em setembro do mesmo ano, no qual explicou que dentro da instituição as funcionárias desconheciam que as funções que executavam eram “da responsabilidade exclusiva de um enfermeiro”. No email relatou mesmo um episódio, em setembro de 2023, em que uma criança institucionalizada e com problemas de saúde “atingiu valores de glicemia na capilar no valor 500 e tal”. Uma das colegas terá tentado contactar “a enfermeira” e a diretora, mas nenhuma atendeu o telefone, acabando por ligar para o INEM. A menor acabou por ser “encaminhada para o hospital por uma questão de segurança”.
Devido a esta situação, pouco tempo depois – ainda no ano passado - todas as ajudantes foram convocadas para uma “formação de ambiente familiar para aprender a manusear os aparelhos de correção da glicemia e a tratar da criança em causa”.
Neste e noutros emails que chegaram à Ordem, e aos quais a CNN Portugal teve acesso, eram igualmente pedidos esclarecimentos sobre o que uma trabalhadora que não seja enfermeira pode ou não fazer. Em todas as respostas, a Ordem explicou que “a execução de tarefas sem a obrigatória e necessária formação é suscetível de fazer incorrer em responsabilidade civil e penal, todos os envolvidos”. Os esclarecimentos enviados pela OE às funcionárias da Ajuda de Berço foram assinados por Luís Filipe Barreira, atual Bastonário da Ordem dos Enfermeiros, mas que à época era vice-presidente do Conselho Diretivo.
Por outro lado, apesar da Ordem admitir que podem ser delegadas “algumas das tarefas enunciadas em ajudantes ou auxiliares”, sublinha que esta delegação é “da competência exclusiva do enfermeiro”, devendo “ocorrer sob a sua supervisão e responsabilidade e desde que a situação clínica da criança o permita e o profissional em que é delegada a execução da tarefa possua formação habilitante e demonstre correção na sua prática”. Ou seja, concluiu a OE, “sem que estas três condições estejam reunidas - supervisão, condição clínica e formação - não pode existir delegação de tarefas, sendo o enfermeiro responsável pela sua execução e implicações”.
Maria (nome fictício) trabalha na Ajuda de Berço há vários anos e à CNN Portugal confirma que as funcionárias realizam todos aqueles procedimentos. Também lhe foi pedido que o fizesse, mas recusou: “Não tenho formação para isso, nem fui a nenhuma formação”, diz, explicando: “A única enfermeira que conheço na instituição é a filha da diretora e ela raramente lá está". Segundo esta funcionária, “a instituição tem cerca de 40 crianças e os tratamentos das que têm mais problemas de saúde é garantido pelas funcionárias”. Neste momento, adianta, "deverão ser cerca de cinco crianças com cuidados especiais".
Quem não cumpria sofria "sanções"
Depois de receber os emails a Ordem abriu um processo e questionou a Ajuda de Berço pela mesma via, pedindo mais informação como, por exemplo, a quantidade de enfermeiros – e os números das suas cédulas – a trabalhar na instituição.
A primeira resposta da instituição não descansou a Ordem que voltou a pedir novos esclarecimentos. “O processo encontra-se aberto a aguardar resposta da instituição”, detalha à CNN Portugal fonte da Ordem dos Enfermeiros. “Se não houver resposta ou a resposta não for satisfatória, irá ser pedida uma visita às instalações. Este é o procedimento normal, nestas situações”, indica a mesma fonte, notando que só depois será tomada uma decisão sobre o que fazer perante as informações denunciadas.
Sandra Anastácio confirmou à CNN Portugal que foi contactada pela OE. "A Ordem pediu-nos esclarecimentos e nós demos aqueles que tínhamos que dar na altura. E eu remeto essas questões para a saúde, para os médicos e para os serviços de enfermagem que encaminham as crianças para a Ajuda de Berço e, em última instância, para a Segurança Social que nos pede que acolhemos as crianças. Nós somos uma casa de acolhimento residencial”, argumenta.
A responsável admite que tem algumas crianças com problemas de saúde, mas sublinha que "não precisam de estar internadas” e alega que “numa situação normal estariam com as suas famílias e não teriam enfermeiros a tomar conta delas”. “Quando as crianças estão doentes e estão em casa, são os pais e as mães que têm de fazer os procedimentos que são de enfermagem, não é?”, questiona, e garante que a Ajuda de Berço dá “formação aos seus colaboradores”.
Quanto aos emails que chegaram à Ordem dos Enfermeiros diz que as "colegas estão a levantar a questão porque têm processos disciplinares, graves, por maus-tratos às crianças, e estão a dar a volta à conversa".
"Não é a Ajuda de Berço que não quer contratar uma enfermeira"
Questionada se tinha alguma enfermeira na instituição, Sandra Anastácio esclarece que “não”. “Não há uma enfermeira de serviço, nem há uma pediatra de serviço. Há uma enfermeira e uma pediatra que são voluntárias na Ajuda de Berço” e que “sempre que é necessário”, dão apoio. “Quando as situações são graves recorro aos serviços de saúde. É assim que as casas de acolhimento funcionam”, garante.
A diretora acaba, depois, por apontar o dedo ao Estado: "Se quer que eu lhe diga que precisávamos de ter uma enfermeira de serviço na Ajuda de Berço? Precisávamos. Agora, era preciso o Estado português compartilhar isto. E no protocolo com a Segurança Social esta enfermeira não está contabilizada porque a Segurança Social entende que não é necessário. Se eu estou de acordo? Não, não estou de acordo."
Sandra Anastácio diz ainda que "não é a Ajuda de Berço que não quer contratar uma enfermeira" e recorda que vivem "de donativos". E até considera importante "reivindicar profissionais da área de enfermagem para as casas de acolhimento residencial, como a Ajuda de Berço".
Questionada sobre as crianças alimentadas por PEG que estão na instituição, Sandra Anastácio considera que não é necessário um profissional de saúde para o efeito: "Diga-me onde é que uma criança alimentada por PEG não pode estar numa casa de família? E digo-lhe, por experiência, que a criança não precisa de uma enfermeira para ser alimentada. Precisa de uma pessoa que, obviamente, tem de ter tido formação, de saber o que está a fazer. Como qualquer mãe neste país e esse também é o sentido de serviço e de missão destas instituições. Agora, só pode também trabalhar nestas instituições quem está disposto a abraçar este sentido de missão. Ninguém é obrigado a fazer este trabalho nas instituições."
A Ajuda de Berço é uma Instituição Particular de Solidariedade Social sem fins lucrativos, que foi fundada a 12 de março de 1998.