O advogado João Massano diz-se “perplexo” e Paulo Sá e Cunha, também advogado, afirma que o “valor não paga sequer olhar para um processo”. A solicitadora Carla Pina diz que dinheiro "não dá para autocarro". A bastonária da Ordem dos Advogados admite que o valor não é uma fortuna, mas que pode permitir avenças entre 150 e 1.500 euros e que já há cerca de mil advogados e 400 solicitadores inscritos
“Estou perplexo com os termos do protocolo”, afirmou à CNN Portugal, João Massano, advogado e presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, após saber o valor que a AIMA - Agência para a Integração Migrações e Asilo vai pagar: 7,50 euros por processo (mais IVA). Já o advogado Paulo Sá e Cunha garante que o “valor não paga sequer olhar para um processo. E, portanto, não percebe qual foi o critério”.
O protocolo entre as entidades para ajudar a AIMA a regularizar os cerca de 300 mil processos de imigrantes pendentes foi revelado segunda-feira pela Ordem dos Advogados e pela Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução e logo começou o burburinho nas redes sociais. A ideia do protocolo era ajudar a AIMA a resolver as cerca de 300 mil pendências que herdou, mas há quem tenha dúvidas que vá acontecer. Carla Pina é solicitadora e confessa que não vai "fazer este trabalho", porque o dinheiro "não dá para autocarro".
“Tenho visto comentários de colegas, e ninguém vai aderir àquilo, por aquele valor. Se ninguém vai aderir, pronto, aquilo fica sem efeito”, admite Paulo Sá e Cunha à CNN Portugal. E é este espaço que os advogados estão a usar para lamentar o valor. Referem mesmo a contradição de se estar a exigir o aumento das tabelas do Apoio Judiciário (e bem, acrescentam), que não são aumentadas há 20 anos e, depois, aceitarem este valor por cada processo instruído da AIMA.
Tal como o Paulo Sá e Cunha, também João Massano já se cruzou com as reações. “Acham vergonhoso andarmos aqui a lutar e a falar em remunerações dignas no Apoio Judiciário e depois faz-se um protocolo a aceitar 7,5 euros por um processo administrativo.”
“7,50 euros mais IVA. Mas abrange tudo o que seja despesas. Papel, impressões, o que for. Não há mais despesas para além disso”, explica João Massano. “Se tiver alguma dúvida, se precisar de fazer uma chamada para a AIMA, se tiver de fazer alguma deslocação para consultar algum documento original ou qualquer coisa. Há uma multiplicidade de coisas que podem acontecer na instrução”, acrescenta a mesma fonte.
O próprio protocolo é claro neste ponto:
Por cada processo devidamente instruído o prestador de serviços recebe a quantia de 7,50 € (sete euros e cinquenta cêntimos), acrescido do IVA à taxa legal em vigor, por processo (…)”.
Não deixando espaço a mais nenhuma despesa de forma clara:
Inclui todos os custos, encargos e despesas cuja responsabilidade não esteja expressamente atribuída à AIMA, nele se considerando incluídas, nomeadamente, todas as despesas de alojamento, alimentação e deslocação de meios humanos, aquisição, transporte, armazenamento e manutenção de meios materiais, bem como quaisquer encargos decorrentes da utilização de marcas registadas, patentes ou licenças.”
“Dignidade da profissão e qualidade do trabalho passa pela remuneração”
E perante o que leu, João Massano, também presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, confessa estar perplexo até porque “a dignidade passa pela remuneração, a dignidade da profissão e a qualidade do trabalho passa inevitavelmente pela remuneração”.
O tema é-lhe sensível porque a regularização de migrantes é um “é que um peso social, uma situação gravíssima, porque há pessoas em situação gravíssima que precisam de apoio jurídico”. Mas perante os valores em causa afirma mesmo que “é quase um trabalho pró-bono” e que não o chocaria não haver verbas envolvidas. “Era possível dizer ‘é de graça’. Vamos apoiar os migrantes, quem quiser aceita, quem não quiser não aceita”, conclui.
Paulo Sá e Cunha reforça que considera normal que as pessoas se estejam a queixar e a dizer que “7,50 euros com todas as despesas incluídas é um valor ridículo”. Admite não conhecer exatamente o trabalho envolvido, mas, na sua opinião, “7,50 euros por processo é patético e é uma coisa que não lembra ninguém.” O mesmo responsável diz que o processo está mal concebido e nesses termos “não vai ter préstimo nenhum”, até porque, “se ninguém vai aderir, fica sem efeito”.
O dinheiro "não dá para autocarro"
Carla Pina é solicitadora e tem escritório em Arruda dos Vinhos. Perante o valor em causa não tem dúvidas em afirmar que não vai "fazer este trabalho", porque o dinheiro "não dá para autocarro" para vir a Lisboa, à AIMA. Além disso, "nem a minha mulher a dias ganha isso", desabafa. Mesmo assim, acredita que "há quem vá aceitar". Ou porque são novos no ramo ou porque têm pouco trabalho.
Para esta solicitadora, o protocolo serve apenas para as ordens "cumprirem um programa em que diziam que iam arranjar mais trabalho" e lamenta que falem "em serviço administrativo" num processo que obriga a "muita responsabilidade". E exemplifica: "Imaginem que há documentação que não é verdadeira? Como é que sei?".
Na verdade, para Carla Pina a situação "é muito complexa" e está a ser tratada com demasiada "ligeireza". Não estamos a "retificar" um documento, "é validar". "E se ficar algum imigrante cá que não devia e a responsabilidade for minha?", questiona.
O protocolo divulgado segunda-feira, determina a abertura das candidaturas para todos os interessados. O prazo termina no final do mês.
Perante o risco de incompatibilidades levantado por alguns sindicatos, a AIMA determinou algumas regras como, por exemplo, os prestadores de serviços estão “impedidos de ter quaisquer interesses ou ligações com os processos em tratamento ou com os respetivos requerentes” de modo direto ou indireto, através de sociedades de advogados e colegas com quem partilhem escritório ou com quem “possam ter relações pessoais, familiares ou profissionais”.
Os acordos entre a AIMA e as duas Ordens data de março deste ano, mas só agora foi concretizado. A ideia sempre foi ajudar a AIMA a regularizar os cerca de 300 mil processos de imigrantes pendentes, aliviando, de alguma forma o trabalho burocrático da Agência e dando mais rapidez à resolução dos processos.
Só serão selecionados "350 advogados" e a escolha será "feita de forma aleatória"
Em declarações à CNN Portugal a bastonária da Ordem dos Advogados respondeu às críticas que ela própria também leu nas redes sociais. Em relação ao valor, Fernanda de Almeida Pinheiro, apesar de assumir "que não é uma fortuna", considera que todas as contas devem ser feitas e que os processos pendentes na AIMA podem equivaler a qualquer coisa como "três milhões de euros".
Lembrou depois que "aquilo que comporta este protocolo é a instrução dos processos de autorização de residência e de renovação da autorização de residência", ou seja, "não são processos judiciais". De alguma forma a função implica "verificar os documentos já recolhidos pela AIMA. Se estão todos conformes, se temos todos os documentos que são necessários para se proceder à emissão da autorização de residência ou para se proceder à renovação da autorização de residência com base na manifestação de interesses que foi feita pelo migrante". Depois "aquilo que acontece é que é feito um despacho sempre igual. Um despacho de deferimento para poderem emitir o documento". No caso de estar tudo em ordem.
O trabalho pode ser feito, explicou a bastonária, de forma remota, "com uma ligação VPN". Mesmo assim admite que "pode naturalmente implicar uma ou outra deslocação se for necessário fazer uma reunião presencial, que será uma coisa perfeitamente esporádica e pontual", garantindo ainda que "até a formação vai ser ministrada online".
Fernanda de Almeida Pinheiro garante que, segundo os cálculos da AIMA, "estas verificações podem levar, se a pessoa for excecionalmente cautelosa, qualquer coisa como 15 minutos". São quatro numa hora. Além disso, o número mínimo "dos processos são 20. E, portanto, na realidade, não estamos a falar de 7,5 euros. Estamos a falar de avenças mensais que podem variar entre os 150 e os 1.500 euros, conforme a decisão do prestador de serviços".
O trabalho poderá ser efetuado por "advogados, advogados estagiários e solicitadores" e quem não quer "não se inscreve", defende. Mas ressalva "que estas pessoas de quem estamos a falar, que são os senhores migrantes, não têm acesso à justiça, infelizmente". E para a bastonária isso é o melhor resumo deste protocolo.
Questionada pela CNN Portugal sobre já havia inscritos desde segunda-feira, Fernanda de Almeida Pinheiro assumiu que sim: "Por volta de mil advogados" e "400 solicitadores". Adiantou ainda que todos os advogados inscritos só serão selecionados "350 advogados" e que a escolha será "feita de forma aleatória". A bastonária fez questão de dizer ainda que o "protocolo" nada tem a ver com a revisão das tabelas do Apoio Judiciário.