Do teatro à dança, da ópera à música erudita e às outras músicas, espetáculos portugueses e outros além do nosso retângulo, para ver e para só escutar, está aí a nova temporada de espetáculos no CCB, que nos convida a entrar, fazer todos parte, inquietar. Levados pela mão de Aida Tavares
Chegou somente em dezembro, o tempo diz que é “ainda pouco” para tudo quanto deseja programar, criar, diferenciar, mas Aida Tavares, nova diretora para as Artes Performativas do Centro Cultural de Belém, faz uma avaliação positiva, “pelo desafio e pelo estímulo”, destes meses de trabalho no CCB, “um projeto único, uma escala única” — onde, afinal, está de regresso.
“Eu já tinha estado aqui quando se fez o Festival dos 100 Dias [por ocasião da Expo 98] e agora volto, mas é uma realidade diferente, é a realidade do dia-a-dia.” Aida Tavares é ainda um rosto, não só mas também, associado ao Teatro São Luiz, que dirigiu, e encontrou em Belém um lugar “diferente de tudo o que conhecia”. “Porque é um projeto que, além da sua dimensão, da escala, contém não apenas um centro de artes performativas, mas igualmente um museu. E vai obrigar-nos a olhar para todas as possibilidades e potencialidades que esta casa tem, e trabalhar num cruzamento, natural, entre artes performativas e visuais”, explica.
É também a primeira vez que o CCB tem direção artística, “pelo menos assim chamada”. E coube-o a uma mulher, Aida. Como mulheres são Núria Enguita, responsável pela direção artística do Museu de Arte Contemporânea, e Mariana Pestana, chief curator do Centro de Arquitetura. Além da presidente do Conselho de Administração, nomeada igualmente em 2023, Francisca Carneiro Fernandes. Uma casa de liderança feminina, “o que não é de somenos importância”, assegura Aida Tavares. “Isso deixa-me muito orgulhosa, é evidente. É importante que sejam mulheres. Quer dizer que algo está a mudar. Apesar de tudo, diretoras artísticas como eu vamos tendo algumas em Portugal, mas não há assim tantas mulheres administradoras e o trabalho da Francisca é público e reconhecido publicamente”, ressalva, referindo-se ao trabalho no Teatro Nacional de São João ou no Rivoli, “de onde traz um conhecimento profundíssimo da realidade cultural”.
Teatro nosso que estais na Europa
Do trabalho fecundo entre todas, apresenta-se esta semana a programação da temporada 2025/2025 do CCB, a primeira trabalhada de raiz por Aida. Dividida em muitas disciplinas, no teatro esta nova temporada abre com uma peça-filme de Christiane Jatahy, “Depois do Silêncio”, espetáculo baseado no romance “Torto Arado”, de Itamar Vieira Junior, e que nos lança um olhar contemporâneo sobre o nosso passado esclavagista, destacando o impacto deste passado nas realidades geopolíticas e na vida de milhões de pessoas. Outro destaque teatral será Tiago Rodrigues, diretor do Festival de Avignon, que trará ao CCB, no começo do próximo ano, “Hécuba, Não Hécuba”, na primeira colaboração do dramaturgo e encenador português com a Comédie-Française.
Às produções trazidas de fora, Aida Tavares quis reunir as companhias portuguesas, “porque se fazia aqui menos teatro do que o que eu acho que deve ser feito num espaço como este”. Os próximos meses prometem “objetos estéticos completamente diferentes, de escalas muito diferentes”: “Búfalos de Pau Miró”, dos Artistas Unidos, “RE: Antígona”, dos Teatro Praga, ou “As Aves”, comédia clássica de Aristófanes, numa co-produção da Mala Voadora e das Comédias do Minho.
“Diria que no CCB havia, de facto, um défice de teatro. E todos estes nomes representam diferentes possibilidades, diferentes escalas — se pensarmos no Teatro do Ferro [“Outra Vez Miau!”] e se pensarmos no Ricardo Pais [“Talvez Monsanto”] —, de gerações também diferentes — se pensarmos no Ricardo Pais e se pensarmos no Daniel Gorjão [“O Lago dos Cisnes”], Pedro Gil [“Enciclopédia da Vida Sexual”] ou Alice Azevedo [“Se não és lésbica, como é que te chamas?”] —, espetáculos deslocalizados até, porque as Comédias do Minho ficam em Paredes de Coura. Estas dimensões, esta riqueza, é fundamental na programação de uma instituição como esta”, garante.
Uma novidade que 2025 trará é a de se internacionalizarem as companhias e os espectáculos nacionais por diversas salas europeias. A equipa de Aida Tavares conseguiu que o CCB integrasse a rede Próspero — Extended Theatre.
“Um equipamento destes tem de ter uma componente muito forte no plano internacional. Tem uma escala de cidade, metropolitana até, mas tem de ter internacional. E quando eu digo isto, não digo que é meramente comprar espetáculos — porque isso é algo relativamente fácil, um trabalho de catálogo. Posso dizer aqui que o CCB terá, está tudo assinado, a Próspero em 2025, a partir de maio. Ganhámos a candidatura. Isto significa que não só vamos ter mais programação internacional, mas vamos ter 19 estruturas europeias a relacionar-se entre si, o que pressupõe também trocas, ou seja, a possibilidade de internacionalizar os nossos artistas, colocar os nossos artistas em redes. Isto é muito importante”, explica a diretora artística.
Tal como no teatro, a dança também procurará cruzar os grandes coreógrafos nacionais, de Olga Roriz a Paulo Ribeiro, de Victor Hugo Pontes a Vera Mantero, a companhias estrangeiras, como é o caso do Ballet Lorraine — cujo espetáculo “A Folia” é da autoria do português Marco da Silva Ferreira e irá explorar os conceitos de êxtase, euforia e rebelião, recuando ao século XV, aos rituais rurais de fertilidade e às festividades na corte.
“Não era tão habitual a dança aqui no CCB. O nosso Grande Auditório tem uma escala absolutamente extraordinária para apresentar peças de grande formato, nomeadamente em dança. O teatro é talvez mais difícil ali, mas a dança é claramente beneficiada. E gostava de continuar este trabalho, naturalmente com coreográficos portugueses — a Olga Roriz celebra os 33 anos da sua companhia connosco, com a reposição de uma peça [“A Hora em que Não Sabíamos Nada Uns dos Outros”, de 1992] — mas também olhando para fora e sabermos que há jovens como o Marco, que têm construído um trabalho de sucesso”, antecipa Aida Tavares.
Do regresso de Mahler à "pop" de Lang Lang
Já na chamada música erudita, a temporada vai ter já a 15 e 17 de setembro, na abertura, a Sinfonia n.º 8 de Gustav Mahler (que não é apresentada em Portugal há já duas décadas) tocada pela Orquestra Sinfónica Portuguesa, à qual se juntam o coro do Teatro Nacional de São Carlos, o coro sinfónico Lisboa Cantat e o coro infante-juvenil da Universidade de Lisboa. O concerto de Natal, em volta de Bach e Händel, pela Orquestra Sinfónica Portuguesa e o coro do Teatro Nacional de Carlos, e o converto de Ano Novo, com valsas, polcas, aberturas de opereta e marchas da família Strauss, a cargo da Orquestra Metropolitana de Lisboa, prometem atrair públicos que talvez noutros espaços culturais, noutros circuitos, “não sintam que fazem parte”.
“Nós percebermos que a relação das pessoas com um objeto artístico muitas vezes é condicionada pela relação com o próprio espaço arquitetónico. São espaços com muito potencial, muito interessantes, mas também é negativo às vezes, nomeadamente aqui o CCB, que é um edifício muralhado, uma espécie de forte, e as pessoas tendem a ter dificuldade em ‘entrar’. É um desafio enorme para mim, enquanto diretora artística, tentar conseguir que o público se aproprie do espaço, criar novos públicos.” Uma forma de trazer esses públicos novos é dar à erudição uma postura (não estética) pop. Como o fará Lang Lang, com o seu recital de piano.
…e a arte — sempre — como inquietação
Por sua vez, na ópera, é aguardado com expectativa o espetáculo “18 Months - Ópera Sobre (Corpos) Refugiados”, de Dimitris Andrikopulos, que explora a sensação de vazio, de impotência, de refugiados, e acompanha a realidade de quem vive numa fuga imposta. Através de relatos de sobreviventes, mostram-se corpos que fogem à morte quase certa e a resiliência de quem luta para sobreviver. É a 10 de abril, no Pequeno Auditório. Um espectáculo de cariz necessariamente político, como muita arte é e pode ser.
“A arte tem esse papel [político]. O espetáculo de abertura da temporada [no teatro: “Depois do Silêncio”, de Christiane Jatahy] também aborda a escravatura, as questões da escravatura, que consideramos que é um capítulo deplorável da história, mas, na verdade, passados estes anos todos, ele tem ainda o seu impacto nas realidades políticas, sociais. E, portanto, queremos trazer também esta dimensão [política] para os espetáculos, é uma preocupação, é subjacente à própria arte poder ser inquieta, fazer-nos pensar nos contextos que vivemos, isso é mesmo fundamental”, garante a diretora artística.
Em Outras Música, ou músicas do mundo — que podem ser também de um mundo em português —, Selma Uamusse responde à chamada do projeto “Carta Branca” e apresenta-se ao lado da Orquestra Geração para celebrar ainda os cinquenta do 25 de Abril e também os movimentos de libertação na África colonial portuguesa.
“A ‘Carta Branca’ é um projeto já antigo do CCB, que, como o nome diz, convida um artista a apresentar uma obra à sua escolha, ou várias obras. E o trabalho da Selma traz uma dimensão social. Mas ainda nas Outras Músicas, é interessante que o espectáculo da Filipe Sambado e do Luca Argel nasceu aqui, no Festival Felicidade — que foi de certa forma o primeiro momento de programação que eu tive, em 2023. Houve um primeiro encontro de trabalho e, logo após esse concerto, estivemos à conversa e eu percebi que era muito interessante eles continuarem a desenvolver este trabalho. E agora, então, vão apresentar este trabalho. Também é destas relações que nascem ideias. E é o nosso papel enquanto instituição”, destaca Aida Tavares, ressalvando, no caso da “Carta Branca”, que o que se faz bem não pode nem deve ser alterado.
"Não tenho nada a perspectiva de que tenho de romper com tudo. Não tenho de romper com nada. É importante trabalhar com quem já está nos projetos, com quem os conheces, e depois poder ir um bocadinho mais para a direita, um bocadinho mais para a esquerda, haver novas ideias, mas nunca chegar e fazer mudanças radicais, parecer que não acredito em nada, quando o que se fez é importante e está bem feito.”
Ainda sobre continuidade, a programação do Centro Cultural de Belém não é só, nem nunca foi, voltada aos adultos. “A nossa Fábrica das Artes é um centro fundamental para criação de públicos novos e para artistas que trabalham para estes segmentos de programação. E quero muito que cresça, do ponto de vista da programação, do ponto de vista da intenção. E sei que é um trabalho difícil, mas fundamental, sobretudo entre jovens — que é um segmento mais complexo, porque deixou de vir com os pais mas ainda não vêm sozinhos. E não podem deixar de vir.”
Entre diversos projetos da Fábrica das Artes, destaque a “Historiadores”, do Teatro do Vestido, em novembro, um espetáculo para confrontar o desinteresse crescente pela História, mas que também refletirá e questionará, por exemplo, o retrato político nos manuais escolares. No fundo, é uma reflexão, poética mas também documental, não sobre o nosso passado, mas sobre o que o futuro, incerto, poderá ser.
Se não olhas, pára e escuta
Mas nem toda a nova programação é para se ver, pode ouvir-se também. Como é o caso do ciclo de conferências “Sobre Sentimentos”, de António Castro Caeiro, que se vai estender de outubro a julho, ou a homenagem a Jorge Silva Melo, fundador dos Artistas Unidos, falecido em 2022, com Miguel Lobo Antunes. Estarão disponíveis em formato podcast. “As pessoas vêm, e vamos encher as salas certamente, mas quem não pode vir, vai ter a possibilidade de escutar o que lá aconteceu. Achámos isso importante.”
Feito de raiz para escutar é o podcast “As Horas”, da radialista e escritora Inês Maria Meneses, que aos convidados culturais e criadores colocará quatro perguntas pouco habituais sobre o tempo da criação. Qual foi a hora certa para determinado artista ou personalidade definir a sua carreira, o seu modo de vida, as suas escolhas? Como é que o tempo se reflete no seu trabalho? Como é que este tempo se traduz no que faz? Como vive as horas do seu dia? A noção do tempo foi-se alterando? “[Haverá mais podcasts?] O podcast da Inês é um podcast que vai atravessar a temporada toda e tenho a certeza do sucesso que vai ser, pela capacidade e criatividade dela. Ainda é muito pouco tempo para tudo o que eu objetivamente quero fazer e sonho fazer na questão dos podcasts”, explica Aida Tavares.
Chegou em dezembro, o governo mudaria de cores em abril, mas isso não inquieta o trabalho da diretora artística. “Esta nomeação é uma nomeação por quatro anos. E, portanto, teoricamente, as mudanças de governos não pressupõem que as pessoas tenham de sair todas dos sítios. Aquilo que eu sei é que eu cheguei em dezembro para fazer este trabalho e será normal se esse trabalho for avaliado, mas não me tira o sono.”
Aliás, diz que acorda “diariamente com vontade de trabalhar”. “Apetece-me sempre vir para aqui e vir para esta construção conjunta, com equipa, com artistas, com público. Acredito nisto diariamente. Nunca imaginei, sinceramente, e depois de tantos anos de São Luiz, que noutro lugar me sentisse assim tão feliz como hoje me sinto. A motivação? Construir relações. Conhecer a estrutura, conhecer as equipas, porque eu trabalho com pessoas. Só será possível conseguir projetos, este projeto, com toda a gente do lado, a ouvir. Se assim for, é mais interessante, mais enriquecedor, e é mais difícil também que não dê certo.”