O lugar do mundo onde se fabricam mais carros está a dar cartas na transição ambiental. Saiba como

12 nov 2022, 12:00

Enquanto o mundo discute, na COP 27, como reduzir as emissões de CO2 e o consumo de energia, a província mais exportadora do Japão envolveu indústria, famílias, academia e governo para alcançar esse objetivos

Aichi é a região mais industrializada do Japão, e há 43 anos que detém o título de província mais exportadora do país. Não é coisa pouca, tratando-se da terceira maior economia global, e uma das potências exportadoras mundiais. Uma das razões deste sucesso perene é a indústria automóvel: em nenhuma região do mundo se produzem tantos automóveis como nesta prefeitura japonesa, situada mais ou menos no centro do país, com uma população de 7,5 milhões de habitantes. 

Fica em Aichi a Toyota City, a 40 quilómetros de Nagoya, a capital da província, que é a quarta mais populosa do Japão. Como o nome indica, Toyota City é uma cidade que cresceu em torno da sede e das principais fábricas da Toyota Motor Corporation, um dos maiores fabricantes de automóveis em todo o mundo, uma das maiores marcas do planeta, e a mais importante corporação nipónica em receita e em capitalização. 

O peso do fabricante automóvel na cidade é tal que justificou a mudança de nome, nos anos 50 - a cidade já existia antes, mas foi com a instalação da Toyota que conheceu um enorme crescimento. E esse é apenas o polo mais notório do cluster automóvel desta prefeitura, que inclui milhares de empresas que fabricam partes e componentes para a indústria automóvel.

Mas Aichi concentra fabricantes de muito mais do que automóveis. 

Depois dos veículos, as principais indústrias de Aichi são, por esta ordem, produtos de aço e plástico, maquinaria elétrica de uso geral, cerâmica, têxtil, produtos de borracha, máquinas comerciais e produtos de metal. 

A agricultura é outra grande atividade económica de Aichi - viajando pela prefeitura, fica a impressão de que onde não há fábricas, há campos lavrados: repolhos, perilla (uma espécie de menta muito usada na culinária japonesa), figos, flores de todo o tipo, avicultura e bivalves (Aichi tem costa) são algumas das produções famosas da região.

O sucesso económico e o primeiro lugar no ranking de exportações tem um reverso: há anos que a emissão de gases poluentes e com efeito de estufa em Aichi é a mais alta do Japão. Foram 75,7 milhões de toneladas de CO2 em 2019, o equivalente a 6% de todas as emissões produzidas no país. Se o ranking for feito de acordo com o PIB per capita, a riqueza produzida na região dilui relativamente o impacto das emissões, caindo para 35.º lugar entre as 47 prefeituras (regiões administrativas) do Japão.

O setor industrial é, sem surpresa, o principal responsável por estes níveis de poluição: representa 50%, bem acima do peso da indústria nas emissões de carbono nas outras províncias.

Construir currículo contra o cadastro

Contra este cadastro ambiental, Aichi fez questão de apresentar currículo. É a província cujo governo mais tem trabalhado, e há mais tempo, para diminuir o impacto negativo do sucesso económico, tendo planos para a redução de consumo de energia e para a diminuição das emissões de CO2 desde 1994, antes de todas as outras regiões do Japão. 

A redução de consumo energético é premente, num país pobre em recursos naturais, sem combustíveis fósseis, e que durante décadas apostou sobretudo na energia nuclear, cuja reputação e fiabilidade foi abalada pelo incidente de Fukushima em 2011. O aumento global do preço dos combustíveis, de que o Japão é um dos grandes importadores globais, tornou ainda mais urgente a necessidade de baixar os consumos.

A ideia é atuar em todas as frentes: indústria, famílias, transportes - todos têm de reduzir consumos e emissões de CO2, com o governo e a academia a apoiar soluções inovadoras e a estimular mudanças de comportamentos.

Os efeitos estão à vista: apesar de continuar a ser a província mais poluidora do Japão, há mais de uma década que Aichi vê os níveis de emissões de CO2 cair consistentemente. No período entre 2013 e 2019, por exemplo, a redução foi de 8,1%. Até 2030, o plano aponta para uma redução de emissões na casa dos 20 pontos percentuais.

Abordagem de 360º

O Plano de Prevenção do Aquecimento Global de Aichi, posto em prática em 2018, visa reduzir as emissões totais de gases com efeito estufa em 26%, comparando 2013 com 2030. Mas o atual executivo da província decidiu acelerar o caminho para a neutralidade carbónica, revendo em alta as metas de redução de emissões e definindo metas mais ambiciosas para a introdução de energias renováveis (sobretudo solar e eólica), em relação às quais o Japão começou tarde e tem ainda muito caminho a percorrer.

“Para se conseguir a neutralidade carbónica, todas as partes interessadas precisam de estar alinhadas com o mesmo objetivo. Como o maior emissor de CO2 é a indústria, em primeiro lugar a indústria precisa de consumir menos energia e diminuir a emissão de CO2”, explicou à CNN Portugal o governador de Aichi, Hideaki Ohmura. “As famílias podem colaborar implementando o sistema ‘Zero Emission House’”, um programa amplo lançado pelo governo, que tanto apoia a instalação de painéis solares de uso doméstico como a recolha de desperdícios de cozinha para compostagem em centrais de biomassa, onde esse lixo é transformado em energia não poluente. Também a compra de automóveis elétricos, híbridos e de veículos de célula de combustível é apoiada pelo executivo provincial. Em resultado destes programas, Aichi é a região do país onde mais casas têm painéis solares e onde é mais alta a produção de energia elétrica a partir destas unidades. E, sim, é também a região nipónica com o mais alto valor combinado de veículos elétricos, híbridos ou de fuel-cell. 

“O setor do transporte também deve colaborar reduzindo a emissão de CO2”, acrescenta o governador, referindo a modernização da frota de autocarros, com energias não poluentes, e o reforço do serviço ferroviário que, em geral, é irrepreensível por todo o Japão. 

E qual o papel do Estado? “O Governo e a Academia devem colaborar, incentivando o desenvolvimento de novas tecnologias e a adoção de práticas mais sustentáveis. Ou seja, eu acredito que é necessário o envolvimento e a colaboração de todos os setores da sociedade para a realização do objetivo da neutralidade carbónica”, conclui Hideaki Ohmura, que gosta de falar da sua política de descarbonização como uma política “holística”, com “uma abordagem de 360º”. 

A ETAR que é centro de biomassa onde nada se perde

São muitos os exemplos de técnicas, equipamentos e políticas inovadoras que foram implementadas ou estão a ser testadas em empresas da região, e que a CNN Portugal visitou, numa viagem organizada pelo Foreign Press Centre Japan.

Numa estação de tratamento de águas em Toyohashi, os resíduos dos esgotos da cidade são separados da água e transformados em biomassa. A lama que resulta desse processo produz energia. Ao lado, noutro local do centro de biomassa, 80% dos resíduos de cozinha produzidos na cidade são fermentados para fazer metano, um gás que liberta energia. Os cidadãos de Toyohashi são incentivados a separar os desperdícios de cozinha (ou seja, sobretudo restos de comida) do restante lixo doméstico - e esses resíduos são recolhidos separadamente pelos serviços da câmara duas vezes por semana.

No fim, tudo o que sobra é carbonizado: os restos de cozinha fermentados e o que sobra da lama dos esgotos são transformados em carvão… que produz energia. Nada se perde, tudo se transforma.

Uma estufa de nova geração 

Ainda na cidade de Toyohashia, a estufa Inochioi é uma estrutura de nova geração dedicada à produção de tomate-cereja. Fica ao lado de outra ETAR, e é de propósito. A água da estação de tratamento é canalizada para a estufa, e usada para a rega. Mas a mesma água também circula em tubagens por toda a estufa, para manter a temperatura. A água sai da ETAR a 19º, o que significa que baixa a temperatura da estufa no verão, quando o clima é extremamente húmido e sufocante, e aquece no inverno, quando o ar é seco e gelado. Com este sistema, apenas graças à circulação de água, a produção cresceu, pois mantém-se estável o ano todo, sem ter de parar nos meses mais quentes, como era habitual.

Mas há mais vantagens: a fatura de combustível diminuiu 46%, e as emissões de CO2 caíram para metade. Entretanto, a energia necessária para o funcionamento da estufa vem de painéis solares.

Cada estufa tem cerca de 3,6 hectares, e o conhecimento já testado nesta está a ser aplicado a outras, para produção de outros produtos. O governo garante que o objetivo é tornar estes sistemas acessíveis aos produtores agrícolas locais que possam beneficiar da proximidade de estações de tratamento de águas. E o mesmo modelo está a ser adaptado para outro tipo de circunstâncias, como a reutilização de água libertada por centrais termoelétricas.

Capturar CO2 e transformá-lo em energia

A Denso é o segundo maior fabricante global de componentes para a indústria automóvel. Tem unidades de produção em 35 países, incluindo em Portugal. E tem colaborado com o governo japonês e as autoridades de Aichi no desenvolvimento de novas tecnologias amigas do ambiente, que reduzem a pegada ecológica da indústria automóvel.

Nas enormes instalações que tem em Anjo City, há um pequeno pavilhão, em forma de paralelepípedo, com um mural pintado numa das paredes, e uma grande inscrição em azul e verde: “CO2 neutral”.

Este pavilhão é uma unidade de circulação de CO2. Aqui é capturado dióxido de carbono emitido na fábrica, que fica a poucos metros de distância. O CO2 é levado para o pavilhão de circulação, onde é combinado com hidrogénio. Desse mix, resulta metano. Esse metano produz energia, que é levada de volta para a fábrica.

A captura e reutilização de CO2 é um dos três pilares do trabalho feito pela Denso com o objetivo de alcançar a neutralidade carbónica das suas unidades até 2035. Os outros dois pilares são a redução de emissões nas unidades fabris, e o desenvolvimento da eletrificação dos automóveis, para reduzir tanto quanto possível a libertação de gases com efeito de estufa.

Medir consumos e emissões em tempo real

Também no cluster automóvel, a Asahi Tekko é um fabricante de peças que fornece exclusivamente a Toyota com componentes para motores e sistema de transmissão. Não é um gigante, como a Denso, não tem um nome com fama e declinações em dezenas de países, e algumas das suas áreas de fabrico parecem tem parado no tempo, com maquinaria que deve pouco aos últimos desenvolvimentos do setor. Mas em todas as suas linhas de produção, pelo meio de máquinas de ar antiquado para fabrico de porcas ou parafusos ou amortecedores, há computadores e ecrãs de plasma, nos quais por vezes dispara um alerta vermelho. É o aviso de que, por alguma razão, o consumo de energia naquela linha é superior ao necessário.

A Asahi Tekko desenvolveu um software que calcula automaticamente, de dez em dez minutos, a quantidade de eletricidade e/ou gás consumida em cada linha de produção. Estas são as fontes de energia responsáveis por 95% das emissões de CO2 na fábrica.

O cálculo da energia consumida é acompanhado da estimativa de emissões libertadas por cada linha de produção - e, também, da energia gasta sem necessidade, e das emissões que podem ser reduzidas.

Num ano, desde que implementou este sistema, a Asahi Tekko diz ter reduzido em 6% o consumo de energia. Mas Tetsuya Kimura, CEO da empresa, garante que é possível aumentar essa poupança até mais 10 pontos percentuais. Entretanto, a velha fábrica de peças para motores passou a vender o software que desenvolveu e a dar consultoria sobre eficácia energética e redução de emissões.

Amónia em substituição de carvão

A Central Termoelétrica de Hekinan é uma das maiores do Japão e garante boa parte da energia consumida nesta parte de Aichi. É uma central a carvão, daquelas que já não existem em Portugal. As grandes montanhas de carvão lá estão, perto da zona onde este é descarregado de grandes navios, que chegam sobretudo da Austrália. 

A dependência energética do Japão é enorme, e continuará a ser enquanto o país não voltar a ligar à rede cerca de trinta reatores nucleares que estão a ser revistos e modernizados, depois do enorme susto de Fukushima. Até lá, o Japão não dispensará o carvão na produção de energia. Mas na central de Hekinan está a ser feita uma experiência piloto com amónia. 

Este gás não emite CO2 quando é queimado, e para já a experiência passa por introduzir 20% de amónia, em substituição de carvão, na produção de eletricidade. Os testes feitos ao longo do último ano foram bem sucedidos.

“A coincineração de amónia pode fazer-se com o equipamento que já existe nas centrais termoelétricas. Isto significa que a transição para amónia pode ser feita com baixo custo, e com rapidez, mantendo a capacidade de produção, enquanto reduzimos as emissões”, explica Katsuya Tanigawa, diretor-geral da Central Termoelétrica.

Tanigawa nota as diversas variáveis que têm de entrar em jogo: não se trata apenas de conseguir experiências bem sucedidas de substituição de uma parte de carvão por amónia - é preciso fazê-lo com adaptações mínimas dos equipamentos existentes, para aproveitar a capacidade instalada, controlar os custos de transição, para não encarecer o produto, e fazê-la com rapidez, sem perturbar a produção que sai da central para os consumidores finais.

Para já, a experiência com 20% de amónia foi um sucesso, e um dos reatores da central vai adotar esse mix no ano que vem. Entretanto, as experiências vão continuar, com quantidades cada vez maiores de amónia, reduzindo a quantidade de carvão utilizada. 

Este é o maior teste do mundo de introdução de amónia no mix energético de uma grande central termoelétrica, e o Japão orgulha-se de ser o país líder mundial neste tipo de experiência. O objetivo final é que a central só produza energia a partir de amónia. Mas isso, na melhor das hipóteses, será na década de 2040, estima o diretor da central.

“Não há alternativa à neutralidade carbónica”

Boa parte destas experiências têm ainda muito caminho a percorrer. São processos caros, não são competitivos sem subsídios públicos, e a tecnologia ainda não permite a sua aplicação em grande escala. Há muitas incertezas sobre custos quando estes mecanismos puderem ser generalizados: quão mais cara será a amónia, ou o hidrogénio, em relação ao carvão, ao petróleo ou ao gás natural? A procura global destas novas energias que impacto terá no seu preço? Quem cobrirá a diferença de custo? O Estado ou os consumidores? No fundo, as mesmas questões que se colocam hoje em relação a energias renováveis, nas quais Portugal está bastante à frente do Japão.

Mas a abordagem 360º de Aichi parece estar a dar resultados. E envolve toda a sociedade num esforço partilhado. “O objetivo de garantir o acesso à energia e também assegurar a neutralidade carbónica é de todos. Famílias, indústrias, agricultura, transportes, todos os setores da sociedade utilizam energia elétrica. Nós, humanos, precisamos de energia elétrica para o nosso modo de vida. E precisamos de um planeta sustentável. Por isso, todos os setores devem fazer esforços contínuos para economizar energia e reduzir as emissões de gazes com efeito de estufa. Não há alternativa à neutralidade carbónica”, diz Hideaki Ohmura.

Lá fora, na residência onde o governador de Aichi recebe os seus convidados, há um jardim verdejante, na melhor tradição dos jardins japoneses clássicos. Ouvem-se os pássaros e o vento nas árvores. Nem parece que estamos no centro de Nagoya, uma cidade com 2,2 milhões de habitantes. 

Esta é a cidade onde abriu portas, no início deste mês, o parque temático dos estúdios Ghibli, os mais famosos estúdios de animação do Japão. Foi desses estúdios que saíram as obras-primas do realizador Hayao Miyazaki, como “A Viagem de Chihiro”, “A Princesa Mononoke”, “Totoro” ou “Ponyo à Beira Mar”. Todos filmes com uma fortíssima mensagem ambiental, de denúncia dos excessos da indústria e do consumo excessivo. Que Miyazaki tenha escolhido Aichi - a poluidora prefeitura de Aichi - para a construção do seu tão aguardado parque temático parece uma ironia. Mas também é um reconhecimento. De que é possível conjugar sucesso económico e consciência ambiental. Mesmo na província mais industrializada e exportadora do Japão.

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