Há menos queixas de violência doméstica durante a pandemia, mas a cifra é negra: três por hora. E todos sabem que está longe da realidade

1 jan 2022, 21:00
Mulher

Comparativamente a 2019, em 2020 houve menos 1.861 queixas, num total de 27.637, o que representa cerca de menos 6,3% das participações por este crime. APAV acredita que os dados oficiais não espelham a realidade

Era vítima de violência há mais de 20 anos, quando ainda namoravam, e acabou morta às mãos dele, agora marido. É assim que se encerra a história da mulher que, juntamente com o filho, de 10 anos, foi brutalmente assassinada pelo companheiro, no Funchal.

Para as estatísticas é mais um número, o último caso conhecido de uma vítima de violência doméstica a morrer às mãos do agressor, em 2021. Para aquela família, foi o fim. A primeira e única queixa contra o homicida tinha sido feita dia 7 de dezembro. Já ninguém foi a tempo: morreram mais uma criança e uma mulher vítimas de violência doméstica.

Ainda que continue a ser o crime mais cometido em Portugal, os dados do Relatório Anual do Sistema de Segurança Interna revelam uma diminuição das participações pelo crime de violência doméstica contra o/a companheiro(a) em 2020, ano marcado pelo início da pandemia da covid-19.

Comparativamente a 2019, em 2020 houve menos 1861 queixas, num total de 27637, o que representa cerca de menos 6,3% das participações por este crime. Mas significará isto que há, efetivamente, menos casos de violência doméstica?

À CNN Portugal, Daniel Cotrim, psicólogo da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), diz que as vítimas costumam denunciar as situações de violência doméstica dois a quatro anos após o primeiro ato abusivo, a primeira agressão, pelo que não acredita que os dados correspondam à realidade, ainda que haja, efetivamente, menos participações por este crime feitas junto das autoridades. 

“Acho que só vamos ter os verdadeiros resultados sobre a violência doméstica relacionada com os confinamentos em 2022”, considera o psicólogo.

Os dados a que a CNN Portugal teve acesso mostram que, em média, são registadas 2.302 participações por mês, o equivalente a 75 por dia. Três por hora. Analisando à lupa, 85% dos crimes são contra o/a companheiro(a), mas em 2020 registou-se uma ligeira subida dos casos de violência doméstica contra menores: foram feitas 591 queixas às autoridades, valor que se situava nas 582 participações em 2019 e em 487, em 2018.

Ainda não há dados globais disponíveis relativamente ao ano de 2021. No entanto, a CNN Portugal teve acesso aos dados trimestrais de crimes de violência doméstica. No primeiro trimestre do ano passado, altura em que grande parte dos portugueses ainda estava em teletrabalho, foram registadas 5.517 participações às autoridades, de acordo com a PSP e GNR, valor que diminuiu em 841 face ao período homólogo de 2020 (altura pré-pandémica).

Relativamente aos homicídios em contexto de violência doméstica, de janeiro a março, foram mortas seis pessoas, metade das que tinham sido assassinadas no quarto trimestre de 2020 e menos uma que no período homólogo. Dessas, registo de quatro mulheres e dois homens.

Já no que diz respeito aos dados sobre o terceiro trimestre, de julho a setembro de 2021, altura em que a população já não estava confinada, houve mais 7.610 queixas nas autoridades policiais, mais 999 que entre os meses de abril a junho.

Comparando o terceiro trimestre com o período homólogo de 2020, há uma variação de menos 8,3% das ocorrências. Já nos homícidios, também se regista uma diminuição em 30%: registando-se neste trimestre um total de sete vítimas: cinco mulheres e dois homens.

Daniel Cotrim acredita que apesar de os números revelarem um menor número de queixas contra o crime de violência doméstica e também relativamente ao número de homicídios, a pandemia vem justificar algumas mudanças de comportamento por parte das vítimas.

O clínico adianta que durante o primeiro confinamento, em março de 2020, foi também o momento em que se registaram menos pedidos de ajuda naquela Associação, explicando que tal se pode dever ao facto das vítimas, num momento em que pouco se sabia sobre a covid, tinham como prioridade perceber do que se tratava a pandemia, colocando o bem-estar e as situações de violência a que eram sujeitas para segundo plano.

O psicólogo explica, ainda, que foi por isso percetível que, com o fim dos Estados de Emergência, as vítimas voltaram a ter alguma “liberdade de movimentos”, essencialmente no período entre maio e setembro de 2020, aumentando nessa altura os pedidos de ajuda e também de ocorrências policiais.

“Quando foram decretados os Estados de Emergência, os números de novos pedidos de apoio diminuíram. As pessoas estavam em casa a trabalhar, mais controladas pela pessoa agressora”, revela.

“A cifra negra temos a certeza que aumentou. Isto é, o número de casos não reportados, nem às organizações como a APAV, nem às autoridades, aumentou muito com os confinamentos, porque as vítimas continuam a ser controladas pelos agressores”, disse.

O clínico explica que o número relativamente a denúncias de agressões físicas diminuiu, dando, porém, lugar a outro tipo de violência como a psicológica, emocional e a sexual, também associadas mais aos períodos em que as vítimas se encontram com os agressores.

“Nota-se agora tipos de violência mais silenciosas, mais graves muitas vezes que a violência física, que deixa marca mas passa. A violência psicológica e sexual deixam marcas muito profundas. Ficam para sempre.”, diz Daniel Cotrim.

Relativamente a situações de violência que podem ter surgido durante os períodos de confinamento, o psicólogo explica que acompanhou várias situações sinalizadas como de alto-risco. Porém, descreve também que há algumas situações que parecem ter “nascido do confinamento”, dando como exemplo casais que entraram em situação de stress por estarem muito tempo juntos.

Pandemia salva vítimas

Como já vimos, se os confinamentos levaram, por um lado, ao aumento da violência psicológica e sexual, também foram a “salvação” para muitas mulheres e homens que se sentiam em ponto de rutura.

O psicólogo Daniel Cotrim explica à CNN Portugal que a proibição de movimentação entre concelhos durante os Estados de Emergência, levou a que algumas vítimas procurassem refúgio em casas-abrigo, e que os agressores não as perseguissem até lá.

“Não podiam mudar de concelho sem ter um motivo. Isso possibilitou que muitas mulheres, algumas delas que viviam em panoramas de violência há muitos anos, pedissem ajuda. O agressor ou a agressora não os(as) perseguia porque não podia, tinha uma limitação extra", explica.

Nestes casos, o clínico adianta que não terá sido a pandemia que levou as vítimas a saírem daquele contexto, mas sim alguns contextos que lhes permitiram sair daquele cenário violento.

“Não foi a pandemia que as levou a sair, foram algumas oportunidades criadas por ela”, diz.

Para Daniel Cotrim, os confinamentos nada mais são que espécies de luas-de-mel para os agressores, que vêem nestes períodos a oportunidade de monitorizar a vítima quase que a 100%.

“Não precisam de controlar de forma abusiva, as vítimas estão ali, à mão de semear. É uma espécie de lua de mel para eles. Já as vítimas, acabam por estar num estado de paralisação: não podem lutar, não podem voar, então congelam. O medo paralisa”, remata.

Em 2020, morreram 32 pessoas em contexto de violência doméstica.

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