Talibãs acusam o Paquistão de ter conduzido um ataque "sem precedentes, violento e repreensível" contra alvos em Cabul e Paktika. Islamabad diz que enfrenta um aumento da violência islamista desde que os talibãs tomaram Cabul em 2021
As tensões entre Afeganistão e Paquistão agravaram-se nos últimos dias com a troca de fogo mortal entre os dois vizinhos, alimentando receios de um conflito mais amplo.
Os combates seguiram-se a ataques em Cabul, capital afegã, e na província fronteiriça de Paktika, na passada quinta-feira, que os talibãs atribuíram ao Paquistão, embora Islamabad não tenha reconhecido oficialmente os ataques.
A mais recente escalada coincidiu com uma viagem histórica do ministro dos Negócios Estrangeiros dos talibãs, Amir Khan Muttaqi, à Índia - rival do Paquistão -, o que gerou preocupação em Islamabad.
Especialistas alertam que estes últimos ataques podem marcar o início de uma nova era de instabilidade entre os dois países vizinhos, que mantiveram relações estáveis e estratégicas durante anos, apesar dos frequentes confrontos ao longo da sua fronteira disputada.
Eis o que sabemos sobre a violência, que levou à apresentação de apelos à desescalada por parte da China, Rússia, Arábia Saudita e Catar, e a uma oferta do presidente dos EUA, Donald Trump, para intermediar a paz.
A escalada mais grave em anos
Os talibãs acusaram o Paquistão de ter conduzido um ataque “sem precedentes, violento e repreensível” contra alvos em Cabul e Paktika na noite de quinta-feira.
Islamabad não reivindicou oficialmente a responsabilidade pelos ataques. Mas, numa conferência de imprensa na sexta-feira, o tenente-general Ahmed Sharif Chaudhry, responsável militar paquistanês, afirmou haver “provas” de que “o Afeganistão está a ser usado como base de operações para levar a cabo terrorismo no Paquistão.”
O Paquistão há muito que acusa Cabul de albergar o grupo militante Talibã Paquistanês (conhecido como TTP), o que os talibãs afegãos negam. O Paquistão tem enfrentado um aumento da violência islamista desde que os talibãs tomaram Cabul em 2021, o que encorajou grupos militantes.
Na noite de sábado, os talibãs lançaram o que disseram ser ataques retaliatórios contra forças paquistanesas em várias zonas perto das províncias fronteiriças de Kunar e Nangarhar.
O Paquistão respondeu ao ataque, que classificou como “não provocado”, conduzindo bombardeamentos e incursões contra campos e postos talibãs, bem como contra instalações de treino e redes de apoio a terroristas no Afeganistão, segundo um comunicado militar.
Os talibãs afirmaram ter interrompido a operação militar por volta da meia-noite, após mediação do Catar e da Arábia Saudita.
Ambos os países divulgaram números de vítimas mais elevados do que os reconhecidos pelo vizinho.
O Paquistão afirmou ter morto mais de 200 talibãs e militantes, um número muito superior às nove baixas reclamadas pelos talibãs.
Por sua vez, os talibãs dizem ter morto 58 soldados paquistaneses - mais do dobro das 23 baixas reconhecidas pelo Paquistão -, segundo Mujahid.
A CNN não conseguiu verificar de forma independente estes números.
Uma história longa e complicada
O Paquistão e o Afeganistão têm uma história longa e complexa, marcada por frequentes confrontos ao longo da sua fronteira montanhosa de 1.600 milhas, conhecida como “Linha Durand.”
O Paquistão foi um dos principais apoiantes dos talibãs durante a sua insurgência contra o governo afegão no início dos anos 2000.
Os dois países são também grandes parceiros comerciais e mantêm fortes laços humanos. O Paquistão acolheu milhões de refugiados afegãos ao longo de décadas de guerra, embora nos últimos anos tenha procurado expulsar muitos deles, alegando risco de terrorismo.
No entanto, as relações entre Cabul e Islamabad deterioraram-se com o aumento da violência militante contra o Paquistão.
O TTP ressurgiu como uma das maiores ameaças à segurança nacional do país, tendo levado a cabo 600 ataques contra forças paquistanesas no último ano, segundo um relatório recente da organização independente Armed Conflict Location & Event Data (ACLED).
Após os ataques de sábado, os militares paquistaneses afirmaram que, embora o Paquistão prefira a via diplomática, “não tolerará o uso traiçoeiro do solo afegão para o terrorismo contra o Paquistão.”
No domingo, o Paquistão anunciou o encerramento das suas duas principais passagens fronteiriças com o Afeganistão.
O fator Índia
O exército paquistanês observou que a “grave provocação” ocorreu durante uma recente visita do ministro dos Negócios Estrangeiros dos talibãs à Índia, principal rival regional do Paquistão. Os dois países travaram um breve conflito no início deste ano.
Os talibãs e a Índia não esconderam o estreitamento das suas relações na sexta-feira, quando Nova Deli anunciou que reabriria a embaixada em Cabul, descrevendo a visita de Muttaqi como “um passo importante no reforço dos nossos laços e na afirmação da amizade duradoura” entre os dois países.
Islamabad e Nova Deli “competem sangrentamente pela influência no Afeganistão há décadas”, disse à CNN Antoine Levesques, investigador sénior para Defesa, Estratégia e Diplomacia do Sul e Centro da Ásia no International Institute for Strategic Studies.
Levesques afirmou que a visita dos talibãs à Índia representou uma “mudança de escala” nas relações entre a Índia e os talibãs, “aumentando o sentimento de insegurança do Paquistão nas suas fronteiras oriental e ocidental.”
O Paquistão sempre considerou boas relações com o Afeganistão como essenciais para contrabalançar a Índia, razão pela qual continuou a apoiar os talibãs de forma encoberta quando estes não estavam no poder, apesar de apoiar publicamente a Guerra ao Terror dos EUA e da NATO, explicou Pearl Pandya, analista sénior para o Sul da Ásia da ACLED.
“Contudo, este cálculo não parece ter resultado”, afirmou Pandya.
Como reagiram outros países?
O Catar, a Arábia Saudita, a China e a Rússia apelaram todos à desescalada.
O Catar expressou “preocupação” com “as potenciais repercussões para a segurança e estabilidade da região”, numa declaração na rede X. A Arábia Saudita, que recentemente assinou um pacto de defesa com o Paquistão, também apelou à “contenção e ao diálogo.”
O Ministério dos Negócios Estrangeiros da China afirmou na segunda-feira que “espera sinceramente que ambos os países se concentrem na visão de conjunto (…) e resolvam as suas preocupações através do diálogo e da consulta.” A Rússia também apelou a uma resolução “por meios diplomáticos.”
Pandya disse esperar que a China, “que recentemente assumiu um papel de mediação entre o Paquistão e o Afeganistão e tem interesses económicos em ambos os países, mantenha uma vigilância próxima sobre a situação.”
Os combates também chamaram a atenção de Trump, que se ofereceu para mediar a paz.
“Ouvi dizer que há agora uma guerra entre o Paquistão e o Afeganistão”, afirmou Trump a jornalistas a bordo do Air Force One, enquanto viajava para Israel no domingo para assinalar o acordo que pôs fim à guerra em Gaza.
“Sou bom a resolver guerras, sou bom a fazer a paz”, acrescentou Trump.
O que isto poderá significar para as relações daqui para a frente?
Embora a violência tenha diminuído por agora, com ambos os países a sinalizarem vontade de desescalar, os recentes ataques podem inaugurar uma nova era de instabilidade entre os vizinhos.
“No passado, surtos cíclicos de tensões armadas tendiam a recuar assim que ambos os lados faziam valer o seu ponto”, afirmou Levesques, acrescentando que a liderança paquistanesa vê o país como um “fornecedor de estabilidade para a região.”
Embora Islamabad não tenha reivindicado responsabilidade direta pelos ataques aéreos em Cabul, “um ataque desse tipo ultrapassaria uma linha vermelha nas suas relações”, afirmou Pandya.
Os últimos ataques aéreos em Cabul por uma potência estrangeira ocorreram em 2022, quando os EUA mataram o líder da Al-Qaeda, Ayman al-Zawahiri, segundo dados da ACLED, referiu Pandya.
“No que toca ao futuro da relação, muito dependerá de saber se esta escalada leva a uma mudança fundamental na forma como os talibãs lidam com o TTP, que é realmente a principal questão”, acrescentou Pandya.
“O TTP combateu ao lado dos talibãs contra as forças dos EUA e da NATO, e há uma relutância dentro dos talibãs em reprimir seriamente o grupo. Resta saber se os custos geopolíticos crescentes levarão os talibãs a repensar a sua posição.”
Reportagem adicional de Joyce Jiang, CNN.