O aeroporto de Lisboa vive no limite da sua operacionalidade. Qualquer imprevisto, por mais pequeno que seja, cria uma avalanche de problemas
O caos no Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, tornou-se um cenário cada vez mais normal e porventura trágico para um país que vive do turismo. Passou mais um fim de semana no qual se contabilizaram quase uma centena de cancelamentos e esta segunda-feira o problema manteve-se. Os passageiros sem voos, sem bagagens, sem uma cama para dormir e sem informações vão-se acumulando.
Porque é que isto acontece? Quais são as verdadeiras razões por trás deste caos? E, sobretudo, porque é que não se resolve? Os especialistas alegam que não há espaço para arrumar aviões, faltam funcionários, a extinção do SEF não foi oportuna, o número de passageiros não pára de subir e neste bolo ainda entra a política de gestão de pessoal da TAP. Recorde-se que a companhia aérea nacional tem ficado com a maior fatia dos voos cancelados.
No comentário semanal no Jornal das 8 da TVI, Paulo Portas abordou esta questão e defendeu que "arrumar aviões é o problema mais dramático", tornando-se "a causa de muito do caos que nós vemos".
"As causas para este caos são: uma que melhorou um pouco com a entrada da PSP, que é a ideia peregrina de extinguir o SEF no meio de uma época turística; a política de gestão de pessoal da TAP, que é crítica, porque há uma grande tensão e muitos não estão a aceitar trabalhos adicionais. É feita no limite e isso significa muitas vezes: ‘não há tripulantes, não há voo’; e o aeroporto tem de ter obras de extensão. As obras na Portela permitem ter mais slots, mais portas de embarque e, sobretudo, muito maior arrumação dos aviões", explicou.
"Uma morte anunciada"
O aeroporto de Lisboa tem, atualmente, 38 voos por hora - entre partidas e chegadas -, mas pode chegar a um limite de 42. Para Carlos Matias Ramos, antigo bastonário da Ordem dos Engenheiros, são demasiados aviões e passageiros para tão pouco espaço. "Tudo isto faz com que haja atrasos", explicou à CNN Portugal.
"O aeroporto tem 500 hectares, em números redondos. É materialmente impossível que este aeroporto responda àquilo que são as expectativas de evolução, tanto no número de aeronaves como de passageiros".
O especialista lembrou o relatório do Eurocontrol, de dezembro de 2016, que dizia que o aeroporto saturaria em 2030 - com obras de expansão feitas e com 48 movimentos por hora -, mas "tudo leva a crer que será muito antes. É uma crónica de uma morte anunciada. Não é novo. É uma situação identificada, caracterizada, com conhecimento por parte da ANA, mas não há vontade da VINCI".
A situação do aeroporto de Lisboa é urgente e precisa de uma solução igualmente urgente enquanto não avança o projeto para uma nova infraestrutura. Questionado sobre quais poderiam ser as medidas a curto prazo, Carlos Matias Ramos foi taxativo: "Enquanto não existir um novo aeroporto, vamos continuar a assistir a este problema. Mas é preciso explicar como é que uma atividade que é lucrativa internacionalmente está, em Portugal, na situação em que está".
Os problemas estão à vista de todos. Portela não tem capacidade de resposta, muito por causa da escassez de slots, e, por isso mesmo, o aeroporto é obrigado a rejeitar clientes. É preciso aumentar slots e expandir o estacionamento. Mas a questão não fica por aqui. Tem havido um crescente aumento de passageiros, ao mesmo tempo que se corta no número de trabalhadores.
Segundo dados da ANA Aeroportos, entre 2019 e 2021, foram despedidos 743 empregados, o que representa uma queda de 23%. Por outro lado, o aeroporto de Lisboa tem recebido um número crescente de passageiros. No fim de semana de 13 de junho, quando o caos nos aeroportos portugueses voltou a ser notícia, o SEF esclareceu que tinha sido atingido um pico de 50 mil passageiros em Lisboa.
Porque é que a TAP é líder no cancelamento de voos?
O foco na TAP é importante por dois motivos: é a companhia aérea que ocupa mais slots no Aeroporto Humberto Delgado e, consequentemente, a que mais cancelamos acumula. A CNN Portugal questionou a companhia aérea portuguesa sobre o porquê de os voos serem cancelados e se isso está relacionado com a eventual falta de pilotos ou tripulantes de cabine. A resposta, contudo, não foi esclarecedora.
"A TAP é a única companhia que tem o seu hub operacional em Lisboa e é também responsável pela maioria dos voos no aeroporto Humberto Delgado. É natural e expectável que, neste momento em que verificam grandes constrangimentos operacionais em todo o mundo, afetando todas as companhias, a TAP seja aquela que, em Lisboa, por ser a operadora da maioria dos voos, seja a mais afetada. Assim deve acontecer, também, com a Iberia em Madrid, a Air France em Paris, a British Airways em Londres e por aí fora", lê-se na nota enviada.
Mas alguns funcionários da TAP contactados pela CNN Portugal argumentam que a companhia tem não só um défice de pilotos e tripulantes de cabine, como ainda de pessoal de manutenção. Este cocktail, com mais alguns ingredientes como a falta de aviões, são a receita perfeita para o cancelamento de voos.
Desde que a pandemia de covid-19 chegou a Portugal que os trabalhadores da TAP têm sofrido cortes salariais: para pilotos e mecânicos foi de 45%; para a tripulação de cabine de 25%. E também houve lugar a despedimentos. Por isso, muitos destes trabalhadores, e particularmente os pilotos, deixaram de trabalhar nas folgas e feriados. Aliás, houve alturas em que a TAP preferiu alugar aviões a outras companhias aéreas a pagar estes dias de férias e folgas. Ou seja, um passageiro comprava um voo da TAP, por exemplo, para Londres e quando chegava ao aeroporto deparava-se com um avião da British Airways.
Isto significa que, atualmente, a TAP marca voos para as slots que tem disponíveis sem garantir que tem pilotos, mecânicos e tripulantes suficientes. Mas não só. Sempre que um voo é cancelado, a gestão torna-se mais complexa porque pode fazer com que não consiga garantir pilotos e tripulantes para os voos seguintes, ou porque a tripulação acabou por fazer horas a mais ou porque os voos chegaram atrasados e isso compromete as horas de descanso legalmente estabelecidas.
Para além disto, faltam aviões. Em dezembro do ano passado, a TAP perdeu 18 slots (nove duplas, de aterragem e descolagem) no âmbito do acordo com a Comissão Europeia para o plano de reestruturação. Ora, com menos slots, precisaria de comprar aviões maiores para levar o mesmo número de pessoas. No entanto, a companhia aérea optou por comprar aviões mais pequenos e mais velhos.
Um aeroporto no fio da navalha
O caos recorrente no aeroporto de Lisboa deve-se ao facto de este viver no limite da sua operacionalidade. Por isso, qualquer imprevisto, como o furo de um pneu de um avião, por mais pequeno que seja, cria uma avalanche de problemas. É um aeroporto que não tem margem para falhas.
Existe um desenquadramento do próprio aeroporto e das empresas e entidades que lá trabalham, como o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) ou mesmo a Groundforce. O défice de recursos humanos é geral e estende-se às companhias aéreas.
"Para se colmatar ou fazer cumprir o plano de contingência, a fiscalização e a investigação criminal tiveram que parar. (...) Qualquer aeroporto internacional, tem três vezes mais funcionários que o SEF tem no aeroporto de Lisboa", disse à CNN Portugal Renato Mendonça, presidente do Sindicato dos Inspetores de Investigação, Fiscalização e Fronteiras SEF (SIIFF).
Basta imaginar o Aeroporto Humberto Delgado como uma camisa justa, onde não cabe mais nada. Com a pandemia, a ANA Aeroportos e as empresas que prestam serviços e também as próprias companhias aéreas tentaram adequar os custos à quebra de procura. Isto implicou um corte no pessoal com o objetivo de contratar mais barato a seguir. Mas a procura continuou a aumentar, apesar de ainda não ter atingido os valores pré-pandemia. A TAP já admitiu que o problema não vai ser resolvido durante as próximas semanas. E, se nada for feito, o verão está e vai continuar a ser caótico.