O “Monstro do Mar Cáspio”, uma aeronave marinha do tempo da Guerra Fria, ressuscita

CNN , Miqel Ros
30 jan 2022, 08:00

Encalhado há mais de um ano na costa ocidental do Mar Cáspio, assemelha-se a um colossal monstro marinho, algo bizarro que mais parece sentir-se em casa debaixo de água do que no ar. Claramente, não se parece com nada capaz de voar. Mas voou, ainda que num passado longínquo

Em julho de 2020, após mais de três décadas adormecido, o Monstro Marinho do Cáspio, uma das aeronaves mais deslumbrantes alguma vez construídas, voltou a ganhar vida naquela que seria, provavelmente, a sua última viagem.

Uma flotilha de três rebocadores e dois navios de escolta levaram 14 horas a transportar lentamente ao largo da costa do Mar Cáspio a sua robusta e especial carga até ao seu destino, um pedaço de costa perto do ponto mais a sul da Rússia.

Foi aí, junto à cidade ancestral de Derbent, na república russa do Daguestão, que o ecranoplano de classe Lun de 380 toneladas encontrou a sua nova e, provavelmente, definitiva casa.

O último da sua raça a navegar as águas do Cáspio, “Lun” foi abandonado após o colapso da União Soviética nos anos 90, condenado a apodrecer na base naval Kaspiysk, ao largo da costa, a cerca de 100 quilómetros de Derbent.

Mas antes que caísse em esquecimento, foi resgatado graças à intenção de transformá-lo numa atração turística.

Ironicamente, aconteceu precisamente no momento em que se aposta no regresso deste conceito invulgar de aeronave marinha.

Velocidade e furtividade

O ecranoplano Lun de 380 toneladas foi deslocado pela primeira vez em 30 anos. Foto: Musa Salgereyev\TASS via Getty Images

 Os veículos de efeito terrestre, também conhecidos como ecranoplanos, são uma espécie de híbridos entre aviões e navios. Deslocam-se sobre a água sem que lhe cheguem a tocar.

A Organização Marítima Internacional classifica-os como navios, mas, na verdade, a capacidade de atingir altas velocidades advém do facto de deslizarem sobre a superfície da água a uma altura que vai de um a cinco metros. Tiram partido do princípio da aerodinâmica chamado “efeito terrestre”.

Essa combinação de velocidade e furtividade - o voo próximo da superfície da água torna-os difícil de detetar nos radares – chamou a atenção do exército soviético, que testou diversas variantes do conceito durante a Guerra Fria.

A missão no vasto corpo de água interior entre a União Soviética e o Irão levou à criação da alcunha de “Monstro do Mar Cáspio”.

O ecranoplano “Lun” foi uma das últimas criações do programa soviético de veículos de efeito terrestre. Mais comprido e quase tão alto como um Superjumbo Airbus A380, o Lun era capaz de atingir velocidades até 550 km/h, graças às oito potentes turbinas montadas nas suas atarracadas asas.

Esta incrível máquina conseguia até descolar e aterrar em condições tempestuosas, com ondas até aos 2,5 metros. O objetivo da sua missão era conduzir ataques relâmpago a partir do mar, com os seis mísseis antinavios que transportava em tubos de lançamento no topo da fuselagem.

Atração central

O ecranoplano levado para Derbent é o único da sua classe a ter sido concluído e posto em serviço em 1987.

Um segundo Lun, desarmado e desenvolvido para missões de resgate e de abastecimento, estava num estado avançado de construção quando, no início dos anos 90, o programa foi cancelado e o Lun já existente foi exonerado.

Após mais de três décadas de inatividade, não foi fácil voltar a movimentar o hidroavião, tendo sido preciso utilizar pontões de borracha e uma meticulosa coreografia com várias embarcações.

Lun irá tornar-se a estrela do futuro “Patriot Park” em Derbent, um museu militar e parque temático que exibirá diversos tipos de equipamento militar soviético e russo.

Mas a construção do parque parece estar a decorrer a um ritmo muito mais lento do que o estipulado. Em vez do início das obras no final de 2020, terá sido alocado ao projeto um orçamento de 400 milhões de rublos em abril de 2021.

Até que, em novembro, a agência noticiosa russa Tass citou o presidente da câmara local, que apontou o verão de 2022 como possível data de abertura.

Durante todo este tempo, Lun tem estado encalhado, à espera da construção do museu à sua volta.

O facto de este ecranoplano gigante ainda não estar oficialmente aberto ao público e de a praia onde se encontra ser, tecnicamente, inacessível, não impediu que se tornasse num imediato chamariz turístico.

O encanto fotogénico deste aparelho soviético único tem sido difícil de resistir para os muitos turistas russos que, dadas as restrições impostas pela Covid às viagens internacionais, têm acorrido ao Daguestão, este ano.

Lun não só se transformou num êxito no Instagram (ver #лунь), como alguns bloguistas conseguiram esgueirar-se até ele.

Tendo criado um grande burburinho, o ecranoplano não é a única atração turística em Derbent. A cidade intitula-se a mais antiga povoação continuamente habitada do território russo. A sua cidadela e centro histórico foram considerados locais de Património Mundial da UNESCO. 

Segunda onda

O monstro marinho é alimentado por oito potentes turbinas. Foto: Musa Salgereyev\TASS via Getty Images

Lun será mais uma das atrações da região que, até à chegada da pandemia do coronavírus, vira inúmeras iniciativas para chamar o turismo, incluindo o lançamento de cruzeiros no Mar Cáspio.

Quando abrir, o Patriot Park de Derbent não será o único museu russo a exibir um ecranoplano. Pode ser visto um ecranoplano bem mais pequeno da classe Orlyonok no Museu Naval Russo, em Moscovo.

Se os veículos de efeito terrestre foram caindo de moda nas últimas décadas, o conceito tem vindo a ganhar nova vida nos últimos tempos.

Empresas em Singapura, Estados Unidos, China e Rússia estão a trabalhar em diferentes projetos que pretendem ressuscitar os ecranoplanos, mas com objetivos bem mais pacíficos.

A empresa singapurense Wigetworks espera criar uma versão moderna do ecranoplano. Foto: cortesia de Wiget Works

A empresa singapurense Wigetworks espera criar uma versão moderna do ecranoplano.
Courtesy Wiget Works

Uma das empresas é a singapurense Wigetworks, cujo protótipo AirFish 8 foi desenvolvido a partir do trabalho de base dos engenheiros alemães Hanno Fischer e Alexander Lippisch, durante a Guerra Fria.

A Wigetworks adquiriu as patentes e os direitos de propriedade intelectual e dedicou-se a tentar desenvolver e modernizar os esboços iniciais para a criação de um veículo de efeito terrestre moderno.

Também na Ásia, o ecranoplano chinês Xiangzhou 1, levantou voo pela primeira vez em 2017, mas pouco se sabe sobre este projeto.

Drones de cargas

A The Flying Ship Company está a trabalhar num veículo de efeito terrestre automático. Foto: cortesia de Flying Ship Company

Nos Estados Unidos, a The Flying Ship Company, uma startup financiada por investidores privados, está a trabalhar num veículo de efeito terrestre automático para o transporte de cargas a altas velocidades. Falamos de drones automáticos para entregas, mas sobre a água.

O projeto está na fase inicial, mas o fundador e CEO, Bill Peterson, disse à CNN que a sua equipa espera concluir este projeto no período de sete anos.

Outra startup americana financiada por influentes investidores de Silicon Valley, a REGENT Craft, pretende ligar as principais cidades costeiras do país através de "planadores marítimos", um conceito que combina o efeito terrestre de asa com tecnologias hidrofólias para deslizar sobre a superfície do mar a altas velocidades. 

E a Rússia, o berço do ecranoplano, ainda não desistiu do conceito.

Foram promovidos vários projetos nos últimos anos, mas nenhum conseguiu passar da fase do design.

Beriev, fabricante de anfíbios a jato, lançou o conceito Be-2500, e, mais recentemente, a imprensa russa desvendou que estava em estudo um ecranoplano militar de nova geração, provisoriamente chamado “Orlan”.

Outro projeto com fundos privativos nasceu em Nizhny Novgorod, uma cidade industrial nas margens do rio Volga, com ligações próximas às raízes da tecnologia do ecranoplano, onde a empresa russa RDC Aqualines, que também tem escritório em Singapura, está a desenvolver a sua própria linha de ecranoplanos comerciais com capacidade para transportar três, oito, 12 passageiros e, possivelmente, mais, num futuro próximo.

Os seus designs chamaram a atenção de um grupo de empreendedores que pretende estabelecer uma ligação rápida ao Golfo da Finlândia, ligando Helsínquia a Tallinn, capital da Estónia, em 30 minutos.

Brevemente, talvez não precise de ir a um museu para ver um ecranoplano.

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