Análise de ADN resolve mistério de corpos encontrados no fundo de um poço medieval

CNN , Katie Hunt
4 set 2022, 18:00
Esta é uma reconstrução digital do rosto de um dos adultos encontrados no poço medieval (CNN Internacional)

Em 2004, alguns dos trabalhadores da construção de um centro comercial em Norwich, Inglaterra, encontraram 17 corpos no fundo de um poço com 800 anos. 

A identidade dos restos mortais dos 6 adultos e das 11 crianças e a razão para terem acabado no poço medieval há muito que deixam os arqueólogos intrigados. Ao contrário de outros enterros em massa, onde os esqueletos são dispostos de forma uniforme, estes corpos foram posicionados e misturados de forma estranha - provavelmente por terem sido atirados de cabeça para o poço, logo após a sua morte. 

Para tentar compreender melhor como morreram estas pessoas, os cientistas conseguiram recentemente extrair material genético pormenorizado, conservado nos ossos, graças aos recentes avanços no sequenciamento de ADN antigo. Os genomas de seis dos indivíduos mostraram que quatro deles estavam relacionados - incluindo três irmãs, a mais nova das quais tinha entre 5 a 10 anos. Uma análise mais aprofundada do material genético sugeriu que os seis eram “quase certamente” judeus asquenazes.

Os investigadores creem que todos morreram durante o período de violência antissemita que varreu a cidade - provavelmente num motim de fevereiro de 1190 relacionado com a Terceira Cruzada, uma de uma série de guerras religiosas apoiadas pela Igreja - conforme descrito por um cronista medieval. O número de pessoas mortas no massacre não é claro. 

“Estou feliz e aliviado por, 12 anos depois de começarmos a analisar os restos mortais destes indivíduos, a tecnologia tenha evoluído ao ponto de nos ajudar a compreender este caso histórico de quem eram estas pessoas e porque achamos que foram assassinadas”, disse num comunicado à imprensa Selina Brace, investigadora do Museu de História Natural de Londres e principal autora do artigo. 

O judaísmo é principalmente uma identidade religiosa e cultural partilhada, observou o estudo, mas em resultado de uma prática antiga de casamentos dentro da comunidade, os grupos judaicos asquenazes geralmente possuem uma ancestralidade genética distinta que inclui marcadores para alguns distúrbios genéticos raros. Entre eles estão a doença de Tay-Sachs, que geralmente é fatal na infância. 

Os investigadores descobriram que os indivíduos do poço partilhavam uma ancestralidade genética semelhante aos atuais judeus Ashkenazi, que, segundo o estudo, são descendentes de populações judaicas medievais com histórias principalmente no norte e no leste da Europa. 

“O ADN antigo judaico nunca tinha sido analisado devido às proibições de perturbar os túmulos judaicos. No entanto, não sabíamos que estes indivíduos eram judeus até fazermos as análises genéticas”, disse no comunicado o geneticista evolucionista e coautor do estudo Mark Thomas, professor da University College de Londres. 

Esta é uma reconstrução digital do rosto de uma das crianças encontradas no poço medieval

“Foi bastante surpreendente que os restos mortais inicialmente não identificados preenchessem a lacuna histórica sobre o período em que certas comunidades judaicas se formaram e as origens de alguns distúrbios genéticos”, disse. 

A análise de ADN também permitiu aos investigadores depreender as características físicas de um menino encontrado no poço. Provavelmente, tinha olhos azuis e cabelos ruivos, esta última característica associada a estereótipos históricos de judeus europeus, segundo o estudo publicado na terça-feira pela revista “Current Biology”. 

No manuscrito medieval “Imagines Hi storiarum II”, o cronista Ralph de Diceto pinta um quadro vívido do massacre. “Muitos daqueles que se apressavam para Jerusalém decidiram primeiro revoltar-se contra os judeus, antes que eles invadissem os sarracenos. Assim, a 6 de fevereiro [de 1190 d.C.] todos os judeus que foram encontrados em suas casas, em Norwich, foram alvos de um massacre; alguns tinham-se refugiado no castelo”, escreveu, de acordo com o comunicado de imprensa. 

O poço localizava-se no que costumava ser o bairro judeu medieval de Norwich, com o estudo a observar que a comunidade judaica da cidade descendia dos judeus asquenazes de Rouen, na Normandia, que foram convidados a viver em Inglaterra por William, o Conquistador, que invadiu a Inglaterra em 1066. 

No entanto, a ligação com a revolta de 1190 não é definitiva. 

A datação por radiocarbono dos restos mortais sugeriu que os corpos acabaram no poço em algum momento entre 1161 e 1216 - um período que inclui alguns episódios bem documentados de violência antissemita em Inglaterra, mas que também abrange a Grande Revolta de 1174, durante a qual muitas pessoas da cidade foram mortas. 

“O nosso estudo mostra quão eficaz a arqueologia, e especialmente as novas técnicas científicas, como o estudo do ADN antigo, podem fornecer novas perspetivas sobre os eventos históricos”, disse no comunicado à imprensa Tom Booth, investigador sénior do Francis Crick Institute. 

“O relato de Ralph de Diceto sobre os ataques de 1190 d.C. é evocativo, mas um poço profundo com corpos de judeus, homens, mulheres e especialmente crianças, obriga-nos a enfrentar o verdadeiro horror do que aconteceu.” 

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