Foram muitas as aventuras até John Portmann segurar o seu passaporte irlandês
Quando John Portmann, professor de estudos religiosos na University of Virginia, nasceu chamava-se Thomas James Delehanty – um facto que ele próprio desconhecia até há alguns anos.
O homem também não sabia que o nome da sua mãe era Therese e que o seu pai se chamava Thomas. Nem tinha consciência de que ambos eram irlandeses.
Portmann nasceu no Arizona em 1963. “A gravidez da minha mãe foi problemática”, conta, explicando aquilo que, entretanto, conseguiu apurar.
Therese, “de alguma forma, foi de Minneapolis para Phoenix”, onde conheceu as freiras Irmãs da Misericórdia [Sisters of Mercy, no original, uma ordem religiosa com uma longa tradição de assistência a grávidas solteiras, que lhe arranjaram um quarto na casa de um médico católico.
“Ao que parece estava feliz e bem tratada”, descreve Portmann. Contudo, três dias depois do parto – seguindo as regras das Irmãs da Misericórdia -, abandonou o bebé. Cerca de um mês depois, terá viajado de volta a Minneapolis, onde continuou a vida que tinha antes.
O bebé de Therese foi criado pelas freiras durante cinco ou seis semanas, antes de ser adotado. O bebé chamado Thomas James Delehanty ganhou um novo nome, John Edward Portmann, dado pelos pais adotivos, que não conseguiam ter filhos biológicos próprios.
Portmann soube bastante cedo que tinha sido adotado. Todavia, foi apenas quando recebeu o resultado de um teste de ADN em agosto de 2019 que descobriu mais detalhes sobre os seus antecessores.
“Quando recebi o resultado, não fazia ideia nenhuma do que significava”, reconhece Portmann. “Só nos dão um monte de números e quase precisamos de um curso para interpretá-los”.
“A única linha que compreendi, que estava logo no início da carta, era de que era 100% irlandês. Eu nem fazia ideia de que pudesse ser sequer 1%”.
Detetive de ADN
Um amigo disse a Portmann que devia contactar um “detetive de ADN” – um detetive privado que ajuda os clientes a identificar os pais e mães que não conhecem.
Jennifer Harris, professora de Inglês na University of Waterloo, no Canadá, que também é detetive de ADN nos seus tempos livres, ofereceu-se para ajudar depois de ter visto uma publicação de Portmann a pedir ajuda no grupo de Facebook “Detetives de ADN”.
“Levou-lhe imenso tempo. Ela passou cerca de oito ou nove dias a trabalhar no duro, até encontrar a minha mãe e o meu pai”, lembra Portmann.
Harris tem ajudado centenas de pessoas a perceber quem eram os seus pais biológicos, comparando o processo à investigação académica.
“Sou professora de literatura, habituada a mergulhar nos arquivos, a trazer ao de cima factos históricos que pareciam perdidos”, diz. “A minha investigação académica mistura-se com o trabalho de detetive de ADN enquanto estou nos arquivos”.
Num primeiro momento, Harris recorreu a bases de dados de ADN em plataformas como a Ancestry ou a 23andMe, para tentar encontrar pessoas com correspondências genéticas com Portmann, dividindo-os no lado materno e no lado paterno. Harris investigou depois nos arquivos – recorrendo a obituários, registos de censos e jornais antigos – para apurar quando alguém de um lado da família se cruzou com alguém do outro lado da família o tempo suficiente para nascer uma criança.
Segundo Harris, foi “bastante fácil” apurar os antepassados de John Portmann do lado da mãe, uma vez que havia uma forte ligação a uma família de Minneapolis. Foi eliminando gradualmente os restantes irmãos, até chegar a Therese.
Contudo, a investigadora só foi capaz de identificar uma correspondência de ADN do lado paterno de John Portmann nos Estados Unidos. “Arranjei forma de construir uma árvore genealógica usando o nome dele; era uma questão de investigar tudo o que pudesse sobre a história daquela família”, conta.
Harris examinou os registos de imigração dos antepassados desse familiar para ver se alguém tinha viajado da Irlanda para os Estados Unidos da América. Encontrou um documento a identificar a carga, os passageiros e a tripulação de um navio que viajou para a América. Segundo o que estava escrito, a bordo estava Thomas FitzGerald.
A detective de ADN apurou depois que Thomas FitzGerald foi para Minneapolis, que “não era um destino comum para os imigrantes irlandeses”.
“Foi então que encontrei que um artigo de jornal que o colocava de novo em Minneapolis na mesma altura em que John terá sido concebido”, explica Harris, acrescentando que se tornou “bastante claro que o pai de John era Thomas FitzGerald”
Thomas FitzGerald deixou Dublin para fazer fortuna nos Estados Unidos, refere Portmann. “Trabalhou num hotel de luxo em Dublin, emigrou aos 25 para os Estados Unidos. Acabou a trabalhar num hotel de luxo em Minneapolis, o Radisson. Foi aí que conheceu a minha mãe, no bar do hotel”.
A busca da cidadania
Portmann contactou a embaixada da Irlanda em Washington D.C. para ver se conseguiria obter a cidadania irlandesa, dado que os seus dois pais biológicos eram daquele país. Segundo conta, um funcionário disse-lhe que “não havia maneira de avançar” com o processo, uma vez que as provas foram consideradas insuficientes. Portmann descreve essa notícia como “devastadora”.
John Portmann falou com um advogado, que lhe disse que, efetivamente, haveria uma forma de avançar. Contudo, tal implicaria ir a tribunal para uma “declaração de paternidade” que reconhecesse legalmente quem eram os seus pais biológicos.
“O juiz teve de decidir se concedia ou não a ‘declaração de paternidade’ e confiou totalmente no testemunho de Jennifer Harris. Foi algo marcante”, descreve Portmann.
O juiz ficou convencido e decidiu a favor do homem. “Tinha um documento com força de lei no Arizona, mas a Irlanda não tinha qualquer obrigação de o considerar”, diz.
John Portmann enviou a “declaração de paternidade” para a embaixada irlandesa, que explicou que o processo teria de seguir para o governo da Irlanda para ser avaliado. “Sendo assim, enviei tudo para Dublin e tive de esperar um ano”.
Quando voltou a receber notícias do governo irlandês, foi pedido a Portmann um novo teste de ADN, realizado num consulado ou embaixada da Irlanda, e com a presença de algum familiar do lado do pai.
“Tive dificuldades para ter a ajuda de uma das minhas meias-irmãs biológicas”, confessa Portmann, acrescentando que ficou muito tempo em suspenso, sem uma decisão.
Contudo, num dia de agosto de 2022, recebeu a notícia, vinda de um funcionário do Departamento de Negócios Estrangeiros da Irlanda, de que o seu pedido tinha sido aceite. “Foi um dia mesmo feliz”, lembra.
O passaporte foi enviado para a embaixada irlandesa em Washington D.C. Segundo Portmann, dois funcionários da embaixada, de quem se tornou amigo durante o processo, enviaram-lhe uma fotografia deles a sorrir enquanto seguravam o documento, confirmando que ele tinha chegado à tão desejada meta.
Alguns dias depois, o passaporte chegou à caixa do correio. “Quero agradecer ao governo irlandês. Estou muito, muito grato à Irlanda”.
John Portmann já conheceu o lado materno da família biológica. Therese, que morreu em 2019, o mesmo ano em que fez o filho fez o teste de ADN, casou-se com um viúvo e tinha cinco filhas, que estão vivas. Os filhos do marido adoravam todos a madrasta, segundo Portmann.
Portmann conta que o marido da mãe sabia que a esposa tinha tido um filho no Arizona. E revelou-lhe que Therese carregou uma fotografia do seu bebé com ela durante toda a vida.
Portmann também descobriu que três dos cinco irmãos de Therese foram professores universitários. Ficaram “bastante surpreendidos” ao perceberem que ele também era professor, diz.
Estabelecer um precedente
O Departamento de Negócios Estrangeiros da Irlanda explicou que, apesar de não comentarem casos particulares, existem outras pessoas a “submeter provas de ADN nos seus pedidos de passaporte”.
“São exigidas provas documentais adicionais antes de uma tomada de decisão sobre a emissão do passaporte”, diz o Departamento de Negócios Estrangeiros. “Tais pedidos exigem um envolvimento considerável com o requerente, para garantir que o Serviço de Passaportes fica totalmente satisfeito com o compromisso do requerente para com a cidadania irlandesa”.
Portmann espera que a sua história mostre a outras pessoas que foram adotadas que há um caminho até ao reconhecimento legal do seu passado. “Quero inspirar outras pessoas que foram adotadas no que diz respeito ao seu direito constitucional à cidadania”.
O homem acrescenta que “a coisa mais triste é o facto de as pessoas com poucos recursos não conseguirem pagar um advogado que lute por elas”, dificultando assim o seu acesso à cidadania.
“Penso que o caso de John é realmente importante, porque estabelece um precedente para pessoas que foram adotadas”, considera Jennifer Harris. “Encaro-o da seguinte forma: John está a reclamar direitos que são frequentemente negados às pessoas que foram adotadas”.
“A adoção não rasga laços emocionais nem questões de pertença. A adoção não rasga a identidade. É algo complicado, em vários aspetos”.
“Os direitos das pessoas adotadas são muito importantes. E, historicamente, temos fingido que não existem esses direitos”, junta Harris. Para concluir: “Penso que eles têm de reclamar; faz parte do nosso desejo humano saber quem somos e quais são as nossas origens”.