Plano para inglês ver
Dizia a BBC que o Hamas “deverá rejeitar” o plano de 21 pontos apresentado no início da semana por Donald Trump para acabar com a guerra de Israel contra a Faixa de Gaza. Dizia a CBS News que o Hamas “estava inclinado a aceitar” esse mesmo plano. Pouco depois de o apresentar, o presidente dos EUA deu ao grupo palestiniano “três a quatro dias” para dar uma resposta oficial – um prazo que terminava às 22:00 deste domingo. Ao fim da noite de ontem, porém: "Hamas concorda em libertar todos os reféns israelitas, vivos ou mortos", publicava a CNN Portugal. Que explica que a libertação é ao abrigo do plano de Trump mas que explica também que o Hamas quer negociar através de mediadores - porque aqueles pontos todos de Trump são muitos pontos de discórdia.
O que se sabe, por ora, é que o conteúdo do que Trump propõe (diferente do que enviou aos líderes árabes) é visto por alguns analistas como um plano com linguagem evasiva, sem prazos estabelecidos e muito aberto a interpretação. Veja-se como exemplo o ponto 3, sobre a retirada das tropas israelitas do enclave de 360 quilómetros quadrados de área onde, neste momento, ocupa e controla 82% do território.
“Se ambos os lados [Israel e Hamas] concordarem com esta proposta, a guerra terminará imediatamente”, é referido no ponto 3. “As forças israelitas retirar-se-ão para a linha acordada para preparar a libertação dos reféns. Durante este período, todas as operações militares, incluindo bombardeamentos aéreos e de artilharia, serão suspensas e as linhas de combate permanecerão congeladas até que sejam cumpridas as condições para a retirada completa por etapas.” A este propósito, e ainda à luz do que aconteceu ontem à noite após a notícia de o Hamas aceitar libertar reféns, Trump afirmou logo a seguir que o Hamas está pronto para uma "paz duradoura" e que Israel "deve parar imediatamente os bombardeamentos em Gaza".
De acordo com um mapa divulgado pela Casa Branca a propósito do plano de Trump, Israel realizaria primeiro uma retirada limitada assim que os reféns fossem libertados, retirando-se depois, de forma gradual, à medida que uma “Força Internacional de Estabilização” assumisse o controlo da área libertada. Como tantas outras coisas, a composição exata dessa força não está clara, isto num cenário ainda hipotético em que o Hamas abdicaria das armas. De acordo com o mesmo mapa, Israel manteria sempre o controlo de todas as fronteiras da Faixa de Gaza, incluindo a fronteira com o Egito, numa grande vitória para o Estado hebraico.
Uma semana depois de muitos países, incluindo a maioria dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, terem reconhecido o Estado da Palestina na ONU, é de notar que o nome do povo ocupado que aspira à autodeterminação – palestinianos – não é referido uma única vez no plano de Trump. E apesar de prever que “Israel não ocupará nem anexará Gaza”, como ditado no ponto 16, também aqui o plano deixa a porta escancarada a interpretações que podem perpetuar o status quo.
“As forças de Israel irão progressivamente entregar o território de Gaza que ocupam à Força Internacional de Estabilização, sob um acordo que irão celebrar com a autoridade transitória, até se retirarem completamente de Gaza, com exceção de uma presença de perímetro de segurança que permanecerá até que Gaza esteja devidamente segura contra qualquer ameaça terrorista ressurgente”, lê-se no documento. Quando é que Israel consideraria Gaza “adequadamente segura”? Qual seria a dimensão do “perímetro de segurança” sugerido no plano? E onde seriam alojados os habitantes da Faixa de Gaza enquanto o enclave não é reconstruído? As respostas não são conhecidas.
Entre tudo isto, o ponto que mais consternação e controvérsia causou é o 9.º, sobre a governação de Gaza por um “comité palestiniano tecnocrático e apolítico” sob a “supervisão e fiscalização de um novo órgão internacional transitório”, a ser liderado por Trump e por outros “membros e chefes de Estado a serem anunciados, incluindo o antigo primeiro-ministro [britânico] Tony Blair”. Esse organismo será responsável por “estabelecer o quadro e tratar do financiamento para a reconstrução de Gaza até que a Autoridade Palestiniana (AP) tenha concluído o seu programa de reformas”, é ainda referido.
Graças a este ponto, Benjamin Netanyahu passou a semana a gabar-se de que Gaza não será governada nem pelo Hamas – declarado como grupo terrorista pelo grosso da comunidade internacional – nem pela Autoridade Palestiniana (AP), governo legítimo reconhecido pelo grosso da comunidade internacional –, em mais uma vitória para o país ocupante. Até ao momento, ninguém sabe que figuras palestinianas concordariam em integrar o comité, nem qual o programa de reformas que será exigido à AP, o que, em teoria, deixa a porta aberta para que o mandado desse organismo seja prolongado por tempo indefinido.
“A realidade colonial é que Israel e os EUA elaboraram um plano astuto para terceirizar o domínio ou ocupação contínua de Israel na Faixa de Gaza sob um governador, Tony Blair (um homem muito criticado no Médio Oriente), e um rei, Donald Trump, que governaria Gaza”, escreve Sam Kiley, editor de Assuntos Internacionais do Independent – “eles governariam indefinidamente” Gaza ou até a AP, “que governa as partes da Cisjordânia que Israel não quer ocupar diretamente, possa mostrar que é confiável para também administrar Gaza da maneira que EUA e Israel desejam”.
Não é de estranhar que Netanyahu tenha feito questão de “assegurar alterações importantes ao plano de Trump, retardando e limitando a retirada das forças israelitas de Gaza”, como noticiou o jornal israelita Haaretz a meio da semana. Dias depois, surgiu a alardear a entrega de uma carta a Trump a confirmar que o nomeou para o Nobel da Paz. Mas como aponta Kiley, um repórter com décadas de experiência em zonas de conflito, incluindo os territórios palestinianos ocupados, “qualquer pessoa que subscreva [este plano] tem de ser louca”, porque em última instância só irá “arrastar [Israel] para um confronto violento com os palestinianos, que se opõem ao que consideram um domínio colonialista, e para o mesmo dilema moral de horror que Gaza é hoje”.
“O Hamas provocou deliberadamente um cataclismo a 7 de outubro de 2023, Israel infligiu um pesadelo a Gaza que é agora amplamente considerado um genocídio – os dois lados atiraram-se para longe de qualquer superioridade moral e lançaram-se num abismo ético”, adianta o editor do Independent. “A única perspetiva de paz é oferecer ao povo palestiniano alguma esperança de que terão um Estado onde possam viver fora do controlo israelita.”
Com os dois anos do 7 de outubro a aproximarem-se de forma galopante, não escapa aos mais desatentos a enorme divisão que esta guerra tem gerado em todo o mundo. Na quinta-feira, no que o Reino Unido classificou como um ato terrorista, um homem atacou uma sinagoga em Manchester, num ataque que resultou em pelo menos dois mortos. Os detalhes ainda escasseiam, mas ao final do dia de ontem notícias davam conta de que terá sido a polícia, e não o suspeito terrorista, a balear as vítimas.
"Terrorista" foi também a classificação usada pelo governo israelita para classificar os tripulantes de mais de 40 nacionalidades que tentaram furar o bloqueio à Faixa de Gaza para entregar, por via marítima, comida não perecível e leite em pó para bebés aos palestinianos do enclave, onde muitos continuam em risco de morrer à fome e não apenas nos bombardeamentos e ataques aéreos israelitas.
Entre os tripulantes contam-se quatro portugueses, incluindo a deputada Mariana Mortágua e o ativista Miguel Duarte. À hora de fecho desta newsletter, depois de as forças israelitas terem conseguido travar as dezenas de embarcações da flotilha humanitária e de terem detido todos os seus tripulantes em águas internacionais, ainda não era certo quando seriam devolvidos aos seus países de origem.
A boa notícia, segundo testemunhas no terreno, é que esta movimentação marítima com enorme atenção mediática permitiu que, pela primeira vez em meses, os pescadores de Gaza apanhassem peixe para alimentar as suas famílias sem correrem o risco de serem abatidos.
Declarar guerra a generais gordos
Quando Pete Hegseth foi escolhido por Trump para o cargo de secretário da Defesa (renomeado para secretário da Guerra) dos Estados Unidos recebeu a missão de tornar as forças armadas "grandes novamente", tornando-as "mais letais e preparadas". Na terça-feira, o antigo apresentador de televisão chamou à base de Quantico um número inédito de generais e almirantes para revelar as novas diretrizes que vão devolver o foco à América para ultrapassar os desafios apresentados pelos seus adversários.
Quem está a ler esta newsletter poderá considerar que os principais desafios do exército norte-americano incluem a incapacidade dos EUA de acompanhar o ritmo da construção naval chinesa, as sucessivas falhas em atingir as metas de recrutamento, a crescente ameaça russa no Ártico ou a tentativa de manter a vantagem na inteligência artificial. Isso podia, de facto, ser verdade, mas o secretário da Guerra tem outra ideia: acabaram as barbas e as expressões individuais, os generais gordos e o wokismo.
"É completamente inaceitável ver generais e almirantes obesos nos corredores do Pentágono a liderar comandos em todo o país e no mundo. É uma má imagem. É mau e não é quem nós somos", disse o secretário da Guerra perante as mais altas patentes militares do país.
Muitos oficiais que assistiram ao discurso disseram que toda a cerimónia "podia ter sido um email". Mas o presidente norte-americano não perdeu a oportunidade para "oferecer" aos militares presentes um discurso de campanha, onde sugeriu que algumas cidades americanas parecem ser "cenários de guerra" e que o exército devia utilizá-las para treinar, pedindo aos generais e almirantes que combatam o "inimigo interno" antes que "tudo fique fora de controlo".
A letalidade americana começa agora em casa, no espelho e na balança, com Hegseth a proclamar novas regras que obrigam militares e oficiais a cumprir testes de aptidão física mais rigorosos duas vezes por ano. Do recruta ao almirante mais graduado, todos têm de cumprir "o padrão masculino mais elevado". Só assim, defende Pete Hegseth, é que o Departamento da Guerra pode fazer frente às grandes ameaças que espreitam ao virar da esquina. Até porque hoje a guerra é híbrida e mais complexa, onde o inimigo tanto pode ser um simples drone civil como uma perigosa caixa de donuts.
Como acabar com as desigualdades
Não é que a britânica Grace Blakeley, jornalista de economia e comentadora política, forneça um roteiro para acabar com as desigualdades gritantes da nossa era, mas no mínimo pretende abrir caminho para isso. Para se curar uma doença, primeiro é preciso fazer um diagnóstico e é isso que Blakeley faz no seu mais recente livro "Capitalismo Abutre", que acaba de ser editado em Portugal pela Casa das Letras.
O livro deu o mote a uma entrevista com a CNN Portugal sobre as mentiras que nos foram vendidas sobre o capitalismo, sobre o falhanço do neoliberalismo, sobre se o tecnofeudalismo corresponde ou não ao início do fim desta era e sobre os erros que a Europa se arrisca a cometer na sua demanda de se provar tão forte quanto a Rússia. Deixamos-lhe um excerto:
"Quando vemos hoje os líderes europeus a defender que a única forma de derrotar a Rússia é recriar uma economia de guerra enorme e expansiva - baseada no poder de grandes empresas monopolistas apoiadas pelo Estado - e a defender que, para o fazer, teremos de cortar o financiamento dos serviços públicos, teremos de cortar a despesa com a Segurança Social, a minha opinião é que, ao defender uma economia de guerra na Europa, numa tentativa de derrotar a Rússia, não vão derrotar a Rússia - vão tornar-se mais parecidos com a Rússia, porque é exatamente isso que Putin está a defender."
Quem está a ganhar a guerra
O discurso não durou muito mais de 30 minutos, mas a resposta a perguntas arrastou-se durante mais de três horas. Durante esse tempo, Vladimir Putin brincou com "a histeria" europeia em relação ao aumento significativo de ataques híbridos contra o seu território, acusou os países europeus de serem responsáveis "pela escalada do conflito" e ameaçou que a Rússia não vai deixar a militarização da União Europeia sem resposta. Putin até ironizou com a posição portuguesa.
"Se falarmos de forma séria, não temos drones capazes de atingir Lisboa. Temos drones de longo alcance, mas não há alvos lá. É isso que importa", disse o líder russo, durante o seu discurso no Clube Valdai, em Sochi.
Longe das críticas e das ameaças de Vladimir Putin continua o presidente norte-americano, Donald Trump, que ainda há poucas semanas disse que a Rússia é apenas "um tigre de papel" com a economia a colapsar. Pelo contrário, o presidente russo não só desvalorizou as críticas do presidente americano como o elogiou, descrevendo-o como "um interlocutor confortável" que "sabe ouvir" e mostrou-se disponível para ajudar no plano do presidente americano para resolver a guerra no Médio Oriente.
A posição contida do chefe de Estado russo acontece numa altura em que Washington parece estar a mudar a sua política em relação à Ucrânia, depois de vários meses de distanciamento, na tentativa de mediar um acordo para colocar um fim ao conflito. Donald Trump disse estar "muito desapontado" com Putin e notícias do apoio americano multiplicam-se. O presidente americano autorizou os serviços secretos a fornecer informações à Ucrânia para atacar as refinarias russas, que desde o início de agosto têm sofrido ataques implacáveis das forças ucranianas, levando a uma crise no fornecimento de combustível na Rússia.
Cerca de 21 das 38 maiores refinarias russas onde o petróleo é convertido em combustível foram atingidas desde janeiro. Segundo um estudo da BBC, o número de ataques com sucesso aumentou 48% em relação a todo o ano de 2024. Vários vídeos partilhados nas redes sociais mostram longas filas de carros em postos de combustível, com alguns deles a serem obrigados a suspender operações devido à incapacidade de operar com os elevados custos. Alguns destes ataques estão a atingir infraestruturas petrolíferas a mais de mil quilómetros da fronteira com a Ucrânia. E a situação pode agravar-se, caso os norte-americanos aceitem o pedido ucraniano para o envio de mísseis cruzeiro Tomawahk.
Mas a Europa também parece disposta a fazer a sua parte para prejudicar a exportação de produtos petrolíferos russos, depois de França ter detido a tripulação de um petroleiro da "frota fantasma" russa, que se suspeita ter servido de plataforma de lançamento para drones que forçaram a Dinamarca a fechar vários aeroportos, na semana passada. Macron abriu a porta a um novo modelo, que pode levar à retenção destes navios durante semanas, o que pode prejudicar o modelo de negócio russo.
Alguns sinais mostram que a estratégia pode estar a ter resultado. As receitas russas de impostos de petróleo e gás natural caíram 25% em setembro, em comparação com o mesmo mês do ano passado, de acordo com dados do Ministério das Finanças russo. A queda está a acentuar um déficit crescente do orçamento russo, que no final do mês de agosto já ultrapassa a meta do governo para a totalidade do ano. Esta combinação de fatores levou Moscovo a propor o aumento do IVA no país de 20% para 22%.