Não há aviões grátis

Não, não são coisas do outro mundo. É o Admirável Mundo Trump
Sáb, 17 mai 2025

“A Arábia Saudita a dar 25 milhões de dólares, o Catar e todos estes países… Você fala das mulheres e dos direitos das mulheres, isto são pessoas que empurram os gays de edifícios abaixo, isto são pessoas que matam mulheres e tratam as mulheres de forma horrível e, ainda assim, você aceita o dinheiro deles. E portanto gostava de lhe perguntar aqui e agora: porque é que não devolve o dinheiro que aceitou de alguns países que tratam certos grupos de pessoas de forma tão horrível? Porque é que não devolve o dinheiro? Acho que seria um grande gesto.”

Isto é uma viagem ao passado, concretamente à campanha presidencial de 2016 nos EUA, quando, contra todas as sondagens e contra quase todas as expectativas, Donald Trump derrotou a candidata democrata, Hillary Clinton. A citação acima foi proferida pelo então candidato Trump num dos debates presidenciais, e vinha a propósito do legado de política externa deixado por Barack Obama e pela própria Clinton enquanto sua ex-vice-presidente. E, sem surpresas, foi recuperada quase uma década depois, esta semana, a propósito do primeiro périplo oficial de Trump desde o início do seu segundo mandato na Casa Branca.

Em visitas oficiais à Arábia Saudita, ao Catar e aos Emirados Árabes Unidos (EAU), três dos países mais ricos do mundo (e, como referiu acertadamente em 2016, três dos países que mais violam os direitos das mulheres e de minorias), Trump assinou acordos comerciais num total de mais de 10 biliões de dólares – para entender a escala, correspondente a 400 vezes os 25 milhões que Trump desafiou Clinton a devolver como demonstração de que defende “certos grupos de pessoas”.

Não fosse a morte do Papa Francisco e estas teriam sido as primeiras viagens oficiais de Trump neste seu segundo mandato em curso – espelho do seu primeiro mandato, quando a sua primeira viagem oficial teve Riade como destino. E ainda antes de fechar acordos de 10 biliões – assim mesmo, milhões de milhões de dólares, na sua maioria a serem investidos em projetos de Inteligência Artificial – já outro valor estrondoso pairava sobre o governo Trump, na forma de um avião-palácio de 400 milhões de dólares que a monarquia do Catar pretende “oferecer” ao presidente americano.

“O facto de o Departamento de Defesa receber um PRESENTE, GRATUITO, de um avião [Boeing] 747 para substituir temporariamente o Air Force One com 40 anos de idade, numa transação muito pública e transparente, incomoda tanto os Democratas corruptos que eles insistem que paguemos TODO O DINHEIRO pelo avião”, escreveu Trump na sua Truth Social, perante críticas de estar a ser comprado pelos cataris e de planear ficar com o avião assim que abandonar a presidência. (O comentário ignora que até alguns dos seus mais fervorosos apoiantes, como o influencer Ben Shapiro, criticaram o presidente por aceitar esta aparente oferta).

“O avião gratuito de Trump não é assim tão gratuito”, ressalta o Politico, com base nos custos de manutenção que poderão estar na base desta “oferenda” ao presidente. “Não há aviões grátis”, adianta a Atlantic, denotando que os filhos e o genro do presidente viajaram ao Golfo para fechar negócios privados antes do périplo oficial de Trump. 

“A Constituição não é um documento muito longo, mas proíbe especificamente os titulares de cargos públicos de aceitarem presentes de potências estrangeiras”, ressalta a revista norte-americana. “Se o Congresso dos EUA está disposto a permitir que um governo estrangeiro dê ao presidente um presente pessoal de 400 milhões de dólares, que controlos restam ao seu poder? Qual é o objetivo de ter uma Constituição ou um Congresso? O avião pode ser gratuito para Trump, mas o custo para os americanos pode vir a revelar-se extremamente elevado.”

Ahmed al-Sharaa passou do camuflado ao fato e gravata

Ahmed al-Sharaa, presidente interino da Síria (AP)

Terroristas e aliados

Nem só de dinheiro se fez o primeiro périplo presidencial da era Trump 2.0. Outro momento que marcou a semana foi o levantamento das sanções dos EUA à Síria, que vigoravam desde 1979, na prática inaugurando um novo capítulo para o país pós-Bashar al-Assad.

A conselho do líder turco, Recep Tayyip Erdogan, o presidente americano encontrou-se com o novo presidente sírio, Ahmed al-Sharaa – um homem que chegou ao poder em dezembro à frente do HTS, um grupo classificado como terrorista por Washington que em tempos jurou fidelidade à Al-Qaeda.

“É ótimo, um jovem atraente, um tipo duro, com um passado forte, um passado muito forte, um lutador”, disse Trump aos jornalistas após o encontro de 37 minutos com Al-Sharaa em Riade. “Ele tem uma hipótese real de recompor [o país]. Falei com o presidente Erdogan e ele sente que ele tem uma hipótese… O país está devastado.”

Segundo Trump, Sharaa terá mostrado abertura para aderir aos Acordos de Abraão, um acordo de 2020 mediado no seu primeiro mandato sob o qual alguns países árabes, como os EAU, o Bahrain e Marrocos, normalizaram as relações com Israel.

Novamente ao leme de Trump, os EUA continuam a tentar que Arábia Saudita e outros países se juntem ao tratado – sendo que chegaram a surgir rumores de que Trump poderia inclusive aproveitar este périplo para anunciar o reconhecimento do Estado da Palestina para convencer os sauditas a embarcarem nos acordos.

Isso não se confirmou, mas foram vários os artigos publicados ao longo da semana sobre como Trump parece estar a encostar Israel às boxes na sua senda de conquista dos países do Golfo, patente até no acordo que fechou com os rebeldes Houthis do Iémen para pararem de atacar barcos no Mar Vermelho.

“Os movimentos de Trump com os Houthis, o Irão, a Síria e a Turquia revelam os contornos do seu novo mapa geopolítico – e reduzem Israel a um mero espectador”, escrevia Zvi Bar’el, do jornal israelita Haaretz, na semana passada. “A Faixa de Gaza pode ser a próxima”.

Enquanto nada acontece nessa frente, e enquanto Israel continua a bombardear o enclave palestiniano enquanto impede a entrada de qualquer bem alimentar ou outro há três meses seguidos, vale a pena destacar os mais recentes relatórios de ONG sobre a atual situação da Síria ao final de cinco meses.

“Apesar do colapso do governo Assad, algumas das mesmas restrições continuam em vigor ou foram reforçadas pelas novas autoridades”, ressalta a Human Rights Watch sobre os entraves a operações de ajuda humanitária aos sírios. “O novo governo da Síria tem de tomar medidas imediatas e concretas rumo à justiça, à verdade e à reparação, que abordem o devastador legado de abusos do país, e empreender com urgência reformas baseadas nos direitos humanos para evitar novas violações”, alerta a Amnistia Internacional.

Numa das mais recentes manchetes sobre o assunto, o jornal americano The Conversation aponta um mau prenúncio ao leme do “jovem e atraente” Al-Sharaa: “Síria enfrenta um recrudescimento da violência sectária, uma vez que o governo não consegue assegurar a inclusão.”

Dissuasão nuclear "não é matemática"

O presidente francês abriu a porta para a partilha das armas nucleares com outros países europeus, algo que é feito há 70 anos pelos EUA e representa um dos principais pilares do artigo 5.º do Tratado de Washington. O objetivo passa por dar "autonomia estratégica" à União Europeia, mas o impacto da decisão de partilhar as 280 ogivas nucleares francesas pode ir muito além disso.

"Se a França começar a enviar armas nucleares para a Polónia, isso significa que o papel nuclear da NATO entrou em colapso. É um sinal de que a NATO está em sérios apuros, de que os EUA estão a retirar-se dos seus compromissos para proteger os seus aliados europeus. Esse é um dos principais objetivos da política externa russa desde a Guerra Fria. Se isso acontecer, haverá uma festa em Moscovo", alerta John Erath.

Numa entrevista exclusiva à CNN Portugal, John Erath, especialista em proliferação nuclear e diretor sénior de Políticas do Center for Arms Control and Non-Proliferation, explica as razões, os obstáculos e os riscos geopolíticos que podem surgir no horizonte europeu. 

Domingo de importantes eleições...

… e não apenas em Portugal. Na Roménia, a população vai às urnas para a segunda volta de umas antecipadas e contestadas eleições presidenciais, depois de uma primeira tentativa de eleger o próximo chefe de Estado do país ter sido anulada pelo Tribunal Constitucional no final do ano passado, face a provas de uma campanha de desinformação russa nas redes sociais a favor do candidato ultranacionalista e anti-UE Calin Georgescu.

Na primeira volta das novas eleições, há duas semanas, e dado que Georgescu foi impedido de se recandidatar, o vencedor foi George Simion, fundador do principal partido de extrema-direita da Roménia, a Aliança para a União dos Romenos (AUR), que se candidata como independente.

“Há um número crescente de romenos que acredita que [anular as anteriores eleições] era a coisa certa a fazer”, diz à CNN Sergiu Miscoiu, diretor do Centro de Cooperação Internacional da Universidade de Babeș-Bolyai, em Cluj-Napoca, na Roménia. “O resultado, contudo, foi a ultra-radicalização dos apoiantes de Georgescu, razão pela qual aceitaram Simion mesmo não gostando assim tanto dele, razão pela qual votaram nele para se vingarem do sistema.”

Como refere Miscoiu na conversa com a CNN, que pode ler aqui para entender tudo o que está em causa nestas eleições, inclusivamente a defesa da UE face à Rússia, a rede de desinformação que tinha Georgescu ao centro está ligada aos esforços de ingerência noutros processos eleitorais, como o referendo sobre a adesão da Moldova à UE ou as presidenciais na Polónia – cuja primeira volta acontece também este domingo.

Diz quem sabe que essa votação no mais importante dos países do flanco oriental da NATO “não será o habitual confronto entre o partido nacionalista Lei e Justiça (PiS) e a centrista Coligação Cívica (KO)”, o que também não augura boa fortuna. A segunda volta polaca está marcada para 1 de junho.

Futuro do flanco leste da NATO nas mãos dos romenos

protesto pró-UE Bucarest Roménia antes segunda volta eleições presidenciais (Andreea Alexandru/AP)

Quem está a ganhar a guerra?

Foi a semana em que a montanha pariu um rato. Ou nenhum rato. Mais de três anos e meio depois da invasão em larga escala da Ucrânia, havia enormes expectativas de negociações diretas, possivelmente entre Zelensky e Putin, na cimeira informal da NATO na Turquia. Mas essas expectativas saíram quase completamente defraudadas – para alguns analistas, sem grandes surpresas.

“Como se antecipava, a Rússia enviou mais uma vez um sinal claro a Washington de que continua empenhada em forçar a Ucrânia a capitular, e não empenhada em negociações reais”, diz à CNN Elena Davlikanova, do Center for European Policy Analysis.

Após um encontro da chamada coligação dos países dispostos em Kiev, no último fim de semana, Vladimir Putin recebeu um ultimato: implementar um cessar-fogo “imediato e incondicional” de pelo menos 30 dias como prelúdio de conversações diretas com a Ucrânia, sob pena de enfrentar um reforço das sanções ao seu governo. Em resposta, o presidente russo desafiou Zelensky para um encontro em Istambul no final da semana.

Keith Kellogg, o enviado dos EUA para a Ucrânia, começou por garantir que Trump estava alinhado com a proposta dos aliados. Mas nem 24 horas depois, o líder americano afinou pelo diapasão de Putin, e na Truth Social desafiou o presidente da Ucrânia a ir à Turquia. Em resposta, Volodymyr Zelensky garantiu que se deslocaria “pessoalmente” a Istambul e propôs a Putin que fizesse o mesmo.

No final, nem Putin apareceu, nem Zelensky se sentou à mesa com os russos. E segundo o correspondente da Economist, durante as negociações diretas que acabaram por ter lugar (em que os dois lados acordaram uma nova troca de prisioneiros), os russos disseram que só aceitariam um cessar-fogo "se a Ucrânia se retirar das quatro províncias 'anexadas' que a Rússia nem sequer controla totalmente (!)" - e também ameaçaram "apoderar-se de mais duas: Kharkiv e Sumy".

“A ausência do presidente Putin das negociações sublinha a postura do Kremlin – ele só irá aparecer para ‘abençoar’ uma rendição ucraniana, não para negociar”, diz Elena Davlinakova. “A composição da delegação russa reflete esta intenção – foi notoriamente de baixo nível e pouco séria. Até Sergei Lavrov, o ministro russo dos Negócios Estrangeiros, troçou das expectativas sobre a participação de Putin, referindo-se desdenhosamente ao presidente Zelensky como um homem “patético” por antecipar um diálogo substantivo.”

Finalizada a cimeira informal da NATO, o líder ucraniano rumou à Albânia para participar na Cimeira da Comunidade Política Europeia, lamentando ter-se perdido “uma verdadeira oportunidade de avançar para o fim da guerra – se ao menos Putin não tivesse tido medo de ir à Turquia”. Logo a seguir, uma fonte em Kiev disse à Reuters que a Rússia aumentou a parada e está agora a fazer exigências “que vão muito além de tudo o que foi discutido anteriormente” – incluindo um “ultimato para que a Ucrânia se retire do seu território para um cessar-fogo”.

Essa trégua parece agora ainda mais distante. “Não há sinais de um potencial cessar-fogo de 30 dias”, diz Davlikanova. E, numa altura em que “o Kremlin está a preparar-se para uma campanha de verão intensificada, tendo alegadamente já alistado 300 mil soldados adicionais para as Forças Armadas”, o que resta é uma esperança – “que a Casa Branca deixe finalmente de desviar a atenção da realidade e se torne séria na dissuasão da Rússia”.

Zelensky recebido por Erdogan em Ankara

Volodymyr Zelensky e Recep Tayyip Erdogan (TURKISH PRESIDENTIAL PRESS OFFICE HANDOUT/EPA via Lusa)
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