Flamingos, fome e um flop diplomático: a invenção que pode mudar a guerra na Ucrânia

Sáb, 23 ago 2025

"A guerra é a continuação da política por outros meios", teorizou Carl von Clausewitz, no século XIX, na sua obra-prima "Da Guerra". Os quase 200 anos que passaram desde a publicação deste livro não o tornaram menos atual e a Ucrânia provou-o esta semana. Através de um misto de inovação militar e ousadia estratégica, Kiev revelou uma nova arma que vai redesenhar o tabuleiro político com a Rússia. Chama-se Flamingo FP-5, é capaz de transportar 1.150 quilos de explosivos a alta velocidade e capaz de atingir alvos com precisão a três mil quilómetros, o que lhe permite atingir alvos em Moscovo, mas o seu impacto pode ir bem mais longe. 

Este é o primeiro míssil de cruzeiro fabricado pela Ucrânia e, de acordo com a empresa que o criou, já está a ser produzido em série. Os números reportados são reduzidos, cerca de 30 mísseis por mês, mas a companhia garante estar a trabalhar para expandir as operações e atingir uma produção de 240 unidades por mês. Esta criação é uma resposta direta à intransigência do governo alemão e americano em aceitar os pedidos da Ucrânia para o fornecimento de mísseis de longo alcance para poder atacar os centros de produção russos.

E existem vários sinais de que a Ucrânia estava a preparar e a "abrir caminho" para ataques de longo alcance. No último ano, as forças armadas ucranianas intensificaram uma campanha de ataque contra os radares russos, um pouco por toda a linha da frente, mas também em regiões estrategicamente importantes, como a Crimeia ou nas regiões de Kursk e Bryansk. A ausência de radares poderosos nestas regiões pode abrir os céus russos aos ataques dos novos mísseis ucranianos, que colocam a principal região industrial russa ao alcance dos ataques ucranianos. 

Um sinal de que essa estratégia pode já estar a surtir efeito pode ser vista no aumento significativo dos ataques ucranianos com drones de longo alcance contra refinarias russas. Em pouco mais de um mês, os ataques de Kiev levaram à interrupção de operações em várias instalações. Cerca de 13% de toda a capacidade de produção de combustível russa foi incapacitada. E isso teve um impacto imediato na sociedade russa. O preço do combustível nunca esteve tão caro e está a bater recordes há vários dias consecutivos. Em algumas regiões, já há falta de produtos refinados e o Kremlin viu-se obrigado a suspender as exportações.

Só que a estratégia ucraniana está também a abalar as relações no interior da União Europeia e da NATO. As forças armadas ucranianas atacaram, pela terceira vez, o oleoduto de Druzhba, interrompendo por completo a transição de petróleo russo em direção à Hungria e à Eslováquia, dois países que ao longo de mais de três anos e meio de guerra se recusaram a diversificar as suas fontes de combustíveis fósseis e reduzir a dependência de Moscovo.

Os dois países pediram à Comissão Europeia que garanta a segurança dos abastecimentos, naquilo que é um claro recado contra a Ucrânia. “A realidade física e geográfica é que, sem o oleoduto, o fornecimento seguro dos nossos países simplesmente não é possível”, escreveram os ministros dos Negócios Estrangeiros de ambos os países, Peter Szijjártó e Juraj Blanar. Mas o ministro húngaro foi mais longe e ameaçou a Ucrânia, relembrando que "a eletricidade da Hungria desempenha um papel vital no fornecimento" de energia à Ucrânia.

Impasse nos gabinetes e nas trincheiras

O presidente Donald Trump encontra-se com o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenskyy, no Salão Oval da Casa Branca, na segunda-feira, 18 de agosto de 2025, em Washington. (AP Photo/Julia Demaree Nikhinson)

Enquanto isso, a situação na mesa de negociações parece estar prestes a voltar a um impasse, depois de alguns dias de esperança que marcaram a rápida sucessão de encontros ao mais alto nível, primeiro entre Trump e Putin, no Alasca, e depois com Volodymyr Zelensky e líderes europeus. Dos encontros pareceu sair a ideia de que os Estados Unidos e vários países europeus estavam dispostos a oferecer garantias de segurança à Ucrânia e a possibilidade de um encontro bilateral entre Zelensky e Putin. O encontro, que aconteceu na sombra da reunião de fevereiro, surpreendeu os analistas com a relação entre os dois.

A Rússia, por sua vez, manteve sua postura inflexível. Putin reiterou condições paa um acordo: o reconhecimento das anexações de Donetsk, Luhansk, Zaporizhzhia, Kherson e Crimeia, a neutralidade militar da Ucrânia e a suspensão das sanções económicas ocidentais. Além disso, o Kremlin rejeitou categoricamente a presença de tropas da NATO na Ucrânia, através do seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Serguei Lavrov. A Aliança Atlântica respondeu através do presidente finlandês, Alexander Stubb, que a Rússia "não decide isso".

A resposta russa veio no campo de batalha, onde a escalada militar não para, apesar das negociações em curso. Horas antes de Zelensky chegar à Casa Branca para se encontrar com Trump, Moscovo lançou um forte ataque, que matou sete pessoas em Kharkiv e três em Zaporizhzhia. Em 21 de agosto, a Rússia lançou um ataque maciço contra a Ucrânia, com 574 drones e 40 mísseis, de olhos postos na infraestrutura energética do país em retaliação aos ataques ucranianos às refinarias russas.

Mas ao contrário de outras circunstâncias, Donald Trump, intensificou sua retórica contra a Rússia, sugerindo que a Ucrânia deveria ter permissão para atacar a Rússia dentro de seu território para vencer a guerra. "É muito difícil, senão impossível, vencer uma guerra sem atacar o país invasor. É como um grande time esportivo que tem uma defesa fantástica, mas não tem permissão para jogar no ataque. Não há chance de vencer! É assim com a Ucrânia e a Rússia.", declarou o presidente americano na rede social Truth Social. A sugestão de Trump de permitir ataques ucranianos em solo russo, embora minimizada pela Casa Branca como uma “observação”, alinha-se com a estratégia de Kiev e com o anúncio de que os mísseis Flamingo podem estar prontos para entrar em ação contra alvos bem no interior do território russo.

Crónica de uma fome anunciada

Fome em Gaza (Foto de Hamza Z. H. Qraiqea/Anadolu via Getty Images)

Enquanto a Ucrânia pressiona a Rússia, a Faixa de Gaza enfrenta uma tragédia humanitária sem precedentes. A ONU declarou oficialmente a fome na cidade de Gaza, a primeira no Médio Oriente, com meio milhão de pessoas presas em condições catastróficas, segundo o Quadro Integrado de Classificação da Segurança Alimentar (IPC). A crise, que se estende a Deir el-Balah e Khan Yunis até setembro, é resultado de quase dois anos de bombardeamentos israelitas e restrições severas à entrada de alimentos, medicamentos e combustível. 

Israel negou a fome, acusando o IPC de se basear em "mentiras do Hamas" e alegando que mais de cem mil camiões de ajuda humanitária entraram em Gaza desde outubro de 2023. Mas, no mesmo dia, ataques israelitas mataram 37 pessoas, incluindo 19 na cidade de Gaza, com 12 mortes num bombardeamento a uma escola. A ONU classificou a fome como "inteiramente provocada pelo homem", apelando por um cessar-fogo imediato e acesso humanitário irrestrito, enquanto o Hamas exigiu a abertura das passagens para ajuda. A escalada militar, com Israel planejando uma ofensiva na cidade de Gaza, está a intensificar a crise.