Fascismo? Tirania? Perseguição é certamente, e a censura bate assim

ANÁLISE || O homicídio de Charlie Kirk está a provar-se o bode expiatório perfeito para Trump. Apertem os cintos, estamos a descolar
Sáb, 20 set 2025
Jimmy Kimmel | Fotografia: Media Access Awards Presented, Easterseals, Getty

Como se classifica um Estado onde homens encapuzados e sem identificação levam pessoas à força das ruas para interrogatório? O que se chama a um Estado que deporta pessoas, incluindo nacionais, para centros de detenção extrajudiciais onde se amontoam relatos de tortura? Que tipo de Estado proíbe livros em escolas e bibliotecas, despede responsáveis institucionais por publicarem relatórios que não agradam ao regime e cujo Presidente destaca forças militarizadas para a capital sem que a realidade o justifique?

Quase um ano depois das presidenciais, os Estados Unidos de Donald Trump resvalaram oficialmente para o fascismo? Eis a pergunta que paira no rescaldo de todos estes eventos, e de mais um episódio de violência política que a administração norte-americana já está a usar para silenciar todo o tipo de opositores.

Com o assassinato de Charlie Kirk, controversa personalidade MAGA a quem Trump tanto deve, com um percurso marcado por retóricas anti-negros, anti-LGBT e anti-esquerda que ressoou junto de muito jovens brancos americanos nas últimas eleições, não restam dúvidas de que a polarização social atingiu um novo pico nos EUA. E se inicialmente a barricada do Presidente tentou pintar o atentado como um ataque de um esquerdalho armado, rapidamente se provou que foi um dos seus que matou Kirk – um facto que o comediante Jimmy Kimmel, consistente crítico de Trump, ressaltou no rescaldo do homicídio.

“Atingimos um novo nível baixo durante o fim de semana, com o gangue MAGA a tentar desesperadamente caracterizar o miúdo que assassinou Charlie Kirk como alguém diferente deles e a fazer tudo o que podiam para ganhar pontos políticos com isso”, disse no monólogo de abertura do seu Jimmy Kimmel Live na segunda-feira. No dia anterior, nas redes sociais, tinha enviado "amor aos Kirk e a todas as crianças, pais e inocentes que são vítimas de violência sem sentido com armas de fogo". A meio da semana, o canal ABC, que transmite o programa desde 2003, anunciou a sua suspensão por tempo indeterminado.

Em comunicado, o conglomerado de media Nexstar, dono da ABC, acusou Kimmel de proferir comentários “ofensivos e insensíveis num momento crítico no nosso discurso político nacional”. Trump e figuras alinhadas com ele regozijaram-se, com o Presidente a aplaudir a “ótima notícia para os Estados Unidos” – “Parabéns à ABC por finalmente ter tido a coragem de fazer o que tinha de ser feito”, escreveu Trump na Truth Social. “Kimmel tem ZERO talento e ratings ainda piores que o Colbert.”

Como em quase tudo, há dinheiro por trás desta decisão. O afastamento de Kimmel – poucos meses depois de a CBS ter decidido acabar com o popular programa de Stephen Colbert depois de 33 anos no ar – surge num momento em que a Nexstar está a tentar obter luz verde do regulador (FCC) para a aquisição de um rival por 6,2 mil milhões de dólares (5,27 mil milhões de euros).

A decisão valeu ao conglomerado um aplauso não apenas do presidente do país, mas do presidente do FCC, Brendan Carr, que agradeceu à Nexstar por ter tomado “a decisão certa” face à “obrigação das emissoras em servir o interesse público”. Foi o mesmo tipo de mensagem que Trump enviou, primeiro via redes sociais a partir de Londres, depois a bordo do avião presidencial no regresso a casa.

“Li algures que os canais estão 97% contra mim, mais uma vez, 97% negativos, e no entanto eu ganhei e facilmente [nas eleições de novembro]. Só me dão má publicidade e imprensa. Quer dizer, eles estão a obter uma licença. Acho que talvez devessem tirar-lhes a licença."

Stephen Miller Foto Justin Sullivan/Getty Images

"Com deus como minha testemunha, vamos usar todos os recursos que temos no Departamento de Justiça, na segurança interna e em todo o governo para identificar, desmantelar e destruir essas redes e tornar os Estados Unidos seguros novamente para o povo americano, prometeu Stephen Miller [na foto], um dos mais próximos conselheiros de Trump. "Isso vai acontecer, e vamos fazer isso em nome do Charlie."

 

Aparte o que um dos maiores grupos de media dos EUA tem a ganhar com tudo isto, a mensagem subjacente ao silenciamento de Kimmel é mais um indicador de que a democracia norte-americana está a resvalar para outra coisa, mesmo que muitos continuem sem saber nomeá-la – É fascismo? Tirania? Perseguição é certamente, e a censura bate assim.

A morte de Charlie Kirk foi noticiada e lamentada a um nível nunca visto em tempos recentes, certamente não visto quando, em junho, um homem com uma farda policial matou a tiro a política democrata Melissa Hortman e o marido à porta da sua casa no Minnesota. Com a violência politicamente motivada em crescendo nos EUA, por que motivo mereceu a morte de Kirk um minuto de silêncio no Parlamento Europeu e não a de Hortman?

É mais uma pergunta sem resposta – numa altura em que há relatos de professores, bombeiros, jornalistas, políticos, um funcionário dos Serviços Secretos, um estratego da Nasdaq e um funcionário de uma importante equipa da NFL a serem demitidos ou censurados por publicarem opiniões sobre a morte de Kirk contrárias à da barricada MAGA, uma “campanha coordenada” com selo de aprovação do número dois de Trump, JD Vance.

À guisa de vingar o homicídio do influencer, e apesar de o principal suspeito não ter qualquer ligação ao Antifa (leia-se, "antifascista"), o Presidente anunciou a ilegalização do coletivo de esquerda – "Tenho o prazer de informar os nossos muitos patriotas americanos que estou a designar a 'ANTIFA', UM DESASTRE DOENTIO E PERIGOSO DA ESQUERDA RADICAL, COMO UMA ORGANIZAÇÃO TERRORISTA."

Neste frenesim, escassas são as notícias de outros acontecimentos sombrios a ter lugar no país, como o facto de dois estudantes afroamericanos terem sido encontrados pendurados em árvores no arranque deste ano letivo. As mortes aconteceram no sul dos EUA, onde a equação árvores + negros + cordas traz à memória os linchamentos antes e durante a luta pelos direitos civis. Em declarações à NBC News, Mtume Matthews, presidente do Conselho Estudantil Afro-Americano da Universidade Estatal Delta, no Mississipi, onde ocorreu uma das mortes suspeitas: "Nós realmente queremos respostas." E é por não as terem que "muitas pessoas estão com medo neste momento”.

Uma operação furada

Melania Trump causa furor com vestido usado no Banquete de Estado (Foto: Getty Images)

Foi uma visita muito antecipada que, no final, redundou em muito pouco, pelo menos a nível geopolítico. Pela segunda vez, o Presidente dos EUA foi recebido com honras de realeza em Londres, onde passou quase toda a semana em encontros com o Rei Carlos III e com membros do Governo de Keir Starmer.

Com direito a banquete e escolta militar, Donald Trump foi escudado dos enormes protestos contra a sua visita a que milhares de britânicos acudiram, bem como de ações de protesto como a projeção de fotografias suas com o pedófilo Jeffrey Epstein na fachada do Castelo de Windsor. (Também acabou por ser escudado de questões sobre a recente decisão do primeiro-ministro britânico em despedir Peter Mandelson, até agora embaixador do Reino Unido nos EUA, pelas suas ligações a Epstein.)

Com esta mega operação de charme real, capitalizando a declarada paixão e admiração de Trump pela realeza britânica, Starmer pretendia convencer Trump a aumentar a ajuda à Ucrânia, a solidificar a união da NATO e a repensar as taxas aduaneiras de 25% que os EUA querem impor à importação de aço e alumínio britânico. Mas pouco ou nada foi alcançado nestas frentes.

Ainda antes de Trump aterrar em Londres, Starmer pôde cantar vitória com algumas conquistas, na forma de parcerias com os EUA na área tecnológica, de Inteligência Artificial e de produção de energia nuclear. Mas na reta final da visita, foi pouco o que se materializou para além de ver os dois líderes lado a lado a garantirem que a "relação especial" entre britânicos e norte-americanos segue de vento em popa.

Como escreve a BBC: "Por muito bem sucedida que a viagem pudesse ter sido, há limites para o impacto que qualquer líder pode ter sobre Trump." E isso é verdade em várias frentes.

"Quando a editora da BBC EUA, Sarah Smith, perguntou se a visita iria aumentar a influência da Grã-Bretanha no comércio ou na política externa, a chefe de gabinete da Casa Branca, Susie Wiles, respondeu 'de modo algum'." O mesmo se aplica às guerras que Trump prometeu resolver, ambas hoje tão longe de acabar como dantes.

Questionado sobre a Rússia de Vladimir Putin na conferência de imprensa de despedida, Trump expressou a sua desilusão com o Presidente russo por não estar empenhado nos esforços de paz, dizendo que este o "desiludiu muito" e instando os aliados ocidentais a pararem de comprar petróleo russo para forçarem Putin a negociar a paz -- sempre sem se comprometer a sancionar Moscovo.

O "papel da UE" face a Israel e ao genocídio

Navi Pillay (Denis Balibouse/Reuters)

Ainda com Trump por terras de sua majestade, surgiram notícias de que o governo britânico estava pronto para reconhecer oficialmente o Estado da Palestina, estando apenas a aguardar, precisamente, que o Presidente norte-americano voltasse a casa. Essa foi, aliás, outra das questões levantadas na conferência de imprensa de Trump e Starmer, com o líder dos EUA a assumir que tem "um desacordo com o primeiro-ministro" britânico.

De extrema importância simbólica, o passo poderá ser dado pelo executivo Starmer já este fim de semana, antes do arranque da assembleia-geral da ONU, durante a qual vários outros países, incluindo França e Portugal, vão seguir o exemplo. Mas por importante que possa ser, peca por tardio, apontam especialistas como Joana Ricarte.

"Reconhecer o Estado da Palestina não vai acabar com o genocídio. Apoiar a declaração de Nova Iorque, sobre a necessidade de passos para acabar com isto, não vai acabar com o genocídio", diz a especialista em Relações Internacionais em entrevista à CNN Portugal.

A conversa teve lugar um dia depois de uma comissão independente criada pela ONU ter declarado que Israel está a cometer genocídio nos territórios palestinianos ocupados, um relatório que, não sendo o primeiro a acusar o Estado hebraico deste crime, comprova a "intenção" dos seus líderes em exterminar todo um povo.

"A ideia de que há um genocídio em curso não é nova. A questão é que, quando os académicos o declaram, o que estão a dizer é que, de uma perspetiva histórica, em comparação com casos do passado, há genocídio. O que este relatório traz de novo é a compilação exaustiva de provas, entre elas discursos que mostram intenção."