A (im)possibilidade de um acordo
Passaram poucas horas entre os primeiros rumores de um ataque iminente e a concretização do primeiro de uma série de ataques sem precedentes de Israel contra o Irão, na madrugada de sexta-feira, tendo como alvo primordial a central nuclear de Natanz, centenas de quilómetros a sul da capital iraniana.
Inicialmente, não houve registo de aumento dos níveis de radiação no local. Também inicialmente, Rafael Mariano Grossi, diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA), adiantou que as outras três instalações nucleares iranianas - Fordow, Ishafan e Bushehr - não tinham sido atingidas. Mas o caso mudou de figura ao longo desta sexta-feira 13.
À hora de fecho desta edição, conduzidas novas vagas de ataques israelitas, a central iraniana de Fordow já tinha sido atingida e o líder da agência nuclear da ONU já tinha confirmado “contaminação radioativa e química” no seguimento do primeiro ataque a Natanz.
Chegou a haver dúvidas sobre se os ataques conseguiriam, de facto, destruir ou no mínimo afetar as capacidades de enriquecimento de urânio do Irão. Como destacam especialistas militares citados pela CNN Internacional, o país passou os últimos anos a reforçar as suas estruturas nucleares contra ataques militares convencionais, o que dificulta a destruição das centrais, construídas com um betão especializado e endurecido, e com redes subterrâneas de túneis, alguns deles com curvas de 90 graus, em mais uma camada adicional de complexidade.
Também de acordo com Rafael Mariano Grossi, houve uma destruição considerável nas superfícies destes locais, onde se procura enriquecer urânio até 60%. Só que no subsolo, altamente protegido, as capacidades de produção mantêm-se intactas.
Os efeitos do ataque que Benjamin Netanyahu queria lançar há muito tempo, contudo, foram muito além das centrais nucleares (com o chefe do governo israelita a prometer lutar contra Teerão o "tempo que for preciso"). Em comunicado após a primeira vaga de ataques, as Forças Armadas de Israel anunciaram um “ataque em grande escala” também contra os sistemas de defesa aérea no oeste do Irão, com recurso a 200 caças e 330 “munições”, que atingiram mais de 100 alvos em todo o país, incluindo edifícios residenciais em Teerão.
Segundo os israelitas, “dezenas de radares e lançadores de mísseis foram destruídos”. Segundo a agência estatal iraniana, os ataques mataram pelo menos 78 pessoas, incluindo crianças, a par de pelo menos dois cientistas nucleares e de 20 elementos de topo do regime, entre eles o major-general Hossein Salami, líder do Corpo da Guarda Revolucionária, e o major-general Mohammad Bagheri, chefe das Forças Armadas do Irão.
Ao fecho desta edição, o Irão já tinha cumprido a promessa de retaliar, ainda que tenha ficado por perceber exatamente se a promessa de uma retaliação com toda a força foi cumprida - em quatro vagas de ataques assistiu-se a um cenário não muito diferente do que já se tinha visto por duas ocasiões em 2024. O Irão garante que foram lançados centenas de mísseis balísticos contra o território israelita, incluindo Telavive e Jerusalém. Já Israel, numa lógica de contrainformação que ambos mantêm, chegou a atirar que tinham sido menos de 100. A maioria foi intercetada pela cúpula de ferro, havendo registo de vários feridos e uma mulher morta. Ainda a retaliação estava em curso e Netanyahu divulgou um vídeo a garantir que havia mais ataques israelitas "a caminho".
Uma de quatro centrais nucleares atingidas

Houve de tudo nas primeiras análises aos ataques inéditos de Israel. Alguns especialistas começaram por destacar que a ofensiva teve lugar três dias antes da sexta ronda de negociações da administração Trump com o regime dos aiatolas, com um encontro entre Wittkoff e o chefe da diplomacia iraniana, Abbas Araghchi, marcado para domingo em Mascate, capital de Omã.
A mesma ideia foi ecoada por críticos do presidente Trump - ele que fez questão que se soubesse que estava mesmo a par dos ataques de Israel -, como o senador democrata Chris Murphy, que em comunicado ressaltou que "o ataque de Israel ao Irão, claramente destinado a destruir as negociações da administração Trump com o Irão, arrisca uma guerra regional que será provavelmente catastrófica para a América" - e lembrou que este é “um desastre criado por Trump e Netanyahu” por, há quase dez anos, terem “forçado a América a sair do acordo nuclear que tinha juntado a Europa, a Rússia e a China para conter, com sucesso, as ambições nucleares do Irão”.
O encontro em Mascate, onde se depositavam todas as esperanças, acabaria por cair por terra, assim como a teoria inicialmente avançada por vários analistas de que estávamos diante de uma ação "unilateral" de Israel com o potencial de azedar as relações com Washington.
Tal teve por base a postura de Marco Rubio, secretário de Estado norte-americano, que fez questão de sublinhar isso mesmo no rescaldo dos primeiros ataques israelitas. Horas depois, deitando água na fervura, Trump veio a público garantir que os EUA souberam desde o início dos planos de ataque do aliado: "Não foi um aviso", adiantou o presidente dos EUA.
Entre notícias sobre o afastamento de Mike Waltz do Conselho de Segurança Nacional por "estar a conspirar com o líder de Israel para bombardear o Irão", como avançou o Washington Post há algumas semanas, e as notícias de que o primeiro-ministro israelita decidiu agir porque Teerão estaria a meses, senão semanas, de completar a construção de uma bomba nuclear (uma versão posta em causa por alguns especialistas), muitas teorias e considerações foram perdendo força ao longo de sexta-feira.
Numa publicação na sua rede social, Trump avisou que, como estes, mais ataques virão se o Irão não ceder às exigências americanas de um acordo nuclear. “Já houve muita morte e destruição, mas ainda há tempo para pôr fim a este massacre, com os próximos ataques já planeados a serem ainda mais brutais”, escreveu o presidente americano. “O Irão tem de fazer um acordo, antes que não reste nada, e salvar o que já foi conhecido como o Império Iraniano.”
Com a retaliação do "império iraniano" ainda em curso à hora de fecho desta edição, e cancelado o encontro de Wittkoff com Araghchi em Mascate, há várias questões sem resposta no ar, a começar pela real possibilidade de negociar o acordo que Trump deseja agora que Israel e Irão parecem estar oficialmente em guerra. E encerrados em cada dúvida e entre todas elas estão os riscos de mais esta frente de guerra para a região.
"O ataque de sexta-feira pode vir a revelar-se um golpe devastador contra o regime de Teerão. Mas também ameaça uma gama desconcertante de resultados, incluindo alguns que são maus para Israel e para a América", resume a Economist sobre a "aposta audaciosa mas aterradora" que Telavive acaba de fazer. "Ao tentar poupar o Médio Oriente à agressão iraniana, arrisca-se a aprisioná-lo num ciclo de destruição violenta e de instabilidade. [E] à sua maneira, isso representa também uma ameaça existencial para Israel."
"Jogos da fome"

“A atenção do mundo vai agora voltar-se para o Irão – e as crianças famintas e moribundas de Gaza, a destruição e a matança em massa serão totalmente esquecidas.” Foi assim que Gideon Levy, famoso colunista do jornal israelita Haaretz, reagiu aos ataques de Israel. “Gaza estará – pelo menos nos próximos dias e semanas – sob uma sombra”, adiantou Levy em entrevista à CNN.
Um dia antes dos ataques ao Irão, a sombra já estava a ser projetada por Israel no enclave palestiniano, com um corte total nos serviços de internet que a agência da ONU para os Refugiados Palestinianos (UNRWA) foi rápida a denunciar. “Pela primeira vez em meses, não recebemos mensagens deles pela manhã a dizer ‘Bom dia’ e ‘estamos bem e vivos’”, escreveu a UNRWA sobre os seus funcionários no terreno.
Menos de uma hora antes, um outro post condenava a forma como Israel e EUA têm gerido a lenta e parcial distribuição de ajuda humanitária no território sitiado. “A chamada nova forma de gestão da assistência em Gaza é do mais degradante e humilhante e põe vidas em perigo”, disse o comissário-geral da agência, o economista suíço Philippe Lazzarini. “Este ‘modelo’ não vai resolver o crescente problema da fome. Estes ‘jogos da fome’ distópicos não podem transformar-se na nova realidade.”
Ao final de duas semanas, continuam a sair notícias diárias sobre o abate de civis palestinianos concentrados numa espécie de jaulas à espera de deitar as mãos a alimentos para as suas famílias. Contra as recomendações de várias ONG e da ONU, a distribuição de comida tem estado a cargo da chamada Fundação Humanitária de Gaza, fundada este ano nos EUA, cujo primeiro diretor, Jake Wood, se demitiu um dia antes do arranque das operações no enclave palestiniano.
Wood, um ex-fuzileiro naval, invocou preocupações com a “independência” e “imparcialidade” da missão, sendo substituído por Johnnie Moore, líder evangélico e conselheiro de Donald Trump para questões inter religiosas que, recentemente, disse na rede social X – em resposta a uma publicação do secretário-geral da ONU, António Guterres – que as notícias de palestinianos mortos e feridos ao tentarem obter ajuda são “uma mentira disseminada por terroristas”.
Não foram estas as notícias a fazer manchetes, antes as notícias sobre o barco de ativistas humanitários que tentou furar o bloqueio israelita a Gaza e que foi ilegalmente arrestado e desviado para o porto de Ashdod. A bordo do Madleen seguiam 12 tripulantes, entre eles a ativista sueca Greta Thunberg, o ativista brasileiro Thiago Ávila e a eurodeputada franco-palestiniana Rima Hassan.
Detenções no Madleen em águas internacionais

De acordo com a equipa de comunicação do grupo, todos foram obrigados a assinar uma declaração a assumir um ato ilegal que não aconteceu – o de entrar em águas territoriais de Israel sem autorização. Os que se recusaram, como Ávila, foram colocados em solitária. Alguns foram sujeitos a “maus tratos e tratamento agressivo”. À hora de fecho desta newsletter, 9 dos 12 ativistas já tinham sido deportados – com a expulsão dos outros três suspensa pelo encerramento do espaço aéreo israelita na sequência dos ataques ao Irão.
A poucos dias de arrancar uma conferência da ONU para tentar salvar a solução de dois Estados negociada em 1993, a última semana também ficou marcada por notícias sobre como França e Reino Unido afinal já não vão reconhecer o Estado da Palestina – o que Emmanuel Macron considerava, há menos de um mês, um “dever moral” e uma “necessidade política” terá passado para segundo plano face a pressões e ameaças da administração Trump.
Na mesma rota, a BBC noticiou que o Ministério britânico dos Negócios Estrangeiros está a aconselhar os seus funcionários que discordam das suas políticas para Israel e Gaza que se demitam. Mas em rota oposta, o Reino Unido, a par do Canadá e da Austrália, decidiu aplicar sanções aos dois ministros de extrema-direita do governo Netanyahu, Bezalel Smotrich e Itamar Ben-Gvir – e a Suécia quer que a UE siga o exemplo dos parceiros ocidentais.
“Temos vindo a insistir na sanção dos colonos extremistas, mas agora damos o passo seguinte para insistir também na sanção de ministros extremistas individuais, porque precisamos de ver as coisas a acontecer no terreno”, diz a chefe da diplomacia sueca. O estado de espírito em relação a Israel”, adianta Malmer Stenergard, “é agora muito diferente do que era há duas semanas e isso deve-se ao facto de muitos países, como a Suécia, estarem frustrados com o sofrimento de milhões de pessoas”.
Ao final de mais de 600 dias da implacável ofensiva armada de Israel contra a Faixa de Gaza, que já vitimou mais de 55.200 pessoas e feriu quase 128 mil, numa altura em que o primeiro-ministro israelita assume sem pudores que está a financiar e a armar gangues criminosos para desestabilizar ainda mais Gaza, não é certo que o estado de espírito esteja assim tão diferente quanto Stenergard crê. O termómetro para medir isso poderá ser a conferência que França e Arábia Saudita co-organizam na próxima semana na sede da ONU, em Nova Iorque.
“Este conflito não pode ser resolvido através de uma guerra permanente, nem através de uma ocupação ou anexação sem fim – só terminará quando israelitas e palestinianos puderem viver lado a lado nos seus próprios Estados soberanos e independentes, em paz, segurança e dignidade”, defendia há poucos dias Philémon Yang, presidente da assembleia-geral da ONU.
Numa carta aberta esta semana, de olhos postos no encontro de 17 a 20 de junho, os chamados The Elders (Os Anciãos), 12 personalidades de renome mundial, dirigiram um pedido aos governos do Canadá, de França e do Reino Unido: “Para construir a paz, reconheçam o Estado da Palestina.”
"Um império falido" e o que vem a seguir

Na entrevista desta semana, falamos com Monica Hirst, historiadora e investigadora de política internacional, que entre outros tópicos aborda a postura do Brasil e outros países quanto às guerras em curso deste lado do Atlântico, que contrastam com a posição do Ocidente. “O Brasil é um país que tem muita sensibilidade humanitária – e é importante que a União Europeia saiba conviver com essas diferenças, porque o Brasil e muitos países da região não vão mudar a visão sobre esses temas.”
Perante o fim do “mundo que nós conhecemos, baseado numa hegemonia de uma potência que já não é hegemónica”, Hirst também defende que “é preciso recuperar uma capacidade de alianças, de vinculações, onde, possivelmente, nessa primeira etapa, os Estados Unidos vão participar pouco ou nada”.
A conversa decorreu no final de maio, à margem de uma conferência do European Council on Foreign Relations (ECFR) na Gulbenkian, dedicada a analisar “o choque trumpiano na Europa e no mundo”. E como outros oradores do encontro, a investigadora brasileira acredita que esta viragem global representa algumas “oportunidades” – embora entre elas não se conte a urgente necessidade de reformar instituições supranacionais como as Nações Unidas.
“Acho muito difícil, porque potências mundiais, como a China, ainda não demonstraram um interesse maior pela reforma do Conselho de Segurança e muito menos pela inclusão de países como o Brasil, a Índia, a África do Sul, que estão articulados”, diz. Ainda assim, aqueles que, no Ocidente, se sentem abandonados pela América de Trump podem – e devem – aproveitar esta reviravolta, nomeadamente a UE.
“Esquecendo a analogia com tempestades, podemos olhar para isto como uma oportunidade, é nisso que temos de apostar – em todas as oportunidades que esta turbulência, que esse momento de incerteza, está gerando. A gente tem que se afastar do precipício e ver, entre nós, o que podemos fazer juntos.” Leia a entrevista completa aqui.
Quem está a ganhar a guerra

A Rússia perdeu mais de um milhão de soldados, entre mortos, feridos e desaparecidos, desde o início da invasão da Ucrânia, na madrugada de 24 de fevereiro de 2022, de acordo com dados ucranianos. O número simbólico foi oficialmente atingido no dia 12 de junho e, apesar de ter sido avançado por Kiev, vai ao encontro da estimativa avançada pelo Center for Strategic and International Studies no início de junho. O think tank americano estima que o conflito, que continua sem fim à vista, já fez 1,4 milhões de baixas - 400 mil do lado ucraniano.
E esse número não está perto de abrandar. As forças de Moscovo estão a dar sinais no terreno de que uma nova ofensiva está em marcha, com as forças ucranianas a relatar ataques em vários pontos da frente. Desta vez, a principal preocupação está a norte, na região de Sumy, onde o exército russo parece estar a capturar terreno a uma velocidade significativa, depois de o presidente russo ter pedido ao exército para criar uma "zona tampão" junto à fronteira da região de Kursk, na Rússia, após a expulsão das tropas ucranianas da região.
Depois de uma semana de alguma surpresa, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky afirmou que os militares russos já estão a ser "empurrados" para fora de algumas áreas que conseguiram ocupar em Sumy. O líder ucraniano falou com Oleksandr Syrskyi, chefe das forças armadas ucranianas, que garantiu que "os ocupantes estão a ser empurrados para trás". Ainda assim, esta incursão russa traz a linha da frente a pouco mais de 300 km da capital ucraniana.
O que as forças ucranianas foram capazes de fazer foi atingir uma importante fábrica de pólvora em Tambov, na noite de 11 de junho. Este é um dos principais fabricantes de explosivos e de outros sistemas e, segundo um comunicado das forças armadas ucranianas, foi atacado com vários drones de longo alcance. A imprensa ucraniana relata que o edifício principal ficou em chamas e que vídeos partilhados nas redes sociais mostram um grande incêndio no local. O objetivo, diz o exército ucraniano, é limitar a capacidade russa de produzir os materiais que necessita para atacar a Ucrânia.
Só que, ao mesmo tempo, continua a retaliação russa após a operação "Teia de Aranha" que destruiu vários bombardeiros nucleares russos. Várias cidades foram alvo de violentos ataques que tiraram a vida a três pessoas e feriram 64, incluindo Kiev e Odessa. Só que o principal foco dos bombardeamentos russos foi Kharkiv, que esteve debaixo de fogo continuamente, matando pelo dez pessoas e ferindo mais de 100. Dificilmente estes ataque devem abrandar, uma vez que a Rússia está a conseguir produzir um número cada vez maior de drones de longo alcance. Segundo a Ucrânia, este ano Moscovo poderá produzir 30 mil unidades.
E a Ucrânia não deverá ter muitas mais ferramentas para contraatacar. Esta semana, o ministro da Defesa alemão, Boris Pistorius, admitiu que a Alemanha não está a considerar enviar os mísseis Taurus para a Ucrânia, apesar dos múltiplos pedidos feitos pelo executivo ucraniano. Estes mísseis permitiriam atingir muitos dos alvos que Kiev considera prioritários na retaguarda russa, particularmente a ponte de Kerch. Mas o governo alemão não vai deixar o exército ucraniano de mãos completamente a abanar. Boris Pistorius anunciou que o exército alemão vai entregar um novo sistema de defesa antiaérea de médio alcance Iris-T. — João Guerreiro Rodrigues