Homicídio por negligência: Ministério Público investiga morte de trabalhador em empresa municipal

12 dez 2021, 08:00
ETAR da Guia, Cascais

Um acidente de trabalho mortal roubou a vida a José Miranda, no dia 28 de novembro de 2020, numa Etar da empresa Águas do Tejo Atlântico, em Cascais. O relatório da Autoridade para as Condições do Trabalho encontrou falhas graves de segurança

Um acidente de trabalho causou a morte a José Miranda, no dia 28 de novembro de 2020, numa Etar da empresa Águas do Tejo Atlântico, em Cascais. Quando há acidentes de trabalho mortais, a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) é quase sempre chamada. E neste caso foi. No relatório a que a CNN Portugal teve acesso, a ACT detetou falhas graves de segurança e o Ministério Público resolveu abrir um inquérito por eventual homicídio por negligência. O processo encontra-se em fase de inquérito e ainda está sujeito ao segredo de justiça. 

Marianela tinha 13 anos quando começou a namorar com Zé, o diminutivo com que sempre chamou José Miranda. Ele tinha 15. “A minha história de amor não é muito vulgar. Namorámos oito anos e estivemos casados, juntos, 27. Foram 35 anos”, conta à CNN Portugal. Deste amor nasceram dois filhos e já há um neto. Marianela tem agora 50 anos e Zé tinha 51 na altura do acidente. 

Após a morte do marido, Marianela, teve direito ao valor do seguro de vida, feito pela Águas do Tejo Atlântico a todos os funcionários. Um valor que dividiu com os dois filhos. Mas, desde então, aguarda a resolução de um diferendo entre a empresa e a seguradora – a Fidelidade – para poder receber a pensão vitalícia a que tem direito. Ou seja, além do processo-crime, corre em paralelo um processo administrativo, no Tribunal de Sintra.

Com base no relatório da ACT, a seguradora invoca que empresa municipal, que tem por missão explorar e gerir o sistema multimunicipal de saneamento de águas residuais da Grande Lisboa e Oeste, violou as regras de segurança.

Marianela sofre de uma doença reumatológica crónica e José Miranda era o sustento da casa. Sem ele, tornou-se complicado gerir as contas diárias. Desde o dia da tragédia que tanto ela como os filhos são acompanhados por psicólogas. 

“Havia colegas do Zé que já se recusavam a fazer aquele trabalho”

No dia 28 de novembro de 2020, José Miranda, entrou no turno das 16:00 e já não regressou a casa. Naquele dia, o neto estava em casa e José Miranda chegou a dizer à mulher que não lhe apetecia ir trabalhar para ficar com o menino. Mas foi. Trabalhava na ETAR das Águas do Tejo Atlântico, em Cascais, e por volta das 17:00 o pior aconteceu.

O Zé ia a passar por cima do piso, por cima do poço da Etar e o chão abateu todo, partiu a viga e o zé caiu dentro do poço. Foi a viga das tampas que partiu, as tampas caíram para dentro do poço e o zé caiu também”, conta à CNN Portugal.

Uma das tarefas dos funcionários, era transportar big-bags, com um porta-paletes, por cima do poço, até ao local de armazenagem provisória desse material. 

Segundo o relatório da ACT, desde aproximadamente janeiro de 2019 que esta tarefa era realizada desta forma. Antes era feita por um sistema mecânico, que deixou de estar operacional devido a uma avaria. Depois também foi usado um monta-cargas, mas também esse equipamento sofreu diversas avarias.

José Miranda já tinha comentado muitas vezes com a mulher que um dia “ia chegar a casa e contar uma tragédia”, recorda ela. “Sabiam, eles todos sabiam, todos. Havia colegas do Zé que já se recusavam a fazer aquele trabalho, porque tinham medo de passar naquele piso”, acrescenta. Mas o trabalho tinha de ser feito.

A CNN Portugal teve acesso a uma autorização de trabalho emitida pelo Serviço de Segurança da empresa, para esta tarefa de retirada de big-bags, datada de 21-08-2020. Três meses antes da morte de Zé. E nesse documento é identificada a necessidade de substituição das tampas do poço de bombagem inicial e a necessidade de verificar a integridade dos suportes das mesmas o mais rápido possível.

Entre as diversas falhas detetadas pela ACT foi identificada a degradação das vigas que suportavam as tampas do poço, o facto do trabalhador não ter proteção individual contra risco de queda em altura (arnês de segurança amarrado a linha de vida), não existirem no local boias ou varas de salvamento e, ainda, o facto dos botões de emergência que paravam as bombas submersíveis do poço, estarem localizadas em local de perigo. No caso do Zé, a queda das tampas, fez estas betoneiras de emergência ficarem inacessíveis.

"Nunca disseram que o Zé tinha falecido, mas eles já sabiam”

A vida segue e Marianela procura forças na família, mas o passado continua presente. Não só os processos continuam sem decisões, como se mantém a mágoa contra a empresa, que nem o funeral pagou: “Foi uma prima que me emprestou, mas depois paguei-lhe”.

E há memórias que não consegue apagar:

“Tocaram-me à campainha às sete e meia para me dar esta noticia. Não, um quarto para as oito da noite. E o zé teve o acidente às cinco da tarde. E sem psicólogo. Foi uma engenheira e o responsável da comunicação social da empresa. A dizer que o Zé tinha tido um acidente muito grave. Tinha caído num poço e para nós não irmos lá porque estava um aparato grande e que não valia a pena. Nunca disseram que o Zé tinha falecido, mas eles já sabiam.

Sem a noção da gravidade do acidente, Marianela pensava assim: “Estava com esperança que o Zé se tivesse agarrado a qualquer coisa. Que o INEM, os bombeiros estivessem a tentar resgatar o Zé. Nunca me passou isto pela cabeça. Eles sabiam. Claro que sim. Nem um milagre salvava o Zé ali de dentro”, lamenta.

O poço onde caiu terá aproximadamente seis metros de altura e tem bombas submersíveis que permitem a movimentação das águas. Foi a ação destas bombas que sugou o trabalhador para o fundo. O corpo terá sido tirado do poço, já sem vida, perto das 23:00 e foi preciso desmontar a bomba.

A ACT considera que numa primeira análise é identificada de imediato a falha na verificação do bom estado de conservação das vigas de suporte das tampas. E também admite que se as bombas tivessem sido paradas de imediato e houvesse meios de salvamento, como uma boia ou uma vara, talvez tivesse sido possível manter o trabalhador à superfície. 

No dia em que fez um ano da morte, Marianela assume que não foi fácil: "O Zé era uma pessoa muito importante na família. Eu perdi muita coisa numa só pessoa". 

O que deseja nesta altura é que a seguradora assuma o que falta e, depois, se quiser, se entenda com a empresa. Não entende porque perante a certeza do acidente, ela e a família continuam a sofrer, sem conseguir fechar este capítulo.

"Estamos perante uma situação dramática, com consequências familiares de extrema gravidade"

A CNN Portugal tentou falar com a seguradora, a Fidelidade e com a empresa, mas até ao momento não obteve resposta às questões colocadas. O advogado que representa a família, João Massano, considerou que este caso é especial:

"Estamos perante uma situação dramática, com consequências familiares de extrema gravidade, uma vez que era a única fonte de rendimento do agregado familiar".

Apesar de já ter sido atribuída uma "pensão provisória no âmbito do processo laboral, esta é irrisória", o que leva a que "a viúva viva da caridade dos filhos", acrescenta o advogado. João Massano considera "inadmissível que, decorrido mais de um ano sobre a data do trágico acidente, ainda não exista acusação no processo-crime". O advogado recorda palavras recentes da ministra da Justiça: “'Justiça lenta não é Justiça', o que só vem confirmar uma ideia que venho defendendo há muito tempo: o direito fundamental de acesso à Justiça é o parente pobre dos direitos fundamentais previstos na Constituição".

Número de acidentes de trabalho mortais tem decrescido

Nos últimos anos, felizmente, têm-se registado menos acidentes de trabalho mortais. Estes são dados disponibilizados na página oficial da Autoridades para as Condições do Trabalho. Os dados de 2021 estão contabilizados até ao dia 21 de junho.
 

Tipo de acidente 2018 2019 2020 2021
De viagem, transporte ou circulação 27 24 15 1
In Itinere 17 9 4 0
Nas instalações 117 88 102 35
Total 161 121 121 37

Quantos aos acidentes de trabalho graves, os valores também revelam uma tendência de diminuição. Também aqui os dados de 2021 estão contabilizados até ao dia 21 de junho.

Tipo de Acidente 2018 2019 2020 2021
De viagem, transporte ou circulação 27 14 12 1
In Itinere 3 4 3 0
Nas instalações 520 487 325 67
Total 550 506 340 68

 

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