Acontece aos Melhores: sem água há meses, família é obrigada a tomar banho de caneca e alguidar

16 mai 2022, 21:40

Marido, mulher e filha abasteciam-se de um poço, mas em fevereiro análises à água acusaram urina, fezes e E. coli. Autarquia tem conhecimento, mas não se disponibilizou a dar acesso à água da rede a esta família, que sobrevive com água engarrafada. Se também tem um problema que não consegue resolver, conte-nos a sua história para o e-mail aconteceaosmelhores@tvi.pt

Mariana Cerieiro, filha de Carmina e João, não esconde o desespero quando conta como se toma banho na vivenda da família, na cidade do Fundão, distrito de Castelo Branco.

É chegar a casa, ir buscar garrafões à varanda que são aquecidos através do sol, aquecer ainda mais água na cafeteira, despejar para dentro de um alguidar que se encontra no polibã, e é assim que tomamos banho.”

Um duche, literalmente, de caneca e alguidar. O pai parece conformado, a mãe só pergunta quanto tempo mais terão de viver assim, já a filha prefere deixar o apelo.

Água, neste momento queremos água, água potável!”

Esta é a dura realidade da família Cerieiro, que parece presa a uma forma de vida muito distante no tempo. O desespero é, enorme, e crescente, sobretudo porque antes não era assim.

Eu fiz a casa em 2000. Na altura, aqui, não havia água da rede. Tínhamos um poço, e era a água que tínhamos para consumo”, conta Carmina em entrevista à TVI/CNN Portugal.

A juntar à água cristalina e potável do poço, o jardim, o terreno amplo e a horta. Uma casa praticamente sustentável na cidade do Fundão, um sonho ao alcance de poucos. Porém, em fevereiro deste ano, o projeto de vida dos Cerieiro deu lugar à dor de cabeça que lhes veio tirar a tranquilidade.

Comecei-me a sentir mal. Fui para o hospital, cheguei e não aguentava. Entrei logo, horrível, horrível, horrível”, conta Mariana Cerieiro à equipa de reportagem do Acontece aos Melhores.

A filha de João e Carmina foi diagnosticada com uma preocupante infeção por E. coli, uma bactéria presente em alimentos e água contaminados.

Tive alta, vim para casa, e comecei a questionar como apanhei E. coli”, continua Mariana.

Carmina, a mãe, lançou de imediato a suspeita sobre a água do poço, que há algum tempo tinha um cheiro anormal.

Fizemos análises e lá está, acusou E. coli. A partir daí, deixámos de utilizar a água do poço”, revela Mariana Cerieiro.

O problema é que as análises desvendam ainda mais. A água que esta família usava para todas as tarefas domésticas tinha urina, fezes humanas e Clostridia, uma classe de bactérias que causam o botulismo, uma doença grave potencialmente mortal que pode provocar paralisia e insuficiência respiratória.

Não sei ao certo o porquê de a água estar contaminada, não podemos acusar se foi o bairro, se é uma casa X, quem foi, mas que a água vem contaminada, vem”, relata com alguma suspeição Mariana Cerieiro.

Certezas não há, mas suspeitas não faltam sobre a origem da contaminação. A poucos metros do poço desta família, passa uma linha de águas pluviais que há alguns anos tem caudal, mesmo quando não chove. É inevitável, o que ali passa escorre para o poço. E a cor, o cheiro e as moscas e mosquitos não deixam grande dúvida de que são esgotos. Ora, seguindo a linha de água até à origem, ela aproxima-se das Villas de São Marcos, um bairro de vivendas na cidade. Porém, a fonte concreta da poluição permanece um mistério.

Recorri ao presidente da junta para me arranjar uma cisterna de água, diz que não tinham”, conta Carmina Cerieiro.

De facto, acontece aos Melhores, mas será que a junta de freguesia ou a câmara municipal têm, neste momento, alguma obrigação para com esta família?

Arranjar um camião com água, gratuitamente, a câmara não está obrigada. Claro que, do ponto de vista ético e moral, a situação é completamente diferente. Nada obriga a câmara a ir entregar água, mas também nada a proíbe, é isto que eu quero dizer”, considera a advogada Rita Garcia Pereira.

Carmina Cerieiro conta à TVI/CNN Portugal que a solução mais viável é a câmara instalar água da rede até ao início da sua propriedade. Garante que já fez esse pedido inúmeras vezes, mas até agora não existe qualquer sinal por parte da autarquia de que a obra vá acontecer.

A câmara municipal do Fundão, como entidade gestora, tem de assegurar as ligações à rede pública, de todos os habitantes do seu concelho. Essa obrigação existe, é clara e transparente. E deve ser feita o mais rapidamente possível, como é óbvio”, lança com assertividade Rita Garcia Pereira.

Porém, a noção de tempo não é igual para todos, e a família de Carmina tem de continuar a viver numa casa sem água corrente há mais de três meses. A água falta, mas, ironia do destino, a vida passou a fazer-se à volta dela e da dificuldade de a encontrar.

Garrafões de água, fontes. Neste momento, a minha mãe vai buscar água à fonte de Alpedrinha, que ainda são uns bons quilómetros até voltar com a água, neste caso em bidões de 20 litros”, detalha Mariana Cerieiro.

Ora, mas se tomar banho é uma odisseia na casa desta família, lavar roupa à máquina é mesmo impossível, tal é a perigosidade da água que corre na canalização. Aqui, como no antigamente, todas as peças são lavadas à mão, num tanque. Cozinhar é outra dor de cabeça, a todas as refeições.

Vamos ao hipermercado, compramos garrafões e é assim que lavamos os legumes. A loiça lavamos com duas bacias ao lado, uma de água limpa e outra com água, detergente e lixívia.”, termina Mariana Cerieiro.

Até a horta que esta família estava habituada a ter, verde ao longo do ano inteiro, está agora praticamente seca. É que para regar batatas, cebolas e agriões usava-se a água do poço que, contaminada, não serve para rigorosamente nada.

A vida desta família é há praticamente 90 dias um desafio constante e, no meio do desespero, parece que nada ajuda. Durante a execução desta reportagem, um funcionário da câmara terá contactado a família Cerieiro, para transmitir a mensagem de que caso a publicação da peça fosse cancelada, o problema da falta de água seria resolvido de imediato. Caso a publicação da reportagem seguisse em frente, a câmara iria arranjar forma de detetar irregularidades na propriedade e de autuar Carmina e o marido.

Resolvemos, por isso, perguntar ao vice-presidente, que se disponibilizou para uma entrevista, se é conduta habitual da câmara municipal do Fundão chantagear ou ameaçar os munícipes, tal como terá feito com Carmina.

Essa é uma interpretação que não é nossa”, respondeu de imediato Luís Miguel Gavinhos, em entrevista à TVI/CNN Portugal.

Rita Garcia Pereira conclui, com assertividade, sobre o alegado comportamento da autarquia.

Esse comportamento, a provar-se, configura um crime de coação. A câmara não pode dirigir-se a um qualquer cidadão e dizer ‘se não fizeres queixa de mim’, eu não te aplico uma contraordenação e, portanto, não te condeno no pagamento de uma coima. Se fizeres, então vou verificar tudo’. Isto configura uma ameaça, injustificada, sobre um cidadão, que não é admissível.”

Na entrevista ao vice-presidente, a equipa da TVI/CNN Portugal voltou a questionar se algum funcionário da câmara terá coagido a família Cerieiro com a publicação desta reportagem.

Se teve (uma intervenção dessa natureza) nós declinamos que essa intervenção tenha acontecido nesses termos. (Demarcamo-nos), obviamente.”, garante Luís Miguel Gavinhos.

Polémicas e responsabilidades à parte, João Cerieiro não se cansa de apelar para que a autarquia resolva o problema da família. E, quem pede, realmente pode ser ouvido. No fim de contas, as notícias são as melhores, e chegam do vice-presidente, ainda na entrevista à TVI/CNN Portugal.

Obviamente que a situação é profundamente lamentável, porque estamos a falar de, no século XXI, essas condições mínimas não estarem garantidas na habitação e na residência desta família. E, por isso, nós disponibilizamo-nos imediatamente para tentar ajudar a estender a rede pública de abastecimento àquela zona, que não tem essas infraestruturas básicas”, conclui Luís Miguel Gavinhos.

Ainda não há data para a obra começar, mas o vice-presidente garante que será o mais brevemente possível. Carmina, o marido e a filha vão, finalmente, ter água da rede em casa, num final cada vez mais próximo da felicidade, aliás, da dignidade humana.

Se tem um problema que também não consegue resolver, conte-nos a sua história para o e-mail aconteceaosmelhores@tvi.pt.

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