O escritor franco-argelino Kamel Daoud venceu a edição deste ano do mais prestigiado prémio das letras francesas com um relato ficcional dos massacres durante a “década negra” da Argélia (1992-2002)
A Academia Goncourt decidiu, “por unanimidade”, suspender a 7.ª edição do Choix Goncourt da Argélia, tendo em conta a proibição naquele país do romance “Houris”, do escritor franco-argelino Kamel Daoud, vencedor do Prémio Goncourt 2024.
“Não podemos aceitar que ‘Houris’ de Kamel Daoud, um dos romances da lista Goncourt na qual os jurados devem votar, seja proibido naquele país e a sua editora banida da Feira do Livro de Argel”, lê-se num comunicado partilhado pelas 18:00 de hoje na conta oficial da Academia Goncourt na plataforma 'online' X (antigo Twitter).
“Houris” foi proibido na Argélia ao abrigo de uma lei que proíbe qualquer livro que evoque os massacres da “década negra” (1992-2002).
A Academia Goncourt recorda igualmente a detenção “arbitrária” do escritor franco-argelino Boualem Sansal, em Argel, “por causa dos seus escritos e propostas”, reafirmando a “condenação de qualquer ataque liberdade de expressão”.
De acordo com a Agência France Presse (AFP), Boualem Sansal foi detido em meados de novembro no aeroporto de Argel tendo ficado em prisão preventiva, acusado pelas autoridades argelinas de pôr em risco a segurança do Estado.
O escritor franco-argelino Kamel Daoud venceu a edição deste ano do mais prestigiado prémio das letras francesas com um relato ficcional dos massacres durante a “década negra” da Argélia (1992-2002).
Em “Houris”, publicado pela Gallimard, o escritor e jornalista franco-argelino de 54 anos coloca-se na pele de Aube, uma jovem grávida que conta à filha por nascer o massacre da sua família, a 31 de dezembro de 1999, por islamitas que tentaram cortar-lhe a garganta, deixando-a desfigurada e muda.
Entretanto, Kamel Daoud foi acusado de ter usado a história de uma paciente de sua mulher, psiquiatra, para escrever “Houris”.
“Assim que o livro foi publicado, duas queixas contra Kamel Daoud e sua mulher, Aicha Dehdouh, a psiquiatra que tratou a vítima”, Saâda Arbane, foram apresentadas em Oran, na Argélia, disse à AFP a advogada Fatima Benbraham.
Saâda Arbane, sobrevivente de um massacre durante a guerra civil na Argélia na década de 1990, acusa o escritor e sua mulher de terem revelado a sua história sem o seu consentimento.
“A primeira queixa foi apresentada em nome da Organização Nacional das Vítimas do Terrorismo" e "a segunda em nome da vítima”, explicou Fatima Benbraham à AFP.
A advogada de Arbane garantiu à agência francesa que a apresentação das queixas remonta a agosto, “alguns dias depois da publicação do livro”.
Kamel Daoud não respondeu a estas acusações, mas a sua editora francesa, a casa Gallimard, contestou as “violentas campanhas difamatórias orquestradas [contra o escritor] por certos meios de comunicação próximos de um regime [argelino] cuja natureza ninguém ignora”.
“Se Houris se inspirou em acontecimentos trágicos ocorridos na Argélia durante a guerra civil dos anos 1990, o seu enredo, as suas personagens e a sua heroína são puramente fictícios”, disse Gallimard.
Crítico do islamismo radical, o que lhe valeu uma ‘fatwa’ no seu país de nascimento (Argélia), Kamel Daoud já tinha ganhado em 2015 o Prémio Goncourt de Melhor Primeiro Romance, com “Meursault, contra-investigação”, o seu único livro publicado em Portugal (Teodolito), obra que escreveu como uma resposta a “O estrangeiro”, de Albert Camus.