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Coordenador e editor de Religião e Cidadania TVI/CNN Portugal

“Não basta pedir perdão…”

6 mar 2023, 12:30

Não são só as análises jornalísticas ou a ansiedade mediática que fazem ecoar a deceção. Há uma profunda e transversal desconfiança, uma frustração já verbalizada sem hesitações entre fiéis católicos e na sociedade. À semelhança do que acontecera no dia da apresentação do relatório sobre abusos sexuais de menores na Igreja, as reações à assembleia extraordinária dos bispos são de estupefação.

O problema do abuso sexual de menores não se encerra na perversidade do abusador, ao contrário do que alguns «negacionistas» do drama querem dar a entender.  

1. Já se sabia que este seria um tempo difícil para a Igreja, a exigir discernimento e coragem, rasgo e ousadia, mas a resposta do episcopado ao relatório ficou, surpreendentemente, aquém das expectativas, talvez demasiado elevadas.

Os bispos tiveram quase 20 dias para analisar o relatório. O que se ouviu e viu aparenta uma ausência de estratégia de médio e longo prazo. Numa espécie de «serviços mínimos», em esforçado «mínimo denominador comum» face às divergências internas, o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) anunciou as medidas óbvias e foi incapaz de esclarecer o que vai o episcopado fazer com a tão falada “lista” dos clérigos abusadores, entregue pela Comissão Independente (CI).

É que, na verdade, não há uma só “lista”, mas uma “lista” para cada diocese. "Cada bispo tem de ver, à luz do direito civil e do direito canónico, quais as medidas apropriadas a tomar", disse José Ornelas. A partir de agora, o assunto é com as dioceses, depende da vontade e empenho de cada bispo diocesano. 
A pergunta ouviu-se na conferência de imprensa: isto não será “uma mão cheia de nada?” Na resposta, o presidente da CEP defendeu que é uma mão “cheia de compromissos”, porque “não podiam sair já decisões desta assembleia”. Acrescentou, assim, mais dúvidas e incertezas, quando o dia exigia clareza e assertividade. 
É de registar a intenção de garantir todo o apoio psicossocial solicitado, dando às vítimas a possibilidade de escolherem o profissional para esse trabalho. Mas a CEP perdeu o momento da iniciativa. Arrisca-se a andar agora atrás do prejuízo, entre pedidos solenes de perdão e gestos simbólicos, com medidas que, sendo cirurgicamente essenciais, como as referentes à programação e modelos de formação do clero nos seminários, ou outras, vão passar ao lado da opinião pública.

2. Reafirmando que não podem suspender o ministério sacerdotal de um padre suspeito sem plausibilidade nas denúncias, os bispos revelam uma obsessão pelas normas que, sendo legítima, representa um aparente paradoxo, difícil de explicar. Se a lista de alegados suspeitos é apresentada pela Comissão Independente, que investigou os arquivos secretos diocesanos, ouviu e validou testemunhos num trabalho elaborado por reconhecidos especialistas, que outra plausibilidade esperam os bispos obter, no curto prazo, com as diligências que possam fazer? Não será a “lista”, em si mesma, uma vez verificada a correspondência dos nomes apresentados com clérigos concretos, suficiente para, a título preventivo, sugerir o respetivo e voluntário afastamento até que o caso esteja clarificado, seja para afirmar posteriormente a (im)possibilidade de haver processos canónicos, cíveis ou criminais, seja para sustentar que se tratou de uma difamação?


Há que partir de um princípio. Numa “lista” desta dimensão, cerca de uma centena no total das dioceses, há prevaricadores, com o risco da reincidência no crime, e, provavelmente, também inocentes. O que pesa mais? Quem beneficia com a abordagem anunciada pelos bispos?

Neste turbilhão emocional e mediático, que pároco, injustamente acusado, sabendo que tem o seu nome na “lista”, não terá a iniciativa de falar imediatamente, de forma transparente, com a sua comunidade, afastando-se para facilitar o esclarecimento e credibilizar todo o processo?

Refugiando-se em argumentos jurídicos e legais, do direito canónico, das averiguações, prescrições e responsabilidades civis, o episcopado revela não entender a gravidade do momento e remete a essência do drama para um plano secundário. O que está em causa é a centralidade das “vítimas”, que têm de encontrar na Igreja um espaço de confiança, e o desgaste de uma instituição incontornável na sociedade portuguesa, a sobreviver pelo empenho dos milhares de fiéis, clérigos e religiosos(as), que, ativa e abnegadamente, dão testemunho de fé pela intervenção social e espiritual.

3. Quase passou à margem desta comunicação do episcopado o problema da ocultação e da inabilidade ou insensibilidade verbal de alguns bispos. Tem de haver “uma base sólida” nas acusações para “avaliar a ética e moralidade das decisões tomadas”, disse José Ornelas. O episcopado “não embarca em qualquer acusação de encobrimento”. Ornelas não o refere como “estratégia de defesa”, mas logo acrescenta que “a própria noção de encobrimento no direito português é difícil de colocar”.
Convém lembrar que, por muito menos, outros prelados apresentaram imediatamente ao Papa a resignação ou colocaram o respetivo lugar à disposição. Vale a pena ler a síntese das entrevistas ao episcopado no relatório/estudo feito em Portugal, relembrar a forma como a hierarquia atuou nos casos já conhecidos ou as palavras desajustadas de alguns bispos.

4. As vítimas de abusos sexuais estão nas orações do Papa em março. Francisco revelou esta intenção na véspera de os bispos portugueses anunciarem as medidas – “compromissos”, como afirmou o presidente da CEP – em resposta ao relatório sobre abusos sexuais de menores. Numa mensagem vídeo, o Papa insiste que as vítimas devem ser “o centro” nas respostas. “Não basta pedir perdão”, a Igreja “não pode tentar esconder a tragédia dos abusos”, mas ser “exemplo” na ajuda às vítimas, tornando conhecidos os abusos, “na sociedade e na família”. E se dúvidas os bispos têm sobre a forma de o fazer, é prestar atenção às palavras do Papa: “a Igreja tem de oferecer espaços seguros para ouvir as vítimas, acompanhá-las psicologicamente e protegê-las”.

O relatório português revelou que a esmagadora maioria das vítimas não confiou nas comissões diocesanas de proteção de menores e adultos vulneráveis para relatar as dolorosas memórias e os traumas dos abusos. Só deram «voz ao silêncio» no contexto de uma Comissão que, embora por iniciativa do episcopado, foi, por este, “oferecida” à sociedade para agir em total e reconhecida independência.

Esta Comissão cessou funções e está assim criada a expectativa com o anúncio de uma nova plataforma de especialistas com “carater institucional” e “de independência”, por iniciativa da CEP, em “articulação” e “comunicação direta” com a coordenação nacional das comissões diocesanas.

Pela escolha dos membros que vão constituir este grupo e clarificando o que significa a “articulação” com as comissões diocesanas – sob alçada direta dos bispos diocesanos, as comissões diocesanas são constituídas a partir de agora “apenas por leigos”, podendo “ter um assistente eclesiástico” –, o episcopado tem a derradeira oportunidade de mostrar à sociedade e aos católicos, em particular, que caminho segue para continuar a apurar as situações de abusos sexuais.

Estão os bispos do lado das vítimas, empenhados em recuperar a confiança através da independência da nova comissão, em contrariar o abuso de poder na chaga do clericalismo, ou optam por se refugiar no complexo universo das leis civis e do direito canónico, para alegar impossibilidades, encolher os ombros, atuando como entidade corporativa na defesa da estrutura clerical?

5. A Igreja católica não é monolítica. Nunca foi, mesmo quando teve, cultural e socialmente, um papel quase hegemónico. A instituição eclesial diz-se na diversidade de experiências, julgadas pelo tempo, entre perversidades e fidelidades ao evangelho. Assim, também, seja de abusadores ou de santos, nenhuma “lista” de nomes representa e, muito menos, é a Igreja católica.

O espaço mediático é fértil em equívocos de linguagem. Prevalece a tendência para percecionar a parte como sendo o todo, em redes irracionais de hiperemotividade. É um problema transversal às instituições, mas não legitima a soberba de alegar que esta crise é uma «obra» da comunicação social. Muito menos quando se verifica a factualidade de um comportamento sistémico. Há um Papa a dizê-lo, com palavras e testemunho: “não basta pedir perdão.”

Os mais negros momentos da história da Igreja estiverem relacionados com vícios e abusos de poder, usurpações absolutistas, manipulações em nome de Deus.

Nota Final: Ironia na circunstância, o episcopado português tem no sínodo sobre a sinodalidade, em curso, a oportunidade para uma resposta consistente ao drama e consequentes questões que levanta. Nem uma palavra se ouviu ainda, no âmbito desta crise, sobre a dinâmica sinodal lançada pelo Papa, que traz ao debate a reflexão interna, questionando o clericalismo facilitador do abuso de poder, e a forma como a Igreja se vê e deve relacionar com o mundo.

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