Abusos sexuais na Igreja: o impacto das investigações em vários países do mundo

13 fev 2023, 07:00
Igreja, padres, religião, crucifixo, cruz. Foto: AP Photo/Gerald Herbert

Portugal enfrenta agora a revelação de centenas de testemunhos de vítimas. Em causa está um crime escondido durante décadas que abalou a Igreja Católica no mundo. Irlanda, Austrália, França, Alemanha, Estados Unidos, entre outros, decidiram investigar as suspeitas de abusos sexuais de crianças por parte de clérigos. Um silêncio que gritava, mas ninguém ouvia

Foi na década de 90 que o mundo começou a acordar, devagar, para o drama das crianças abusadas por clérigos ligados à Igreja Católica. Aos poucos, as primeiras notícias começavam a mostrar uma realidade que todos preferiam ignorar até então. Incluindo a própria igreja.

Em 1995, por exemplo, o arcebispo de Viena, na Áustria, renunciou ao cargo após denuncias de abuso sexual e o impacto interno, no país, foi grande. É também nesta década que surgem as primeiras notícias na Irlanda e o mundo se surpreende com as revelações de um abuso histórico e generalizado naquele país.

Quando chegamos a 2000, o tema dos abusos sexuais e das ocultações por parte da Igreja, já era capa de jornais.

Uma reportagem de um jornal norte-americano, o Boston Globe , a 6 de janeiro de 2002, que haveria de ter direito a um filme, “O caso Spotlight”, expôs a realidade e revelou como é que  os abusos ocorreriam de forma generalizada nos Estados Unidos e os padres eram mudados de congregações, quando havia queixas, em vez de serem levados à justiça.

Foi por esta altura que finalmente ouviram “o silêncio”. Aquele que todos conheciam e do qual ninguém falava. Em 2004, a própria Igreja pediu a realização de um relatório que teve como primeiras conclusões estes factos: mais de 4.000 padres católicos, nos EUA, nos últimos 50 anos, enfrentaram acusações de abuso sexual envolvendo mais de 10.000 crianças - a maioria meninos.

Em 2009, é na Irlanda, que um relatório revela que os abusos sexuais e psicológicos em escolas e orfanatos, dirigidos por católicos, foram “endémicos” durante a maior parte do século 20.

Em 2017, uma investigação mais ampla na Austrália, descobre que dezenas de milhares de crianças foram abusadas em instituições ao longo de décadas, incluindo igrejas, escolas e clubes desportivos.

Irlanda

A Irlanda foi talvez o primeiro país europeu a investigar mais a fundo os abusos sexuais de crianças por pessoas ligadas à Igreja.  O número de vítimas estimado, entre 1970 e 1990, aponta para 15.000 crianças. Com vários padres e bispos acusados de ocultarem os crimes.

Um relatório de 2009, da Comissão Ryan, revelou que os orfanatos e as escolas administrados pela Igreja eram lugares de medo e abusos sexuais sistemáticos. Foram avaliadas queixas entre 1930 e 1970.

Também publicado em 2009, o relatório Murphy, só sobre a arquidiocese de Dublin, confirma que entre 1975 e 2004 a Igreja ocultou “obsessivamente” os abusos.

Uns anos depois, outro relatório, em 2011, na diocese de Cloyne, levou o Vaticano a retirar o seu embaixador do país, quando o então primeiro-ministro irlandês o acusou de obstruir investigações sobre abuso sexual por padres.

Estados Unidos

Foi a reportagem do jornal Boston Globe, em 2002, que trouxe à luz do dia nos Estados Unidos a informação de abusos sexuais sistemáticos, na diocese de Boston, e os esforços feitos pela igreja para encobrir esses crimes. Uma investigação que acabou por ter direito a chegar ao grande ecrã, através do filme “O caso Spotlight”. Um filme, que em 2016, viria a conquistar o Óscar de Melhor Filme e também o Melhor Argumento Original.

Em 2004, uma comissão criada pela Igreja pediu que todas as suspeitas de abusos sexual fossem reportadas. Mais de 11.000 mil queixas terão sido apresentadas contra padres por alegadas vítimas e diversas dioceses pagaram milhões de dólares em acordos extrajudiciais. Com algumas associações de vítimas a considerar que esta foi a fórmula encontrada pela Igreja para escapar à Justiça.

Uma investigação às dioceses da Pensilvânia, em 2018, descobriu mais de 300 padres suspeitos de abusos, mais de 1.000 crianças vítimas e um encobrimento sistemático. O cardeal Donald Wuerl, que foi acusado de encobrimento destes crimes, acabou por renunciar ao cargo.

Desde então, outras investigações surgiram e muitas dioceses abriram os seus arquivos, assumindo que centenas de padres eram suspeitos de abusar sexualmente de crianças.

França

Em França, uma investigação de uma Comissão Independente revelou, no final de 2021 que, entre 1950 e 2020, 216 mil crianças e adolescentes tinham sido vítimas de clérigos católicos ou religiosos em França.

O número subia para 330 mil quando contabilizadas as vítimas de leigos que trabalhavam para a igreja católica, por exemplo, em escolas ou movimentos juvenis. Os números foram avançados por Jean-Marc Sauvé, responsável pela Comissão Independente sobre os Abusos da Igreja, na altura.

Foram dois anos e meio de investigação para chegar a um valor assustador. "Estes números são mais do que preocupantes, são condenáveis e não podem de forma alguma ser ignorados", afirmou o presidente da Comissão.

Acrescentou ainda que cerca de 80% eram vítimas masculinas. E que a maioria (60%), fossem vítimas do sexo masculino ou do sexo feminino, “tinham grandes problemas na sua vida sentimental e sexual". O relatório tinha 2.500 páginas e nos 70 anos analisados foram identificados cerca de 3.000 abusadores.

Depois deste relatório, foi criada outra comissão: a Comissão de Reconhecimento e Reparação. E já este ano soube-se que foi proposto um valor máximo de indeminização às vítimas de 60 mil euros, escreve a Euronews. No entanto, para que possa receber este montante, a vítima tem de estar acamada. O valor médio ficará nos 37 mil euros para cada vítima.

Em França existe mesmo uma associação de vítimas e esta proposta não terá agradado aos seus membros. Jean Sannier o advogado da associação, segundo a Euronews, defendeu que "se a pessoa gastou mais de 60 mil euros em sessões de terapia e a indemnização é limitada a 60 mil euros. É como se não houvesse indemnização”.

De acordo com a mesma notícia, menos de 1% das vítimas (das 200 mil que ainda estão vivas) deu início ao processo de reparação previsto.

Em declarações à Euronews, Antoine Garapon, o presidente da Comissão de Reconhecimento e Reparação justificou que: "Pensamos que é desonesto prometer uma reparação total que as pessoas nunca poderão obter, pela simples razão que essa reparação não existe".

No final de 2022, por exemplo, o cardeal Jean-Pierre Ricard, um dos mais altos clérigos da Igreja Católica em França, confessou que abusou sexualmente de uma adolescente de 14 anos na década de 1980. “Há 35 anos, quando era padre, comportei-me de forma condenável com uma jovem de 14 anos”, disse Ricard num comunicado.

Inglaterra

Em outubro de 2020, um relatório de uma Comissão Independente, que investigou os abusos sexuais a crianças ligados à Igreja de Inglaterra, não teve dúvidas em concluir que a instituição falhou na proteção das crianças e criou uma cultura na qual os abusadores se podiam esconder. Dados mais recentes, já assumem centenas de vítimas.

Entre 1940 e 2018, 390 membros do clérigo e outros membros foram condenados por abusos. Todavia, a instituição preferiu sempre “proteger a sua reputação” e nunca valorizou as denúncias, defendendo que as suspeitas não podiam ser verdadeiras.

Por exemplo, um Reverendo de Merseyside, um condado localizado no noroeste da Inglaterra, foi condenado em 2014, pela posse de mais de 8.000 mil imagens de abusos sexuais de crianças, mas os seus superiores minimizaram sempre as queixas, escreve a BBC News.

Em 2018, foram reportados mais de 2.500 suspeitas em dioceses na Inglaterra que envolviam crianças ou adultos vulneráveis. O relatório incluía informação de Inglaterra e do País de Gales.

A Comissão Independente foi criada em 2015, pelo Governo britânico, quando Theresa May era secretária de Estado do Interior.

Mas terá sido outro caso, não ligado à Igreja, que despertou o país para esta realidade. Um histórico apresentador da BBC, Jimmy Savile, viu após a sua morte em 2011, dezenas de pessoas acusarem-no de abusos sexuais. Daqui até à Igreja, escolas ou instituições de menores foi um salto pequeno. 

Alemanha

Em junho de 2021, o Papa Francisco recusou a resignação do Cardeal Reinhard Marx, atual arcebispo da Arquidiocese de Munique e Freising e coordenador do Conselho para a Economia. Este tinha apresentado o pedido de renúncia do cargo devido à “falha sistémica e institucional” da Igreja em lidar com os casos de abusos sexuais que tinham ocorrido na cidade alemã de Colónia. Nesta cidade, tinha sido concluído que mais de 300 menores, a maioria rapazes com menos de 14 anos, tinham sido abusados entre 1975 e 2018.

Em 2018, um relatório da Conferência dos Bispos Alemães já dava conta de um abuso sexual generalizado pelo clero alemão.

Entre 1946 e 2014, foram identificados 3.677 menores que teriam sido vítimas de diversas formas de abuso por parte de 1.670 padres. Maioria das vítimas eram dos exo masculino e tinham menos de 13 anos. Sendo que a maioria dos suspeitos não tinham sido punidos.

Espanha

Em fevereiro do ano passado o Ministério Público espanhol fez saber que estava a investigar 68 denúncias de abusos sexuais na Igreja. Estes foram os primeiros dados oficiais, e últimos, divulgados pelas autoridades. Isto após de no final de 2021, o jornal El País ter divulgado um primeiro relatório onde identificava centenas de vítimas no país. Um documento que enviou para o Vaticano.

O jornal prossegue com a contagem de casos que chegam ao seu conhecimento e, neste momento, já foram contabilizadas mais de 1.700 vítimas. O primeiro relatório tinha relatos de crimes ocorrido entre 1943 e 2018, mas já existem casos mais atuais.

O Parlamento espanhol criou em março de 2022 uma comissão para investigar as queixas, mas até ao momento pouco ou nada se sabe.  Os 68 casos assumidos pelo Ministério Público estão divididos por 17 regiões da Espanha em congregações, escolas e outras instituições religiosas, mas não forneceu detalhes.

Em janeiro de 2022, a Conferência Episcopal Espanhola também disse que criaria comissões a nível diocesano para ouvir denúncias de vítimas de abuso. Em março do mesmo ano, o secretário-geral da Conferência Episcopal Espanhola (CEE), D. Luis Argüello, disse que a Igreja Católica identificou 506 casos abuso sexual em instituições eclesiais, no país.

“Conhecemos de perto o drama de 506 pessoas a quem temos oferecido, oferecemos e ofereceremos reconhecimento e reparação”, referiu, em conferência de imprensa, após uma reunião da Comissão Permanente da CEE, em Madrid. Das 506 situações identificadas, mais de 300 estariam prescritas com 103 perpetradores já falecidos, segundo o secretário-geral da CEE.

Itália

Ao contrário de outros países, em Itália, onde há um grande peso da Igreja Católica, não foi criada nenhuma Comissão Independente para investigar os abusos sexuais de crianças.

A contabilização destes casos tem sido levada a cabo por uma ONG, a Rede Abuso, liderada por uma vítima de abuso sexual. Na contagem mais recente, que leva em consideração os últimos 13 anos de atividade da ONG, foram registados 400 casos. Mas o numero real deverá ser muito superior.

Apesar do Governo estar "ausente" das investigações a abusos sexuais as autoridades religiosas resolveram começar a investigar as suspeitas. Em novembro do ano passado, a Conferência Episcopal Italiana (CEI) divulgou um relatório sobre abusos sexuais, que calculou em 89 as vítimas de abusos entre 2020 a 2021.

Recorde-se que, em fevereiro de 2019, o Comité dos Direitos da Criança da ONU pediu a Itália que criasse uma "comissão de inquérito independente e imparcial para examinar todos os casos de abuso sexual de crianças por religiosos da Igreja Católica", expressando "preocupação" com o baixo número de investigações e processos pelo judiciário italiano".

Austrália

Após várias notícias seguidas relacionadas com abusos sexuais de crianças em instituições do país, o governo australiano determinou, em 2013, a criação de uma Comissão Real para fazer uma investigação profunda sobre o tema. Em fevereiro de 2017 foram conhecidas as conclusões.

Grande parte dos abusos ocorreram em igrejas e 7% dos padres católicos foram acusados de abusar sexualmente de menores entre 1950 e 2010. A maior parte das queixas nunca foi investigada. A Igreja tinha recebido mais de 4.400 denúncias e em algumas dioceses, mais de 15% dos padres eram suspeitos de crimes.

O Cardeal George Pell, que desempenhou funções de secretário para a Economia, a terceira figura mais importante do Estado do Vaticano foi mesmo condenado em tribunal, em 2018, por abuso de rapazes menores que faziam parte do coro, em Melbourne, na década de 90.

Pell, morreu a 10 de janeiro passado em Roma, aos 81 anos. A Igreja Católica australiana realizou em Sydney, uma vigília junto à câmara ardente do cardeal George Pell, acusado de pedofilia, apesar dos protestos de vítimas de abusos sexuais. No exterior da catedral St. Mary, em Sydney, onde decorria a vigília, manifestantes amarraram centenas de fitas nas grades em solidariedade com vítimas de abusos sexuais, fitas essas que foram repetidamente removidas por funcionários da catedral.

 

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