Abusos sexuais. Apoio psicológico gerido pela Igreja não é boa ideia. "Não pode continuar a acontecer mais do mesmo"

21 fev 2023, 08:00
Igreja, padres, religião, crucifixo, cruz. Foto: AP Photo/Gerald Herbert

A Igreja já fez saber que vai criar uma bolsa de psicólogos e psiquiatras em todo o país para prestar apoio gratuito às vítimas, contrariando as recomendações da Comissão Independente que elaborou o relatório sobre os abusos sexuais na Igreja

O psiquiatra Daniel Sampaio, que fez parte da Comissão Independente que elaborou o Relatório sobre os Abusos Sexuais na Igreja, disse à CNN Portugal que "não considera uma boa solução" criar uma bolsa de psicólogos e psiquiatras gerida pelas Comissões Diocesanas.

Poucos dias após a entrega e divulgação do relatório da Comissão Independente, a igreja fez saber que vai criar uma bolsa de psicólogos e psiquiatras em todo o país para prestar apoio gratuito às vítimas de abusos sexuais. Incluindo tratar do seu transporte para as consultas, caso seja necessário. Mas esta não é a melhor resposta que podia ser dada e pode mesmo não ter resultados, advertem os especialistas.

Para Daniel Sampaio, o facto das Comissões Diocesanas fazerem parte da estrutura da Igreja implica que estas podem não ter as melhores condições para ouvirem as vítimas. Sampaio garante que não coloca em causa "a credibilidade dos psicólogos, nem dos psiquiatras que poderão vir a ser contratados", mas lembra que "a história demonstra que quando os psicólogos e os psiquiatras pertencem às instituições, as pessoas têm muitas dificuldades em falar dos casos dessas instituições ".

Tal como no dia da apresentação do relatório, Daniel Sampaio voltou a defender à CNN Portugal que "o que a Igreja deve fazer" é "protocolos com os serviços de psiquiatria do Serviço Nacional de Saúde (SNS), de modo a dar prioridade à marcação das consultas das vítimas". E lembra mesmo que "as vítimas não se queixam às estruturas, queixam-se a pessoas que sentem como independentes". O que aqui poderá não ser o caso, devido à ligação destas Comissões Diocesanas à Igreja. 

Uma das recomendações do Relatório visava, aliás, este ponto específico. "Outra das recomendações passa pela oferta de 'apoio psicológico continuado às vítimas do passado, atuais e futuras', como responsabilidade da Igreja e em articulação com o Serviço Nacional de Saúde". E era através da articulação com o SNS que podia ser garantida a independência desta ajuda.

"Do ponto de vista simbólico a mensagem que estão a passar é ‘isto é mais do mesmo’"

Também o psicólogo Ricardo Barroso, especializado na área dos abusos sexuais, tanto com vítimas como com agressores, não tem muitas dúvidas que esta possibilidade, a avançar, "seria uma má decisão por parte da Conferência Episcopal".

"Se há algo que este relatório veio chamar à atenção é que não pode continuar a acontecer mais do mesmo”, lembra o psicólogo, explicando que mesmo não sendo esse o objetivo, deixar a questão na mão das Comissões Diocesanas, do ponto de vista simbólico, passa a mensagem de que “‘isto é mais do mesmo’".

Ricardo Barroso diz mesmo que tem conhecimento do caso de uma pessoa que se dirigiu a uma Comissão Diocesana e que a Comissão a tentou descredibilizar e lhe colocou um conjunto de entraves. "Isto é um exemplo claro porque não deve ser" esta estrutura a gerir a bolsa de psicólogos, conclui.

O psicólogo adverte, no entanto, que há escassez de meios humanos no SNS e que não há muitos especializados nesta temática e isso também é determinante para o bom acompanhamento das vítimas até porque "há uma especificidade técnica que este trabalho precisa de ter". Assim, uma possibilidade com qual concordaria seria uma "bolsa de profissionais que desse apoio ao SNS" e que fosse "gerida e selecionada pela Ordem dos Psicólogos e pela própria Ordem dos Médicos", justificando que estas “são entidades independentes, externas, técnicas e sem ligações políticas". Ainda assim, e apesar das carências de psicólogos e especialistas, Ricardo Barroso considera que "deve mesmo ser o SNS a gerir esta resposta. Até porque pode dar garantia de trabalho técnico de confiança".

Apesar de a sugestão de uma bolsa gerida pelas Comissões Diocesanas ser vista por este especialista "como uma vontade de dar uma resposta", o psicólogo lembra que mesmo que a Igreja tenha aprendido com os erros do passado, "do ponto de vista simbólico”, a mensagem que estão a passar é a de que “estão a controlar as coisas, e isso é um problema".

Recorde-se, por exemplo, que há 20 anos, quando surgiu o escândalo dos abusos sexuais na Casa Pia, foi também criada uma Comissão de Acompanhamento das Vítimas e vários psicólogos e psiquiatras, externos à Instituição, acompanharam os jovens vítimas dos abusos sexuais.

Na altura, a própria instituição tinha psicólogos nos seus quadros, mas foi entendido pela então provedora Catalina Pestana, que era necessário que fossem pessoas externas a acompanhar os menores. Pessoas sem ligação direta à instituição.

Bolsa de especialistas deverá ser criada no próximo mês

Paula Margarido é advogada e responsável pela Coordenação Nacional das Comissões Diocesanas de Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis, criada no início de 2022. Em declarações à TVI, no passado dia 16 de fevereiro, três dias após a revelação do relatório, explicou um pouco o processo de criação desta bolsa.

Garantiu, por exemplo, que a escolha dos profissionais terá em conta a sua área de especialização. "Não é o psicólogo A, B ou C. É, efetivamente, aquele psicólogo que está nesta área da violência sexual, do abuso sexual de menores, bem como o psiquiatra".

Quanto ao calendário para a criação da mesma explicou que a "equipa de Coordenação Nacional vai reunir dia 22 de fevereiro e também no dia 18 de março para, então, constituirmos esta bolsa, se Deus quiser".

A oferta do transporte às vítimas surge na sequência de alguma, ou algumas, poderem residir em zonas mais isoladas e ser necessário deslocarem-se mais longe para serem seguidas. "Suponhamos uma vítima que está numa localidade do interior de Beja. É claro que o psicólogo ou psiquiatra não vai estar ali naquela localidade do interior em Beja. Será facilmente identificável a situação. E, por isso, poder-se-á dar o caso, e dar-se-á com certeza de se descolar a Faro", explicou.

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