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Diretor executivo CNN Portugal

"O Presidente da República parece hoje mais Católico do que Cristão": Pedro Santos Guerreiro escreve a Marcelo

11 out 2022, 19:54

O Presidente disse que 400 casos de abusos sexuais na Igreja portuguesa não lhe parecem muitos. Depois disto, políticos e não políticos afirmaram que aquela fora uma declaração "miserável", "lamentável", "inacreditável". Marcelo viu-se forçado a emitir um comunicado - tentou corrigir-se: escreveu que não lhe parecem muitos casos porque outros terão ficado por documentar. Que se passa com o Presidente quando se trata da Igreja Católica? Passa-se muita coisa e não é boa, escreve Pedro Santos Guerreiro

OS 400 GOLPES DE MARCELO
por Pedro Santos Guerreiro

Ou Marcelo Rebelo de Sousa está afinal irreconhecível ou estamos finalmente a conhecê-lo. O que agora vemos é um Presidente mais preocupado com uma instituição do que com as suas vítimas. O que agora vemos é um homem mais Católico do que Cristão.

Por mais respeito que tenhamos – e temos – por Marcelo Rebelo de Sousa, até um Presidente é menos importante do que uma vítima, do que qualquer uma das vítimas, do que qualquer dos 424 testemunhos de abusos sexuais sob investigação, 17 dos quais já no Ministério Público, com mais 30 a caminho. Não dá para fazer limpezas a seco ou chamar infeliz ao que é inaturável: que “400 casos [de abusos sexuais na Igreja] não me parece que seja particularmente elevado”. 

O que disse Marcelo, na íntegra:

“Não me surpreende. Está a ver, o problema é o seguinte: não há limite do tempo para estas queixas. Há queixas que vêm de pessoas de 90 anos, 80 anos, e que fazem denúncias relativamente ao que sofreram há 60 ou há 70 ou há 80 anos. Portanto, o que significa que estamos perante um universo de pessoas que se relacionou com a Igreja Católica de milhões. De jovens, muitas centenas de milhares de jovens, haver 400 casos não me parece que seja particularmente elevado porque noutros países – e com horizontes mais pequenos – houve milhares de casos”. 

É preciso criticar Marcelo porque o que disse é errado.

É preciso criticar Marcelo porque o que disse não pode fazer escola numa sociedade em que as instituições já têm o acovardado instinto de se protegerem. 

É preciso criticar Marcelo porque até ele, uma das figuras públicas que mais compaixão habitualmente demonstra, coloca a instituição Igreja Católica acima das vítimas de crimes vomitivos cometidos por homens que abusam de outros homens, de crianças, homens violadores de mentes ou de corpos de outros, homens que não podem ser isolados dos seus atos abjetos. 

É preciso criticar Marcelo porque ele está a relativizar o que nem o Papa Francisco relativiza.

É preciso criticar Marcelo porque mesmo quando ele tenta emendar-se, e nos vem dizer que foi o país inteiro que o percebeu mal, continua mais importado consigo próprio do que com as vítimas

Os abusos sexuais não são uma nódoa na história da Igreja Católica, eles fizeram parte de “quadros graves existentes ao longo de décadas”, com “proporções verdadeiramente endémicas”, como explicou Pedro Strecht, coordenador da Comissão Independente para o Estudo de Abusos Sexuais contra Crianças na Igreja em Portugal. Os 424 testemunhos sugerem um “número significativo” de abusadores na Igreja entre 1950 e 2022. Na maioria dos casos, “as vítimas esperam, ainda hoje, um pedido de perdão".

A Igreja Católica lida mal com o problema, Manuel Clemente e Manuel Linda lidam mal com o problema, as recentes investigações e notícias sobre José Ornelas indiciam encobrimento de abusos sexuais – e Marcelo Rebelo de Sousa está a demonstrar um padrão de proteção da Igreja Católica difícil de aceitar.

É por isso que é preciso criticá-lo. Para não diluir em águas bentas a história finalmente investigada de vítimas finalmente ouvidas. 

Os abusos sexuais da igreja não são matéria de politicamente correto, nem de cultura de cancelamento, nem woke, nem são casos que sejam ou pudessem ter sido mais compreensíveis à luz de determinada época histórica. Os abusos sexuais revelam a inimaginável repugnância num homem, que sente e se consente a destruição do outro, pela violação ou violentação. 

São pelo menos 400 vítimas que hoje levaram pelo menos 400 golpes do Presidente da República.

“Quatrocentos Golpes” é uma expressão francesa que significa causar desordem, violar regras, fazer “trinta por uma linha”. É também título de um filme de François Truffaut, “Les Quatre Cents Coups”, em que rapazes fazem “trinta por uma linha” em reação a reiteradas violências infligidas. Marcelo tem agido como o professor do filme de Truffaut, que manda a criança lavar a parede escrita nem que seja com a língua. A criança já não é criança. A criança ainda é vítima. A criança continua sem reparação, sem pedido de perdão.

Daí este pesar: que Marcelo hoje nos parece mais Católico do que Cristão. 

Que vá a tempo de emendar, incluindo a própria emenda

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