Aborto: decisão do Supremo dos EUA "terá repercussões noutros países". E Portugal "não está imune"

5 mai 2022, 11:00
Manifestação contra o projeto de decisão do Supremo Tribunal dos EUA sobre o aborto

Especialistas admitem que aborto pode voltar ao debate público em países com governos populistas e predominantemente religiosos, cavalgando a expansão de movimentos de extrema-direita. Ativista que participou na campanha pela despenalização do aborto em Portugal alerta que "não há direitos adquiridos"

A notícia de que o Supremo Tribunal se prepara para reverter a decisão histórica de 1973 que aprovou o direito ao aborto está a causar indignação e protestos nos Estados Unidos, com as organizações ligadas aos direitos reprodutivos a falarem num “retrocesso” que vai alterar profundamente o modo de vida no país.

Mas “a questão do aborto nunca foi consensual” no país, afirma a especialista em assuntos internacionais Diana Soller à CNN Portugal. A investigadora sublinha que a sociedade norte-americana está cada vez mais polarizada e, por isso, “estes debates mais fraturantes tendem a emergir”. “Sempre houve grupos de diversas igrejas, que se opuseram à despenalização do aborto alguns radicais, outros moderados. A questão do aborto identifica- se não só com a direita radical, mas também com a direita moderada”, frisa.  

Já o politólogo José Filipe Pinto começa por dizer que os Estados do ‘Bible Blet’ ('Cintura da Bíblia' em português) “nunca aceitaram a decisão de 1973”, mas destaca outro fator para o aborto voltar à agenda mediática: o crescimento dos movimentos de extrema-direita, que ganharam mais visibilidade com a presidência de Donald Trump.

“Estes movimentos nunca desapareceram, estavam eram desaparecidos e a chegada de Trump ao poder deu-lhes visibilidade. (…) Na América do Norte há mais de uma dúzia de movimentos de extrema-direita ativos”, vinca.

E isso não acontece só nos EUA, mas também na Europa, alerta o politólogo. “Os movimentos de extrema-direita estão a desenvolver-se em todos os países da Europa. O que nós temos é uma expansão dos movimentos de extrema-direita negacionistas, muito ligados ao populismo cultural e identitário. Estes movimentos bebem muito em duas fontes: o nacionalismo e o catolicismo ou cristianismo”, acrescenta.

O especialista dá o caso da Polónia, que é governada por um partido ligado ao “populismo identitário ou cultural, que tem uma grande força junto da população católica, sobretudo a população rural”. Este país, predominantemente católico, restringiu severamente a lei do aborto. Desde o ano passado só é possível abortar em três situações: violação, incesto ou se houver risco de vida para mãe. Se uma ecografia revelar malformações do feto, a mulher não pode abortar.

Neste sentido, José Filipe Pinto não tem dúvidas: “Se esta lei de 1973 for alterada, isso terá repercussões noutros países, primeiro nos países em que o catolicismo está mais enraizado, a seguir virão os outros.” 

Por sua vez, Diana Soller prevê que este tipo de debates se verifique mais nos países onde “confluam duas forças poderosas: a Igreja Católica e governos conservadores nacionalistas”.  “Em países como a Polónia é normal que este tipo de debates volte a acontecer”, afirma, acrescentando que isso também é válido para o Brasil, onde os evangélicos têm uma grande influência.

E em Portugal? "O Chega vai pegar em temas fraturantes"

No atual cenário político português, de maioria absoluta socialista, não será expectável que o aborto regresse à agenda política, muito menos qualquer recuo nesta matéria. No entanto, José Filipe Pinto alerta que ”Portugal não está imune” ao enquadramento internacional e acredita que “mais cedo ou mais tarde” o tema vai voltar à discussão pública, através do partido Chega, de André Ventura, que, nas últimas eleições legislativas, aumentou a representação parlamentar de um para 12 deputados

“Temos um partido populista identitário que está a subir e mais tarde ou mais cedo, e eu acho que mais cedo do que tarde, vamos ter a questão do aborto. (…) O Chega vai pegar em temas fraturantes, que dividem a sociedade portuguesa.”

André Ventura chegou a afirmar que, apesar de ser contra o aborto, não iria pedir uma revisão da lei. No entanto, há dois anos, o partido Pró-Vida, conhecido pelas fortes posições contra o aborto, acabou por ser integrado no Chega. 

José Filipe Pinto considera que o Chega "não é um epifenómeno" e que "estes partidos crescem quando há clivagens na sociedade". "Neste momento, com uma maioria absoluta, começamos a assistir a manifestações por outros partidos. Quando começamos a ter manifestações e greves isto tem interferência na vida quotidiana, nas populações. Se a guerra demorar mais algum tempo isso também se vai repercutir no nível de vida das pessoas", explica.

O especialista prevê que isso possa acontecer em Portugal com o Chega, tal como em Espanha com o partido Vox, ou em França com as forças políticas lideradas por Éric Zemmour e Marine Le Pen.  

Já Diana Soller faz outra análise: “Parece-me que em Portugal a questão [do aborto] está resolvida.”. Ainda assim, não descarta nenhuma possibilidade: “Pode ser que não, pode ser que se volte atrás, não sabemos.”

"Devemos ter a noção de que não há direitos adquiridos"

Foi há 15 anos que Portugal disse "sim" ao referendo sobre a despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG). Até 2007, o aborto só era permitido em situações excecionais como risco de vida para a mulher ou malformação do feto. Se o aborto voltasse a ser debatido, a médica psiquiatra Ana Matos Pires "ficaria profundamente triste e profundamente zangada". Ana Matos Pires foi uma das vozes mais ativas na campanha pela descriminalização da Interrupção Voluntária da Gravidez.

"Foi uma das causas da minha vida quer enquanto cidadã, quer enquanto clínica", reitera à CNN Portugal. "O Serviço Nacional de Saúde tem de dar respostas múltiplas e tem obrigações de saúde pública. Isto [o aborto] é uma das muitas obrigações de saúde pública", acrescenta. Ainda assim, a médica reconhece que "nada é seguro" e que "não há direitos adquiridos".

"Acho que devemos ter a noção de que não há direitos adquiridos. A História tem-nos mostrado isso, que há retrocesso", vinca.

Ana Matos Pires afirma que já houve um retrocesso "numa altura muito menos complicada do ponto de vista do crescimento da extrema-direita", recordando que o governo PSD/CDS aprovou a introdução de taxas moderadas na lei da IVG (revogadas pela maioria parlamentar PS, BE, PCP e PEV na legislatura seguinte).

Em qualquer caso, deixa uma garantia: voltaria a estar "na linha da frente" para que não houvesse um "retrocesso político e um retrocesso de saúde pública" em Portugal. 

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