EUA: Notícia do Supremo Tribunal face ao aborto sugere uma mudança impressionante no modo de vida norte-americano

CNN , Análise de Stephen Collinson
3 mai 2022, 16:49
Supremo Tribunal dos EUA, em Washington. Foto: J. Scott Applewhite/AP

Se o Supremo Tribunal vier a proibir o direito constitucional ao aborto, isso geraria uma enorme mudança na vida e na lei norte-americanas - e passaria um sinal surpreendente de quão fundamentalmente a maioria conservadora, solidificada pelo antigo presidente Donald Trump, quer mudar a sociedade nas próximas décadas

Um projeto de parecer do Supremo Tribunal a sugerir que a maioria conservadora pode estar prestes a proibir o direito constitucional ao aborto atingiu os Estados Unidos como um relâmpago político, na noite de segunda-feira.

O projeto de parecer, obtido e autenticado pelo “Politico”, anuncia o que seria uma grande vitória para o movimento conservador, traçada há décadas. Isso desencadeou uma condenação imediata e apelos à ação por parte dos principais grupos liberais e médicos, e dos líderes democratas, além de manifestações de protesto no exterior do edifício do Supremo Tribunal.

A notícia chocante diz respeito a um projeto de opinião da maioria, escrito pelo juiz conservador Samuel Alito, que criticou a histórica decisão do caso Roe v. Wade de 1973 e reconheceu o direito ao aborto como erroneamente decidido. Começou a circular no início de fevereiro, de acordo com o “Politico”, mas a opinião final não deve ser publicada antes do final de junho. Os votos e a linguagem podem mudar antes de as opiniões serem formalmente divulgadas.

A CNN não confirmou de forma independente a autenticidade do documento. Um porta-voz do Supremo Tribunal recusou-se a comentar com a CNN.

Mas, se o Supremo Tribunal cumprir tal decisão nas próximas semanas, isso geraria uma enorme mudança na vida e na lei norte-americanas - e passaria um sinal surpreendente de quão fundamentalmente a maioria conservadora, solidificada pelo antigo presidente Donald Trump, quer mudar a sociedade nas próximas décadas. Poderia, potencialmente, pôr em dúvida todos os tipos de precedentes e decisões judiciais anteriores, consideradas como leis estabelecidas há anos.

Uma mudança impressionante no modo de vida norte-americano

Se a decisão final for emitida nos moldes da proposta de Alito, milhões de mulheres norte-americanas poderão ver retirado um direito fundamental, que muitas conheceram a vida inteira. Por outro lado, milhões de pessoas que acreditam que a vida começa na conceção celebrariam tal decisão.

Haverá semanas de debate sobre a fundamentação legal e as implicações por trás do projeto de parecer de Alito.

Mas, na prática, é provável que tal decisão envie a questão de volta aos estados. Isso pode significar que o aborto seria rapidamente banido pelas legislaturas em estados republicanos, mas continuaria a ser legal em estados democratas. Tal cenário levaria a uma separação ainda maior entre duas metades do país, separação que tem sido exacerbada pela política cada vez mais polarizada dos últimos anos.

O aparecimento da proposta também é impressionante por si só. Representa uma violação importante e provavelmente sem precedentes da confidencialidade do tribunal que, quase de certeza, piorará a politização do tribunal, que tem sido cada vez mais arrastado para o partidarismo desde que decidiu a eleição de 2000 a favor de George W. Bush, contra o então vice-presidente Al Gore, e que só tem acelerado desde então.

A proposta também abriu uma nova e inesperada dimensão para a campanha eleitoral das intercalares. O drama pode aumentar a participação em novembro para ambas as partes.

Por enquanto, valida a decisão dos conservadores sociais de se manterem com Trump, depois de ele ter prometido nomear juízes que derrubariam o direito constitucional ao aborto, apesar das reservas sobre a sua conduta moral.

E se o tribunal emitir tal opinião, isso significaria que o legado político do antigo presidente poderia continuar durante décadas, potencialmente.

Tal decisão reacenderia a fúria democrata pela recusa do então líder da maioria no Senado, Mitch McConnell, em confirmar a escolha do então presidente Barack Obama para o Supremo Tribunal: Merrick Garland, em 2016. Quatro anos depois, o líder do Partido Republicano ignorou a sua própria regra que proíbe confirmações num ano eleitoral, quando se apressou a validar a escolha de Trump, Amy Coney Barrett, dias antes das eleições de novembro.

Como a decisão final pode influenciar as eleições intercalares

Existe a possibilidade, no entanto, de que uma decisão final para anular Roe v. Wade - em vez de um processo mais lento de proibir o aborto com um conjunto mais progressivo de decisões ao longo do tempo - possa galvanizar a participação democrata, especialmente das mulheres, numa eleição em que o partido se estava a preparar para sofrer pesadas perdas.

Uma sondagem da CNN realizada pelo SSRS em janeiro mostrou, por exemplo, que 69% dos norte-americanos se opunham à anulação de Roe, enquanto que 30% apoiavam tal decisão.

A analista jurídica da CNN e biógrafa do Supremo tribunal, Joan Biskupic, afirmou na segunda-feira que o presidente do Supremo Tribunal, John Roberts, não queria anular completamente Roe, o que significa que ele teria discordado de parte do parecer de opinião de Alito, provavelmente em conjunto com os outros três liberais.

Ainda assim, isso daria aos conservadores uma maioria de 5-4 na questão.

Roberts está disposto, no entanto, a defender a lei do Mississippi que proibiria o aborto às 15 semanas de gravidez, apurou a CNN. Ao abrigo da lei atual, o governo não pode interferir na escolha da mulher de interromper a gravidez antes das 23 semanas, quando o feto já pode viver fora do útero.

Democratas exigem ação, conservadores comemoram

Os democratas reagiram rapidamente ao relatório do “Politico”, com muitos senadores, ou aspirantes a senadores, a concentrarem-se na obstrução.
A fim de tentar proteger o direito ao aborto, em termos legislativos, o senador do Vermont, Bernie Sanders, pediu aos líderes democratas que eliminem a exigência de que uma legislação principal tenha de ter uma supermaioria de 60 votos para ser aprovada. “O Congresso deve aprovar uma legislação que expresse Roe v. Wade como a lei da nação, neste país, AGORA”, escreveu Sanders, apelando ao fim da obstrução, se necessário.

Mas as limitações da maioria de 50-50 no Senado significam que é improvável que o partido possa aprovar tal legislação por maioria simples. Isso porque o senador democrata moderado Joe Manchin, da Virgínia Ocidental, é contra o direito ao aborto. E Kyrsten Sinema, a senadora democrata do Arizona, que tem sido um obstáculo noutras prioridades do governo, é contra mudar as regras de obstrução.

O relatório do “Politico” desencadeou uma tempestade política imediata. “Este é um incêndio de grande alarme”, disse a senadora de Washington Patty Murray, que faz parte da liderança democrata.

“Numa questão de dias ou semanas, a terrível realidade é que podemos viver num país sem Roe. Se isso acontecer, as mulheres serão obrigadas a permanecer grávidas, independentemente das suas circunstâncias pessoais. Os políticos extremistas controlarão as decisões mais pessoais dos pacientes. E os republicanos extremistas terão eliminado um direito fundamental que uma geração inteira de mulheres sempre teve como seu”, continuou ela.

Gregory Meeks, um democrata de Nova Iorque, disse a Don Lemon da CNN, que a decisão, se emitida de acordo com o parecer, seria um “agente de mudança para a América”.

“É um agente de mudança para as mulheres e para os direitos das mulheres”, disse ele.

Houve também uma reação rápida por parte do Sindicato Americano pelas Liberdades Civis, com o diretor executivo Anthony Romero a alertar que tal decisão “privaria metade da nação de um direito constitucional básico que tem sido desfrutado por milhões de mulheres” há décadas.

Qualquer decisão do tribunal de enviar a questão do aborto de volta aos estados colocaria pressão imediata sobre os governadores e as legislaturas de ambos os partidos.

O governador democrata da Califórnia, Gavin Newsom, divulgou um comunicado na noite de segunda-feira apelidando o projeto de parecer de “um ataque terrível aos direitos das mulheres em todo o país e, se for em frente, destruirá vidas e colocará inúmeras mulheres em perigo”.

Mas a governadora do Dacota do Sul, Kristi Noem, uma possível candidata presidencial republicana em 2024, prometeu entrar em ação imediatamente se a decisão do Supremo Tribunal seguir o raciocínio do parecer.

“Se este relatório for verdadeiro e Roe v. Wade for anulado, vou convocar imediatamente uma sessão especial para salvar vidas e garantir que todas as crianças por nascer tenham direito à vida no Dacota do Sul”, publicou Noem no Twitter.

E já havia uma sensação de triunfo evidente nos círculos conservadores, em relação ao relatório do “Politico”.

A deputada republicana Lisa McClain, do Michigan, publicou no Twitter que está a rezar para que “o Supremo Tribunal torne o parecer oficial e anule formalmente este ataque às crianças por nascer”.

A representante Madison Cawthorn, da Carolina do Norte, elogiou o papel de Trump na construção da maioria conservadora incontestável no tribunal.
“Graças a Donald J. Trump, a lei Roe v. Wade será anulada”, publicou Cawthorn no Twitter. A representante Marjorie Taylor Greene, da Geórgia, uma feroz defensora de Trump, apelidou o projeto de parecer de “a notícia mais importante e gloriosa da nossa vida”.

Fora do Supremo Tribunal, entretanto, os cânticos sublinharam a divisão sobre o assunto.

“Ei, ei, ho, ho, Samuel Alito tem de desaparecer”, cantavam os defensores do direito ao aborto.

“Ei, Ei, ho, ho, Roe v. Wade tem de desaparecer”, ripostavam os outros.

E.U.A.

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